Saturday, January 25, 2025

Chico Buarque: a Festa do «Avante!» 1980 foi a «maior plateia»

 

Chico Buarque regressa a Portugal, 38 anos depois de ter ficado «apavorado», e depois rendido, com uma das maiores plateias da sua vida, num concerto de «clima perfeito» e pelo qual nem cobrou cachê.


«Depois do concerto, ele reconheceu que foi especial e disse: "Nunca mais se vai repetir uma coisa destas". Não sei se foram os astros, houve ali um clima perfeito naquilo tudo, e o Chico, pela atitude dele, foi fundamental», contou à Lusa o jornalista António Macedo, que acompanhou o músico brasileiro nos dias que passou em Portugal, que culminaram no concerto de encerramento da Festa do Avante!, a 13 de Julho de 1980.


O concerto, o primeiro de Chico Buarque em Portugal depois do 25 de Abril de 1974, reuniu uma «embaixada» de músicos brasileiros, com Edu Lobo, os MPB 4 e Simone, como conta um dos responsáveis pela programação da festa anual do PCP, Ruben de Carvalho: «O Chico é um pai de santo, vai toda a gente atrás».

Para o «clima perfeito» terão concorrido o momento histórico, com os «brasileiros cheios de "pica"» contra a ainda vigente ditadura militar – rumo ao movimento «Diretas, já» –, aponta Ruben de Carvalho, a química entre os músicos gerada numa viagem recente a Angola, ainda muito presente, e a emoção da morte de Vinicius de Moraes, dias antes do concerto que se realizou no Alto da Ajuda, então recinto da Festa do Avante!.

O concerto foi encenado por Ruy Guerra, o cineasta moçambicano que levou o Cinema Novo para o Brasil, e os ensaios decorreram no antigo edifício do Teatro Aberto, em Lisboa.

António Macedo assistiu a esses ensaios, passou muito tempo com Chico Buarque, que estava instalado com a mulher, Marieta Severo, e as filhas, no Hotel Penta – «só me faltou dormir com ele» –, e acompanhou-o numa visita ao recinto do Alto da Ajuda, antes do início da Festa do Avante!.

«Quando olhou para aquela vastidão de terreno à frente, ele que é um tipo muito envergonhado, que não gosta de concertos, disse: "Isto é tudo para o povo?"», conta.

Estava «completamente apavorado», recorda António Macedo, que se lembra de lhe ter ouvido um «Eu não canto». Cantou. «Transcendeu-se. Esteve praticamente duas horas em palco», lembra, naquela que António Macedo escreveu para o jornal Se7e ter sido «a maior plateia» que Chico jamais tivera pela frente.

António Macedo lembra um alinhamento «em crescendo nas canções políticas»: «A parte final do concerto começa com o Apesar de Você, é para aí a sexta antes do fim, e depois ele começa a ligar isso com Portugal, canta o Fado Tropical, estreia a Morena de Angola – é a primeira vez que a canção é cantada pelo Chico, já era conhecida porque tinha sido cantada pela Clara Nunes.»

O relato do jornal O Diário refere também as canções Geni e o ZepelimConstruçãoRoda VivaCio da TerraCálice, e, naturalmente, Tanto Mar.

AbrilAbril

1 de Junho de 2018

Quem era a Geni do Zepelim


De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Co'os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geleia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo –- Mudei de ideia

– Quando vi nesta cidade
– Tanto horror e iniquidade
– Resolvi tudo explodir
– Mas posso evitar o drama
– Se aquela formosa dama
– Esta noite me servir
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
– e isso era segredo dela –
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Geni é uma personagem da peça Ópera do Malandro, de Chico Buarque. Trata-se de uma travesti que vive pelos covis da malandragem carioca, ao redor dos puteiros e das prostitutas, dos bandidos e contrabandistas.

Sua índole é boa, sua força é tremenda para aguentar todas as porradas da vida. Geni é, no fundo, uma vencedora, uma resistente. Mas Geni também tem seus podres, suas mentiras, suas falcatruas. A ironia é também uma forma de sobreviver.

A canção com que Chico presentou sua personagem, Geni e o Zepelim, é uma belíssima parábola da trajetória desta pessoa expulsa para as margens da vida por ser o que é, mas que, por um dia, tem seu momento de epifânico, saindo da invisibilidade que lhe é imposta.

