Tuesday, July 30, 2013

Porque me faltam as palavras para te dizer...


Poema à Mãe

No mais fundo de ti,
eu sei que traí, mãe

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha — queres ouvir-me? —
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...


Mas — tu sabes — a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber,

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.


Eugénio de Andrade, in "Os Amantes Sem Dinheiro"

Thursday, July 25, 2013

Há quatro anos escrevi isto


Neste tempo hoje


Hoje apetecia-me colocar aqui poemas de Brecht. Meia dúzia de poemas de Brecht. Porque todos eles estão mais que actuais e fazem todo o sentido. Mas prefiro dizer palavras que me estão a martelar e querem sair. Faço-lhes a vontade, o trabalho vai esperar cinco minutos (não é muito) e vou deixar as palavras sair.
Neste tempo hoje não há sábados domingos ou feriados. Há trabalho que tem de ser feito. E uma enorme alegria em fazê-lo.
Estou numa zona do país que é o meu em que o trabalho político é difícil, muito difícil. Mas é assim que eu gosto. Nunca gostei de coisas fáceis, não têm sabor. É um trabalho feito contacto a contacto, amigo a amigo, e nunca o subir e descer ruas de pedras irregulares me deu tanto gozo. Sei que há compensações.
Porque neste tempo hoje não há sábados domingos ou feriados. Há trabalho que tem de ser feito. E há uma enorme alegria em fazê-lo.
Há quatro anos, nesta mesma cidade capital de distrito, depois de todas as listas terminadas, do computador estar fechado e de todos nós nos olharmos e respirarmos com um sorriso apareceu um camarada por volta da hora do almoço - as listas seriam entregues no Tribunal às duas da tarde - com uns papéis na mão. Mais uma lista. Onde? Vamos concorrer a Sortelha. O quê? Sortelha? Sim, mas como já fechaste o computador eu faço as listas à mão. Era o que faltava.
Porque neste tempo hoje não há sábados domingos ou feriados. Há trabalho que tem de ser feito. E há uma enorme alegria em fazê-lo.
Volta a abrir o computador e toca de fazer a lista à assembleia de freguesia de Sortelha. Disse na altura que, se metessemos uma pessoa, viria aqui festejar. Não metemos uma, numa lista de sete metemos três! Cada nome para a lista trabalhado até ao fim. Convencer as pessoas, numa zona difícil como esta. Cada voto conquistado a pulso.
Porque há trabalho que tem de ser feito e uma enorme alegria em fazê-lo.
O caminho faz-se caminhando, dizia o poeta.
Venham mais ruas de pedras irregulares e desconjuntadas, para que nestas duas semanas que ainda faltam podermos encontrar e falar e convencer pessoas honestas a fazerem parte das nossas listas. Cada nome é um bem precioso porque significa que essa pessoa não tem medo, aqui. Cada voto uma conquista que sabe tão bem...
E pronto, as palavras já saíram e eu gastei mais de cinco minutos. Logo recupero. Tudo estará pronto a tempo e horas. Sem cansaço, porque não pode haver cansaço. Como tão bem disse Brecht...
Neste tempo hoje em que não há sábados domingos ou feriados. Há trabalho que tem de ser feito. E há uma enorme alegria em fazê-lo...

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Mantém-se a confiança nas pessoas que abordamos e no resultado do nosso esforço.

Mantém-se a alegria no trabalho que fazemos.
Mas o tempo corre tão depressa...

Sunday, July 21, 2013

Calor




O calor. Os Camaradas. Os Amigos. A forma como somos recebidos. A alegria de estarmos novamente juntos. Apesar do calor. 
A preocupação, justa, porque existem alguns atrasos. Mas a certeza de que tudo ficará pronto a tempo e horas. E o calor. 
Entro agora na segunda semana de trabalho aqui, preparada para uma avalanche (que eu desejo) de papéis. Chamam-lhe 'processos'. Dificultam-nos a vida o mais possível, fazendo exigências que não fazem a outras forças políticas ou noutros concelhos. Mas nós respondemos! Apesar do calor.
O convívio, tão salutar e apetecido e desfrutado e plenamente vivido em duas ocasiões, os tais 'tempos mortos' em que não há papéis. Convívio à volta da mesa, um cabrito assado e muita conversa e muito colo (que as crianças querem, exigem, gostam de colo, e nós gostamos de o dar). Outro momento de convívio, sempre à volta da mesa, leitão assado na brasa. E o calor.
Faz-se hoje o balanço do que já está feito e do que falta fazer. E é preciso voltar à rua, contactar mais gente. Cada vez mais. Que se vai juntando, lentamente, a nós. Pois que venham, serão bem recebidos. E farão parte das listas. A que outros chamam 'processos'. Para mim, são gente, são Camaradas e Amigos.
O raio do calor é que podia ir embora...

p.s. a foto é o que vejo todos os dias quando chego ao Centro de Trabalho do Partido!

Saturday, July 13, 2013

Música para o fim-de-semana




E agora vou para a minha tarefa do costume. De 4 em 4 anos.
Virei aqui quando houver uns 'intervalinhos' no trabalho.
Até já, Guarda! Até um dia destes, meus Amigos...

Monday, July 08, 2013

Confissão


Lembro-me de ter andado neste campo,
de ter sacudido o sol de dentro das espigas,
de ter ouvido ao longe alguém rir e depois o silêncio,
de sentir que nada se passava ao passar pelos muros,
de não ver ninguém e era a tarde a começar,
de fechar os olhos para me libertar do azul,
e de os abrir como se o céu tivesse outra cor,
de olhar para uma casa como se alguém a habitasse,
e de saber que as janelas se abrem para ninguém,
de perguntar de onde veio a flor que colheste,
sem me lembrar que é o tempo das flores,
de te perguntar quem és sem ouvir uma palavra,
e de ouvir tudo o que a tua respiração me diz,
de teres pousado a cabeça no chão
como se a terra te dissesse um segredo,
e de ter adivinhado o que a terra te disse
quando te olhei, e o teu rosto dizia tudo.

Nuno Júdice

Saturday, July 06, 2013

Monday, July 01, 2013

Enquanto


Enquanto houver um homem caído de bruços no passeio
e um sargento que lhe volta o corpo com a ponta do pé
para ver como é;
enquanto o sangue gorgolejar das artérias abertas
e correr pelos interstícios das pedras,
pressuroso e vivo como vermelhas minhocas despertas;
enquanto as crianças de olhos lívidos e redondos como luas,
órfãs de pais e de mães,
andarem acossadas pelas ruas
como matilhas de cães;
enquanto as aves tiverem de interromper o seu canto
com o coraçãozinho débil a saltar-lhes do peito fremente,
num silêncio de espanto
rasgado pelo grito da sereia estridente;
enquanto o grande pássaro de fogo e alumínio
cobrir o mundo com a sombra escaldante das suas asas
amassando na mesma lama de extermínio
os ossos dos homens e as traves das suas casas;
enquanto tudo isso acontecer, e o mais que não se diz por ser verdade,
enquanto for preciso lutar até ao desespero da agonia,
o poeta escreverá com alcatrão nos muros da cidade

ABAIXO O MISTÉRIO DA POESIA!

António Gedeão