Thursday, November 28, 2013

Para sempre



Espero-te na foz do rio, onde desaguas. É lá que me encontro. De olhar pousado no futuro. De corpo inteiro. Não te esqueças que todos os rios desaguam no mar. Não importa quanto tempo levam, mas é no mar que desaguam. Onde eu te espero, rio que és. No mar onde o silêncio é interrompido pelas ondas que se desfazem no areal. Que posso ser eu, ou tu. Ou todos nós.
Percorri todos os cais e não te vi. Talvez tivesse passado a desoras. Mas foi o meu tempo. Vento meu onde respiro. Não me inquietam as ausências. Inquietam-me as presenças. As ausências são suaves, as presenças são sangue fervente que me corre (ainda) nas veias. As noites são a minha companhia, manto de estrelas que recolho a cada madrugada. Deixo fluir as águas de mim que correm como ribeiro e um dia serão rio e chegarão ao mar. É lá que pouso o meu olhar, sempre. É no mar que te vejo, que te sinto, que te amo. É no mar que me devolvo a vida. Numa chegada de ficar. Para sempre.

Saturday, November 23, 2013

Música para o fim-de-semana




Uma canção para Portugal!

Acorda,
o teu ombro já não espera
e traduz essa palavra
que me olha...

E é assim que o povo resiste
É lutando que a vida insiste

Sono, sem sonho
Medo, sem coragem
Somos barco à vela
Livres na viagem....

E é assim que o povo resiste
É lutando que a vida insiste

E é gritando sobre o asfalto
Que a nossa voz fala mais alto!

---

E é assim que o povo resiste
É lutando que a vida insiste

E é gritando sobre o asfalto
Que a nossa voz fala mais alto!

Acorda,
o teu ombro já não espera
e traduz essa palavra
que me olha...

Sunday, November 10, 2013

A Lâmpada Marinha





Porto cor de céu
I


Quando desembarcas
em Lisboa,
céu celeste e rosa rosa,
estuque branco e ouro,
pétalas de ladrilho,
as casas,
as portas,
os tectos,
as janelas
salpicadas do ouro verde dos limões,
do azul ultramarino dos navios,
quando desembarcas,
não conheces,
não sabes que por detrás das janelas
escura,
ronda,
a polícia negra,
os carcereiros de luto
de Salazar, perfeitos
filhos de sacristia a calabouço,
despachando presos para as ilhas,
condenando ao silêncio
pululando
como esquadrões de sombra
sobre janelas verdes,
entre montes azuis,
a polícia,
sob outonais cornucópias,
a polícia,
procurando portugueses,
escarvando o solo,
destinando os homens à sombra.

A cítara esquecida
II


Ó Portugal formoso,
cesta de frutas e flores ?
emerges na prateada margem do oceano,
na espuma da Europa,
com a cítara de ouro
que te deixou Camões,
cantando com doçura,
esparzindo nas bocas do Atlântico
teu tempestuoso odor de vinharia,
de flores cidreiras e marinhas,
tua luminosa lua entrecortada
de nuvens e tormentas.

Os presídios
III


Mas,
português da rua, entre nós,
ninguém
nos escuta,
sabes
onde
está Álvaro Cunhal?
Sabes, ou alguém o sabe,
como morreu,
o valente,
Militão?
E sua mulher sabes tu
que enlouqueceu sob torturas?
Moça portuguesa,
passas como que bailando
pelas ruas
rosadas de Lisboa,
mas
sabes,
sabes onde morreu Bento Gonçalves,
o português mais puro,
honra de teu mar, de tua areia,
sabes
que ninguém volta jamais
da Ilha
da Ilha do Sal,
que Tarrafal se chama
o campo da morte?

Sim, tu sabes, moça,
rapaz, sim to sabes,
em silêncio
a palavra anda com lentidão mas percorre
não só Portugal senão a Terra.

Sim, sabemos,
em remotos países,
que há trinta anos
uma lápide
espessa como túmulo ou como túnica,
de clerical morcego,
afoga Portugal, teu triste trino,
salpica tua doçura,
com gotas de martírio
e mantém suas cúpulas de sombra.