Saiba mais em nosso site:
https://tinyurl.com/bdenehw6

Sunday, January 19, 2025

sem título

Quem me conhece sabe que eu sou de dizer o que penso. Às vezes de rajada, outras de uma forma mais pensada, talvez escolhendo palavras para que entendam melhor.
Há muitos jovens (20, 30 anos) a gostar do xegoiso. E isto preocupa-me, porque este 'gostar' não é consciente, não tem bases sólidas. É porque 'está na moda', é por ignorância ideológica, é porque os pais não fizeram o 'trabalho de casa'... e eu sinto-me impotente para alterar o que já está instalado num simples 'porque gosto'. Não sabem porque gostam, mas gostam. E vão votar...
Não era assim, cinzenta, que queria começar o fim de semana, mas é como me sinto. Com gente 'chegante' e 'ficante' tão perto de mim.
Pronto, falei. Por escrito. Pode ser que leiam.

Friday, January 17, 2025

SPARTACUS


Em cada hora
Em cada dia
Século após século
os homens arremessam o teu nome ao vento
e dele saem dardos, punhais, espadas
e dele saem pombas e flores ensanguentadas
De cada letra um filho
De cada som um eco
Teu nome-profecia
Teu nome vinho-novo
que ao terceiro dia há-de ressuscitar
nas veias do meu povo
Teu nome
que mil vezes tem sido agrilhoado
Teu nome sangue-mel
nos lábios do carrasco uma esponja de fel
Teu nome-escravo
Teu nome-espectro
fantasma de terror na noite de algozes
temido como as vozes que clamam no deserto
Teu nome-salmo
escrito em cada corpo morto
em cada cruz erguida
Teu nome-espiga
que se transforma em pão
Teu nome-pedra
da construção do mundo
que será o fruto do teu gesto
Teu nome
em cada gesto do esvoaçar das asas
da gaivota presa
Teu nome
vela-acesa na catedral da esperança
do altar-homem
Teu nome
em cada grito
em cada mão
Teu nome-sinfonia
que há-de explodir com a alegria
de um átomo liberto
Spartacus!
Teu nome-irmão.
Maria Eugénia Cunhal

Wednesday, January 15, 2025

Os olhos das crianças

Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem para trás das grades do silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.

Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.

Sidónio Muralha
(foto do Eduardo Gageiro)

Wednesday, January 01, 2025

Ode à Paz

 
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História, deixa passar a Vida!

Natália Correia

Thursday, December 26, 2024

50 anos volvidos sobre a formalização da legalização do PCP

 
A ilegalização do PCP 
A 28 de Maio de 1926, um golpe militar encabeçado pelo General Gomes da Costa, longamente preparado pelas forças reaccionárias do grande capital para colocar o Estado ao seu serviço e travar o movimento operário, impõe a ditadura em Portugal. Foi a reviravolta dos grandes capitalistas para o agravamento da exploração e o confronto com o movimento operário e a sua tomada de consciência política. É dissolvido o Parlamento e imposta a censura prévia à imprensa. São demitidas as vereações municipais. Inicia-se a perseguição policial terrorista às organizações e militantes democráticos e sindicais. 
São criados todos os instrumentos necessários para esmagar a oposição e todos os que da ditadura discordam. As sedes do PCP são encerradas e o PCP é ilegalizado. 
Ilegalizado, o PCP prepara-se para a resistência antifascista, em situação de clandestinidade. A Conferência de Abril e a eleição de Bento Gonçalves para Secretário-Geral do PCP desempenham um importante papel. Posteriormente, a reorganização de 1940/1941 permitirá ao PCP desenvolver-se de novo rapidamente em bases mais sólidas transformando-se então, e para sempre, num grande partido nacional. 
A clandestinidade não foi uma escolha dos comunistas. Foi uma situação que lhes foi imposta pela ditadura fascista. 
O regime fascista negava todas as possibilidades de qualquer actividade política democrática. Reprimia ferozmente a mais pequena manifestação de protesto. Decretava «ilegais» as mais modestas reclamações. Nas condições do terror fascista, aceitar as «leis» fascistas significava capitular, abandonar a luta. Continuar a desenvolver a luta era «ilegal». E qualquer organização política que quisesse prosseguir na luta só podia fazê-lo na clandestinidade, ou seja, sem conhecimento da polícia fascista. 
O PCP seguiu o duro caminho da clandestinidade para lutar pela liberdade. Contra todas as calúnias e mentiras, contra as perseguições e o terror, o PCP permaneceu na luta, estruturou-se na clandestinidade, tornou-se na «ilegalidade» a principal força de oposição ao fascismo. 

