Sunday, January 21, 2024

Lenine

 


"Tínhamos chegado perto do Cinema Gato Preto. De qualquer parte, de súbito, abriram-se as portas de um pátio, umas portas de madeira, altas, imensas. Era perto de nós, ou na nossa frente, ou do outro lado, lá em baixo, não sei. Dessas portas saíram camiões, homens. E ouvi um grito. Eram de certeza várias pessoas que tinham gritado ao mesmo tempo, mas eu julguei ouvir um único grito. Um único ser gritou, mais forte que a rua imensa, iluminada, animada, mais forte que a noite e o frio: Lénine morreu!
O que se passou depois? Vi os acontecimentos aos pedaços, e não cronologicamente, todos ao mesmo tempo. O que ouvi também. Arrancavam-se os jornais das mãos daqueles que tinham saído das portas de madeira. Um eléctrico parou diante de mim. Ficou vazio num instante. Todos os eléctricos pararam. Todos vazios. Não ouço nada. Um velho chora, tira o gorro, aperta-o contra o coração. É calvo. Chora. Os trenós pararam. Os trenós estão vazios. Os cinemas esvaziam-se, a multidão parece fugir a um incêndio. E os restaurantes e as casas. Tudo se lança para a rua. A Avenida Tverskoi cobriu-se de gente, as pessoas juntam-se, empurram-se em redor dos vendedores de jornais. Sentado no estribo de um eléctrico, um guarda-freio chora. A rapariga de faces vermelhas que encontrámos há pouco chora. Kerime chora com um jornal na mão, mas eu nada ouço, tudo o que vejo parece desenrolar-se num imenso aquário. Alguém caiu. Outro. As pessoas lançam-se nos braços umas das outras, chorando, vejo-as, mas não ouço qualquer som. Alguém me puxa pelo braço.
Volto-me, é uma velha enrugada, baixinha, vestida de uma peliça, com a cabeça envolta num xaile. Puxa-me pelo braço, diz-me qualquer coisa com a sua boca sem dentes, não percebo. Inclino-me para ela. Pergunta-me com a voz de uma criança de seis anos, com o medo de uma criança de seis anos: “Lénine morreu?” Aceno que sim com a cabeça. “Morreu…” Julgo que vai benzer-se, mas não, largou o meu braço: “Que desgraça para nós…” Repete: “Que desgraça…” Que desgraça! Que desgraça! A voz torna-se mais forte, alarga, alarga, cresce como o génio dos contos que surge da garrafa mágica, depois perde-se subitamente, e então não ouço. No dia do enterro do meu avô ouvi soluçar dez, talvez vinte pessoas ao mesmo tempo; pode-se imaginar cem pessoas soluçando no mesmo instante, mas uma cidade inteira a chorar numa única voz, esse ruído não se pode ouvir mais que alguns minutos. Ou talvez não se ouça, mas o instinto leva-nos a não o ouvir mais para salvar os nossos nervos e a nossa razão, para não enlouquecermos, e não é já essa voz que ouvimos, mas soluços aqui e além.(…)
Levaram Lénine para Kollomi Zal. Dos quatro cantos do país, os comboios trazem pessoas a Moscovo, todos os que querem ver Lénine pela última vez. (…) Nas ruas, nas praças, noite e dia ardem fogueiras gigantescas. Noite e dia, as filas de homens avançam para a Kolloni Zal. As ambulâncias transportam ao hospital os doentes e os enregelados. (…) É Krupskaia quem eu vejo primeiro. Está de pé diante dos montões de flores, os seus cabelos grisalhos, lisos, separados por uma risca, o vestido caindo a direito. Os braços ao lado do corpo. Os seus olhos salientes muito abertos, estão fixados num ponto. Olhei para onde ela olhava, vi Lénine. A sua testa, a sua testa amarela, incrivelmente larga: curva como o universo. Lénine estava deitado de costas, as mãos cruzadas no peito. Vi-lhe a condecoração da bandeira Vermelha.”
Nazim Hikmet, poeta comunista turco.
Foi num 21 de Janeiro. Foi há 100 anos.

A BRUXA


As tetas são balofas almofadas
recheadas de esterco e de patranhas
da boca fogem bichas trituradas
pelo próprio veneno das entranhas.

As pernas são varizes sustentadas
pela putrefacção das bastas banhas
os olhos duas ratas esfomeadas
e as mãos peludas  tal como as aranhas.

Nasce do estrume e vive para o estrume
a língua peçonhenta larga fel
e é uma corda que ela-própria-puxa.

Sai-lhe da boca pus e azedume
tem pústulas espalhadas pela pele
e é filha de si própria. É uma bruxa.

Ary dos Santos

Thursday, January 18, 2024

SONETO PRESENTE


Não me digam mais nada senão morro
aqui neste lugar dentro de mim
a terra de onde venho é onde moro
o lugar de que sou é estar aqui.

Não me digam mais nada senão falo
e eu não posso dizer eu estou de pé.
De pé como um poeta ou um cavalo
de pé como quem deve estar quem é.

Aqui ninguém me diz quando me vendo
a não ser os que eu amo os que eu entendo
os que podem ser tanto como eu.

Aqui ninguém me põe a pata em cima
porque é de baixo que me vem acima
a força do lugar que for o meu.

J. C. Ary dos Santos

Friday, January 12, 2024

A história de Al Berto: “O poeta que escrevia contra o medo”


Se fosse vivo, teria feito ontem 76 anos. Hoje publicamos a história de Al Berto.