O mar e os jasmins
IV


Da tua pequena mão outrora
saíram criaturas
disseminadas
no assombro da geografia.
Assim, a ti volveu Camões
para deixar-te o ramo de jasmins
sempiterno a florescer.
A inteligência ardeu qual vinho
de transparentes uvas
em tua raça,
Guerra Junqueiro
entre as ondas
deixou cair o trovão
de liberdade bravia
transportando o Oceano a seu cantar,
e outros multiplicaram
teu esplendor de rosais e racimos
como se de teu estreito território
saíssem grandes mãos
derramando sementes
pela terra toda.

Não obstante,
o tempo te soterrou,
o pó clerical
acumulado em Coimbra
caiu sobre teu rosto
de laranja oceânica
e cobriu o esplendor de tua cintura.

A lâmpada marinha
V


Portugal,
volta ao mar, a teus navios
Portugal volta ao homem, ao marinheiro,
volve à terra tua, à tua fragrância,
à tua razão livre no vento,
de novo
à luz matutina
do cravo e da espuma.
Mostra-nos teu tesouro,
teus homens, tuas mulheres,
não escondas mais teu rosto
de embarcação valente
posta nas avançadas do Oceano.
Portugal, navegante,
descobridor de Ilhas,
inventor de pimentas,
descobre o novo homem,
as ilhas assombradas,
descobre o arquipélago no tempo.
A súbita
Aparição
do pão
sobre a mesa,
a aurora,
tu, descobre-a,
descobridor de auroras.
Como é isso?
Como podes negar-te
ao ciclo da luz tu que mostras-te
caminhos aos cegos?
Tu, doce e férreo e velho,
estreito e amplo Pai
do horizonte, como
podes fechar a porta
aos novos racimos,
ao vento com estrelas do Oriente?
Proa da Europa, procura
na correnteza
as ondas ancestrais,
a marítima barba
de Camões.
Rompe
as teias de aranha que cobrem
tua fragrante copa de verdura
e então
a nós outros, filhos dos teus filhos,
aqueles para quem descobriste a areia
até então escura
da geografia deslumbrante,
mostra-nos que tu podes
atravessar de novo
o novo mar escuro
e descobrir o homem que nasceu
nas maiores ilhas da terra.
Navega, Portugal, a hora
chegou, levanta
tua estatura de proa
e entre as ilhas e os homens volve
a ser caminho.
A esta idade agrega
tua luz, volta a ser lâmpada
aprenderás de novo a ser estrela.

Pablo Neruda

(Poema inserido na campanha internacional para a libertação de Álvaro Cunhal, 1954)

Saturday, November 09, 2013

Memória de Álvaro Cunhal



UMA CHAMA NÃO SE PRENDE

rodeado de paredes
rodeadas de muros altos
que foram depois muralhas
um preso encarcerado
ao longo da terrível década de 50
inteira
Não cedeu.

Levado a tribunal
em 3 e 10 de Maio de 1950
só então fica a saber que Militão e Sofia
presos com ele torturados não «falaram»
não cederam E que esse grande patriota Militão
Ribeiro fazendo greve da fome foi morto
Perante o tribunal acusa os seus acusadores
Defende o seu Partido a sua acção
e a sua orientação política

Ponto a ponto responde às calúnias
que são os porcos argumentos do ódio
e do terror de estado Ponto a ponto
responde com o orgulho do homem livre
e o vigor da inteligência Responde por si
e pelos seus como quem acusa
e ameaça Ameaça o inimigo que o tem preso
Dos 11 anos seguidos, preso,
14 meses incomunicável,
8 anos em isolamento
E não cedeu Nunca cedeu
Agora na humidade salina da cela
contra o eco do estrondo do mar
que não esquece/e grita/contra a fortaleza
contra a corrente contínua dos dias e das noites
este homem livre é uma chama
uma lâmpara marina

Não cede lê e desenha lê
e estuda e escreve este homem livre
que está preso e é uma chama
açoitada pelo vento e pelo silêncio
numa cela
Não cede e escreve
A Questão Agrária
As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média
e escreve uma tradução do Rei Lear
e escreve Até Amanhã, camaradas

o homem livre encarcerado
fugiu enfim
colectivamente
a 3 de Janeiro de 1960
e nunca mais foi apanhado

Manuel Gusmão
(de «Três Curtos Discursos em Homenagem Póstuma a 
Álvaro Cunhal”)