A entrega do processo de legalização do PCP faz hoje 50 anos 
Conquistada a liberdade com o levantamento militar e popular do 25 de Abril, o Partido foi o primeiro partido a entregar o processo de legalização. 
Uma delegação composta pelos camaradas Álvaro Cunhal, Secretário-Geral do Partido, Octávio Pato e Sérgio Vilarigues do Secretariado do Comité Central (CC), Dias Lourenço da Comissão Política e Pedro Soares do CC, acompanhados pelo advogado comunista Lopes de Almeida, estiveram no dia 26 de Dezembro de 1974 (faz hoje cinquenta anos), no Supremo Tribunal de Justiça (STJ), onde fizeram a entrega de toda a documentação exigida por lei para a formalização da legalização do PCP.
O significado político era entendido como um marco na vida e na história do PCP e simultaneamente um passo relevante na institucionalização da democracia portuguesa saída do movimento de 25 de Abril. 
O partido dos trabalhadores, o partido da resistência que ao longo de 48 anos de fascismo viveu na mais feroz «ilegalidade» e pôs em prática formas das mais complexas na luta clandestina, foi também o primeiro a apresentar o processo para a formalização da sua legalização, marcando assim, no plano institucional, a afirmação das liberdades democráticas alcançadas com a Revolução de Abril. 
O pedido de legalização entregue no STJ subscrito por 6145 portugueses de todos os pontos do País, revestiu-se de uma certa solenidade, pelo próprio significado que assumia: significava não somente que o Partido se submetia à lei e e se propunha acatá-la, mas também a sua vontade de velar firmemente para que fosse respeitada e cumprida e que defenderia com todas as suas forças a legalidade democrática.
Com o processo de legalização, foi dado um novo passo, ao qual se seguiram muitos outros passos, para que o PCP pudesse pensar, trabalhar, organizar-se e exprimir-se em liberdade. 

A luta pela liberdade e em defesa do regime democrático prossegue 
Toda a luta travada, ao longo dos últimos cinquenta anos em defesa do regime democrático, pela afirmação dos valores de Abril e em defesa da Constituição, contra operações de provocação ou de mistificação, mentira, manipulação e calúnia, que incluíram a destruição de Centros de Trabalho, bem como contra as disposições antidemocráticas das leis aprovadas (Lei Orgânica (LO) n.º 2/2003 , de 24 de Abril, com as alterações introduzidas pela LO n.º2/2008, de 14 de Maio - «Lei dos Partidos Políticos») e sucessivamente interpretadas abusivamente, visando retirar aos membros do Partido a liberdade de decidir sobre a sua forma de organização e impor ao PCP o modo de funcionamento de outros partidos e desencadear processos de devassa da vida interna e de abusiva limitação à angariação de meios que lhe permitam garantir a sua sua intervenção política, inserem-se neste combate. 
Como sublinhou no seu XXII Congresso, este é o combate que o PCP hoje prossegue para enfrentar uma situação em que se adensam os projectos de intensificação de uma política ao serviço do capital monopolista e de promoção de concepções retrógradas e reaccionárias que ameaça direitos, condições de vida e a democracia. Tomando a iniciativa, por Abril, pela democracia, pelo socialismo e o comunismo.

Avante nº 2665 

Tuesday, December 24, 2024

“Um Natal em Almada"

