Thursday, August 25, 2022

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Morrer é tão natural como nascer. E são talvez os dois únicos actos completamente solitários durante toda a vida. O que não é 'natural' é que se morra antes de tempo. Mas aí teríamos de definir o que é 'antes de tempo'... e talvez nunca fosse o tempo...
 

Friday, August 12, 2022

Estado Velho


Ah! Não há dúvida
Vocês existem, vocês persistem

Vocês existem com grémios e tribunais
Medidas de segurança e capitais
Plenários mercenários festivais
Grades torturas verbenas
Cativeiros de longas penas
Com vista para o mar
Para matar

Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço

Vocês existem bordados a ponto de cruz
Fazendo a guerra sugando o povo
Sorvendo a luz com Estoris, cocktails, recepções
Canastas e rallies
Whisky, cocktails, cherries
Trapeiras, esconsos, saguões
Discursos, salmão, lagostas
Pão duro, desespero e crostas
Sorrisos de hospedeiras
E assassínios de ceifeiras

Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço

Vocês existem, baionetas e chá com bolos
Cooperativas, clubes de mães
Concursos de gatos e cães
Cães de luxo para lamber
Cães polícias - polícias cães
Para morder
Barracas de lata para viver
Salários de fome para sofrer
Trapos, suor e lodo
Amáveis conversas de casaca
E sobre as nossas cabeças
A matraca

Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço

Ah! Não há dúvida
Vocês continuam a existir
Até ao raio que vos há-de partir

José Carlos Ary dos Santos

Saturday, August 06, 2022

Testamento

Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos

Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas

Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.

Ana Luísa Amaral