 
Naquela pequeníssima casa do Pragal, herdada de uns avós que tinham finalmente regressado ao seu Alentejo, uma casa pequena quase coberta pelo colorido das sardinheiras que alegravam as suas janelas, as mais floridas do Beco dos Pimentas... viviam Maria e José.
Maria, de apenas 23 anos, filha de pescadores da Trafaria, era cozinheira. A mais bonita do refeitório da Lisnave, dizia-se. Ele, mais velho, com 29, soldador na Parry & Son. Conheceram-se nos poucos intervalos do trabalho e por ali foram namorando, em passeios e conversas cada vez mais sérias, até um dia o Zé convencer a Maria a casar e ir viver para o seu Pragal, logo ali aos pés na novidade que era o Cristo-Rei.
A meio desse verão já não era possível esconder a gravidez da Maria. Em Dezembro estava linda, com a sua barriga muito redonda a fazer empinar cada vez mais as saias.
O Zé sentia um aperto no coração de cada vez que via a Maria ocupar-se de alguma tarefa mais pesada, fosse em casa fosse no emprego. A barriga da Maria ia ficando todos os dias maior e toda a gente sabia que não chegaria Janeiro sem que houvesse um novo, ou nova habitante no Beco dos Pimentas.
Quem tomava conta da casa, enquanto os dois jovens trabalhadores estavam lá longe, junto à água e à agitação dos grandes estaleiros navais de Cacilhas, era a mãe do Zé, Margarida, mulher de força nos seus cinquenta e poucos, que há muito tinha que ir fazendo de mãe e pai daquela família, porque o seu homem, o António, serralheiro mecânico naval, apesar de trabalhador e honesto até aos ossos, era já a terceira vez que estava preso. As duas primeiras vezes tinha sido coisa rápida, mas agora já lá iam uns anos no Forte de Peniche. Ninguém entre os vizinhos dizia abertamente porquê, embora não fosse segredo para ninguém quais os motivos que o tinham levado à prisão.
Voltando ao Zé e à Maria, ela iluminada de felicidade, ele cada dia mais apreensivo, só tinham olhos um para o outro.
Ela estava em paz. Contava que desde que num momento de descanso, na cozinha do refeitório, um raio de sol tinha entrado pelo vidro da grande janela e pousado na sua enorme barriga, parecia-lhe ter ouvido uma voz que lhe disse que tudo ia correr bem e que o seu filho – sim, um rapaz – ia nascer saudável. Dizia também que a voz a tinha convencido de que o futuro do seu filho iria ser muito diferente da vida dos pais... e ainda mais da vida do avô António.
Toda a miudagem do bairro sentia já os cheiros do Natal e o sabor das coisas boas que as avós e as mães sempre faziam. A excitação de, desta vez, poder ser mesmo verdade que apareceria na sala, junto à pequena árvore enfeitada com bolas brilhantes, aquele brinquedo igualzinho ao que tinham visto numa loja da Rua Capitão Leitão, que os mais velhos insistiam em chamar Rua Direita. Aquele carro de bombeiros de lata pintada, ou o soldadinho de chumbo, ou aquela boneca que abria e fechava os olhos, brinquedos para somar às horas de brincadeiras na rua, até a tarde cair, jogando à bola, ou à macaca, ou à cabra-cega, ou ao pião, ou correndo atrás de aros de bicicleta.
E nisto chegou o dia 24 de Dezembro. A avó Margarida tinha feito rabanadas, filhós, arroz doce... estava já a cozer o bacalhau com couves e batatas para a Maria e o Zé e o seu irmão mais velho, o Miguel que vinha do Barreiro, onde trabalhava nos comboios, trazendo a sua mulher Isabel e as duas filhas gémeas de cinco anos.
Quando se preparavam par ir para a mesa em que os esperava a consoada... aconteceu! A Maria estremeceu, abriu um grande sorriso, o Zé tremia muito e suava, a avó Margarida, como sempre, sabia exactamente o que devia fazer. Chamou a já prevenida vizinha parteira, que morava apenas duas portas ao lado... e ao som de risos e da algazarra dos vizinhos que regressavam da Missa do Galo, depois da meia-noite, nasceu o menino, nas primeiras horas do dia 25. Foi uma noite de alegria. A ceia ficou a arrefecer e quase ninguém comeu. Chegaram vizinhos com presentes. Cada um oferecendo o que podia.
O menino dormia sobre um pequeno colchão, sob o olhar atento do Matateu, um grande cão que, ironicamente, era totalmente branco, manso como um cordeiro e com um bafo fumegante que parecia querer aquecer o quarto e aquele humano pequenino que era novo para ele, mas que iria ser o seu melhor amigo.
Lá fora alguém cantava cantigas de Natal.
Poderiam ter-lhe chamado Jesus... mas não. Escolheram chamar-lhe António, como o seu avô, o único que não pôde estar na festa.
(Samuel – Novembro de 2016)

Tuesday, December 10, 2024

*

 
Andámos a distribuir cigarros pelos soldados.
De guarda aos quartéis, espingardas mansas assentes no chão.
E os cravos [tão presentes em nós, ainda].
E a gente... tanta.
Tu aqui, e tu, e tu, também. Afinal...
Os cartazes alinhavados por mãos apaixonadas gritando todas as palavras só conhecidas em letra clandestina.
Todos os abraços, todas as presenças até então atrás de grades, de fronteiras, de casas escondidas.
Todas as lágrimas choradas de alegrias, agora.
- Como cresci, irmão. Como embranqueceram entretanto os teus cabelos.
Esquecer a dor. Soltá-la. Vê-la transformada num imenso rio a caminho do amanhã.
Em cada rosto, em cada olhar, lia-se uma só palavra - Liberdade.
E nas vozes um grito forte que continua ainda hoje a comandar os nossos passos.
Mesmo quando silenciosos, mesmo quando nasce o desencanto.
Nunca mais!
Maria Eugénia Cunhal

Saturday, December 07, 2024

Fado Lezíria

Mar Ribatejo, maré cheia
O meu cavalo deslumbrou se
E galopando pela areia
Bebeu o mar salgado e doce.
É na lezíria que nos cheira
A maré viva nos esteiros
Água chorada a vida inteira
De homens que foram pioneiros.
Luz numa praça de aventura
Luzes no traje de um toureiro
Garcia Lorca que procura
Ver numa arena o seu tinteiro.
Mundo de passes e faenas
E de lugares de sombra e sol
Os dois sectores que há nos poemas
Vivos na prosa do Redol.
Tira o barrete põe o colete
De homem p'ra homem enfrenta o toiro
Ensina o verde ao teu ginete
Que o verde é esperança
Que o verde é oiro.
Tira o barrete põe o colete
Pega de caras o teu destino
Tira do verde todo o verdete
Homem inteiro, verde campino.

Ary dos Santos

Friday, December 06, 2024

Voto de pesar pela morte de Celeste dos Cravos aprovado por unanimidade

Apresentada pelo PCP, a iniciativa recordou a mulher que um dia «levantou-se para ir trabalhar num restaurante situado em Lisboa, na Rua Braancamp» e acabou por dar cor à Revolução. Após a votação todos, à excepção do Chega e CDS, bateram palmas de pé.


Celeste Caeiro, também conhecida carinhosamente por Celeste dos Cravos, faleceu no passado dia 15 de Novembro, aos 91 anos. Nascida em Lisboa a 2 de Maio de 1933, «oriunda de uma família humilde, e viveu grande parte da sua vida em Lisboa», Celeste ficou na história por ter sido a pessoa que começou a distribuir cravos, batizando a Revolução e tornando-se numa cara de Abril.

«Enfrentou uma vida de dificuldades com perseverança. Mulher trabalhadora, de fortes convicções, e militante comunista até ao fim da sua vida, a sua generosidade e afabilidade ficará na memória de todos os que com ela conviveram», podia ler-se na iniciativa apresentada pelo PCP. 

O voto de pesar dos comunistas descreveu também o dia em que Celeste ficou na história, relembrando que o restaurante onde trabalhava fazia um ano a 25 de Abril de 1974 e por essa razão comprou flores para oferecer aos clientes. Com o alvoroço e incerteza, o restaurante acabou por não abrir nesse dia e os cravos foram distribuídos pelas trabalhadoras. Celeste não foi para casa, juntou-se aos populares no Chiado e tendo sido informada por um dos soldados de que estava em curso uma revolução, ofereceu-lhe um cravo que o militar colocou no cano da espingarda. 

Aprovado por unanimidade, de seguida as bancadas bateram palmas de pé aos familiares presentes nas galerias, à exceção do Chega e CDS-PP, cujos deputados permaneceram sentados. 

Sobre o Centenário do Nascimento de Mário Soares

https://youtu.be/zVzOXhpIWKw?si=ThH3FZamPB26rTIa

Thursday, November 28, 2024

**

 
Chove por dentro do meu peito
O dilúvio enche as ruas da minha idade
Faz correr o rio da saudade
E perde-se no desejo por desaguar
Chove por dentro do meu peito
Sempre que me danço só para te encontrar
Chove no caos da minha mão
A semente da vida cobre o tanto de mim
Faz nascer um mundo em tons de jardim
Que, louco, se abre de fogo que não me pode queimar
Chove no caos da minha mão
Sempre que canto só para te encontrar
Chove na revolta do fundo da casa
O céu maior de uma lágrima em tom cinzento
Faz crescer o futuro do meu maior sustento
E desperta os vazios de ir e de ficar
Chove na revolta do fundo da casa
Sempre que choro só para te encontrar

Pedro Branco

Thursday, November 21, 2024

A25A

 
Caros Associados
Junto enviamos posição assumida pela Direcção da A25A, por unanimidade e concordância dos demais Órgãos Sociais, sobre o convite recebido do Senhor Presidente da Assembleia da República para a “Sessão Solene Evocativa do 49.º aniversário do 25 de Novembro de 1975”.
Com cordiais saudações de Abril
Vasco Lourenço
Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril
Comemorar, o quê e porquê?
O 25 de Abril, como único e irrepetível processo de intervenção na definição do tipo de sociedade humana, não foi fácil de concretizar.
O processo que se seguiu também não foi fácil, mas caminhámos sempre no sentido de concretizar as promessas do Programa do MFA apresentado à sociedade portuguesa desde o início.
A liberdade proporcionou que cada cidadão fosse optando pela sua visão e pelo seu projecto, juntando-se ou não aos movimentos e partidos políticos que vinham da actividade clandestina do anterior ou que se foram constituindo.
Mas a liberdade também foi permitindo que os saudosos do passado se fossem aproveitando das oportunidades que o período revolucionário, o período de transição e o posterior período democrático e constitucional lhes foi proporcionando. Eles sempre estiveram e continuam a estar presentes entre nós e pretendem, senão regressar ao passado, pelo menos destruírem os valores do 25 de Abril e construírem uma sociedade limitada e controlada.
Isto vem a propósito das comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril (que atingiram uma dimensão generalizada e mesmo surpreendente) e porque há quem queira elevar a comemoração do 25 de Novembro de 1975 à dimensão (pelo menos a título oficial) do 25 de Abril de 1974.
Ora nós consideramos que nenhum dos acontecimentos posteriores se pode comparar ao “dia Inicial, Inteiro e Limpo” ou ao dia da “Grândola Vila Morena”. O 25 de Abril é o dia da Liberdade, da reconstrução da Democracia e da Paz, conforme ficou bem evidente nas Comemorações Populares dos 50 Anos do 25 de Abril. Todos os acontecimentos posteriores, que se caracterizaram por tentativas de impedir o caminho traçado pelo Pograma do MFA e dos seus valores, acabaram por ser vitórias do MFA e do povo, apesar do juízo que hoje se possa fazer sobre o caminho que foi seguido.
É por isso que cabe no nosso conceito, e até no nosso desejo, que os momentos – chave desse percurso sejam recordados e evocados, como o “28 de Setembro de 1974”, o “11 de Março de 1975”, o “25 de Novembro de 1975” (não esquecendo outros, também importantes, mas de menos relevo como foi o “Golpe Palma Carlos”). Mas nunca admitiremos que qualquer deles se sobreponha ou pretenda igualar à comemoração do 25 de Abril de 1974.
A História não pode ser deturpada. Nós, os principais responsáveis pela consumação do 25 de Abril, com a aprovação da Constituição da República não o permitiremos!
Tendo presente que a A25A foi fundada pela quase totalidade dos Militares de Abril (95%), unidos à volta do essencial, sentimento que continua a prevalecer, extensivo aos muitos cidadãos não militares que, entretanto, a integraram, é pois clara a posição da A25A:
1. Comemorar o 25 de Abril e o percurso que a sociedade portuguesa, de facto efectuou nos anos posteriores;
2. Relembrar e evocar o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro, exigindo que, nessas evocações se não desvirtue o passado, se não deturpem os acontecimentos e se não procurem atingir, passados 50 anos, os objectivos que os inimigos do Programa do MFA e da Liberdade não conseguiram, na altura, alcançar.
Nesse sentido, não contestando o direito da Assembleia da República decidir livremente, direito derivado do 25 de Abril, sobre os actos que quer praticar, mas tendo em consideração que é nossa opinião que a sua decisão de comemorar apenas o 25 de Novembro, além do 25 de Abril, provoca uma enorme e clara deturpação dos acontecimentos vividos na caminhada para o cumprimento do Programa do MFA - A História é a História, não pode ser deturpada, ao sabor da vontade de qualquer conjuntural detentor do poder.
A Associação 25 de Abril decidiu não aceitar o convite do Senhor Presidente da Assembleia da República, não se fazendo representar na “Sessão Solene Evocativa do 49.º aniversário do 25 de Novembro de 1975”.
Lisboa, 14 de Novembro de 2024
Pela Direcção
Vasco Lourenço

Monday, November 18, 2024

Balada das onze e meia

Onze e meia: meia hora
para acabar este dia.
Meia hora ainda é hoje.
Meia hora é amanhã.
Às onze e meia da noite
vai haver muita pancada
num bar da rua das Pretas.
Vai haver muita mudança
nos decretos aprovados.
Às Onze e meia da noite
no quarto não se ouve nada
mas no berço uma criança
dorme o sono dos poetas
que andam subalimentados.
Às onze e meia da noite
direi vinte e três e trinta.
Acordo o galo vermelho
com dois murros no pescoço.
Canta, canta, meu pelintra
o dia de hoje é tão velho
que amanhã já estamos mortos.
Às onze e meia da noite
os Ódios nunca estão fartos.
Às onze e meia da noite
a morte anda lá por fora
a pedir contas à vida
e os polícias têm medo
da própria sombra que pisam.
Onze e meia. Está na hora.
No relógio ainda é cedo.
Os ponteiros não deslizam.
Às onze horas e meia
esperamos por amanhã.
Chega a noite para a ceia
com dois pezinhos de lã.
Passam gatunos, canalhas
com seus múltiplos perfis.
Caem corpos e navalhas
no silêncio dos lancis.
Onze e meia. A meia hora
que falta, nunca mais passa.
Não passa. Nunca mais passa.
Eu sei lá quanta desgraça
se apodera em meia hora
das ruelas e dos becos
que apodrecem na cidade!
São onze e meia. É agora
que os olhos verdes dos cegos
pressentem a claridade.
Às onze e meia da noite
o vento não bate à porta
nem quer saber de mais nada.
Às onze e meia da noite
no bar da rua das Pretas
continua a haver pancada.
Às onze e meia da noite
os cães disputam a dente
uma cadela aluada.
Às onze e meia da noite
há travestis no Rossio
à pesca dos marinheiros
que deixaram o navio
e fazem ondas de cio
no sangue dos paneleiros.
Bateram as onze e meia.
Só faltam trinta minutos.
Acende-se a lua cheia
na rua dos Sapateiros.
São onze e meia da noite
e eu quero ficar contigo
entre lençóis de algodão.
Fincar no flanco uma espora.
Cavalgar por meia hora.
Dar rédeas ao coração.
Às onze e meia da noite
é tempo de solidão.
E nas entranhas do medo
fazem-se filhos diversos.
Como um padeiro faz versos
ou um poeta faz pão.
Às onze e meia da noite.
Às onze e meia da noite
recebem-se embaixadores
e à mesma hora os porteiros
afugentam os trapeiros
vestidos de malfeitores.
Às onze e meia da noite
a Primavera passou-se
para o lado do Outono.
E uma Maria qualquer
nas alamedas do sono
cansada de ser mulher
às onze e meia matou-se.
Em ponto. São onze e meia.
Esta noite os redimidos
hão-de fazer por esquecer.
Bem comidos e bebidos
não tardam a adormecer.
E um frasco de comprimidos
na mesa de cabeceira
vai ajudar os sentidos
a cozer a bebedeira.
Às onze e meia da noite.
Às onze e meia da noite
num gabinete privado
(como a irmã cotovia)
o tipo que está ao lado
cantou tudo o que sabia
para subir de ordenado.
Às onze e meia da noite
rastejam cobras na lama
onde afocinham as putas
Senhoras Donas da Cama.
Mas as putas que são putas.
Não as que têm a fama.
São onze e meia da noite.
Já só falta meia hora.
Apenas trinta minutos.
Às onze e meia da noite
ponho a tristeza de lado
e uma gravata de seda.
Quero ouvir cantar o fado.
Quero dar uma facada
no galo da consciência.
Quero menos paciência
e um pouco mais de loucura.
E enquanto são onze e meia
ainda dura a pancada
no bar da rua das pretas
os putos fazem punhetas
em jeito de habilidade
apenas com quatro dedos.
E descobrem os segredos
de nascerem portugueses
filhos de um povo adiado.
Feitos aqui e agora.
Quando falta meia hora
para acabar o passado.
Joaquim Pessoa
125 poemas, antologia poética
litexa, 1982