Quis o acaso que o poeta Al Berto, pseudónimo literário de Alberto Raposo Pidwell Tavares, nascesse em Coimbra, em 1948, onde o pai estudava medicina. Aos quatro anos ficou órfão de pai, tendo este falecido num trágico acidente de automóvel.

O escritor passou a infância e adolescência na vila da costa alentejana de Sines, de onde eram oriundos os progenitores. A mãe, ainda muito jovem, auxiliada pelos avós maternos, ficou a cuidar de Al Berto e de dois filhos mais novos, apesar dos avós paternos terem tentado tirar-lhe a custódia dos filhos.

Acabaram por repartir todos a educação das crianças: os Raposo, pelo lado materno, de baixo estrato social, e os Pidwell Tavares, uma família aristocrática de Sines, uma miscigenação de latifundiários e empresários da indústria conservaria. Da avó paterna, de origem inglesa, uma mulher de personalidade muito forte, ríspida e distante, mas muito rica: com casa senhorial, com biblioteca, quinta e jardim, criados e carro com motorista, jamais se esqueceria.

Al Berto começou a ler cedo e cedo a deixar-se viciar pelo prazer da leitura. Porém, brincou também muito, viu muito cinema, ouviu muita música, dançou muito, e passou por todos os exageros próprios dos adolescentes, com os irmãos e os amigos. Isto, sempre com o mar como pano de fundo. O mar do qual nunca conseguiu viver longe…Fez o ensino primário numa escola oficial em Sines e aos doze anos foi para um colégio interno.

Em 1965, dando expressão a um gosto muito grande pelo desenho, pelas aguarelas e pelos guaches, que lhe vinha da infância, entrou na Escola Artística António Arroio, em Lisboa. No ano seguinte frequentou também o Curso de Formação Artística da Sociedade Nacional de Belas Artes, na mesma cidade.

Em 1967, com 19 anos, exilou-se em Bruxelas, primeiro na qualidade de estudante – frequentou o curso de pintura monumental na École Nationale Supérieure d'Architecture et des Arts Visuels – e, como refugiado político, para fugir à incorporação militar e à Guerra Colonial. Eram os anos da utopia do Maio de 68: uma época de grande agitação social, política e cultural. Durante o exílio viajou com frenesi, efetuando uma série de viagens pela Europa: Espanha (sobretudo Málaga e Barcelona), Grécia, Países Baixos, Inglaterra, Itália…  Nesse périplo europeu começou a escrever um diário. Hábito que nunca mais abandonaria… Nesse tempo iniciou o seu afastamento da pintura e a sua aproximação à escrita. Decisão que acabaria por concretizar-se em 1971: “Como a pintura é muito demorada de executar, requer outros meios, mais caros, à escrita basta o papel e caneta, começou assim a minha mudança para a literatura”, justificou. “E depois a isto tudo junta-se que de facto em 71 (…) havia um diário de viagens imenso. Não era só escrito era desenhado e era onde eu arrecadava praticamente tudo o que eu encontrava pelo caminho: desde fotografias a postais, a nomes de pensões, de ruas, mapas de cidades, etc. E comecei a me aperceber que nesse imenso diário, digamos assim, havia material que tinha uma qualidade e que não era propriamente um registo imediato, mas sim, apontava-me para outras preocupações.”

A passagem da pintura para a literatura implicou uma espécie de morte e renascimento, uma brecha que se abriu. Isso explica a adoção, a partir daí, do nome dividido em dois: Al Berto. Tal como explicou: “Senti necessidade de abrir a brecha com uma coisa que era muito minha e abri o nome ao meio, uma cisão num determinado percurso. Foi a maneira de não esquecer esse abismo. Depois, Al Berto, dito à francesa, Al Bertô, é mesmo árabe e é anónimo. E há qualquer coisa no anonimato que me seduz.

E o nome funciona bem em termos de se reter. ”Mais tarde, esclareceria: “Tinha medo de estar sozinho e escrevia. (…) Escrevia por medo e contra o medo. (…) Tenho o caderno onde escrevo assente numa prancheta de madeira. Espera-me uma infindável noite, escrevo contra o medo.”

O poeta regressou definitivamente a Portugal, sete meses após a revolução democrática, no dia 17 de novembro de 1975, instalando-se em Sines. Na vila, que se transformara de terra de pescadores e marinheiros num enorme complexo industrial, abriu uma livraria/editora, a que deu o nome de “Tanto Mar”. Aí, publicou livros seus e de outros autores, de certa forma marginais ao sistema editorial dominante, abordando sem pudor determinados tabus sociais e opostos às poéticas do rigor e da contenção.

O projeto da livraria durou apenas um ano. Em 1977 fechou-a e partiu para Lisboa. Iniciariam nessa época as suas deslocações pendulares entre Lisboa e Sines, numa inquietação permanente, numa busca sôfrega pela paz que nunca encontraria.

Quando Francisco José Viegas (em entrevista para a revista Ler nº 5, de 1989) lhe perguntou: “Quando está em Sines e quando está em Lisboa? Por que razão se divide entre Sines e Lisboa?”, responderia: “A noite tem a ver com o Genet. A fuga, com Rimbaud. O lado místico com Bataille. Sade, com o imprevisto. O lado excessivo (as drogas, o álcool, embora esteja muito calmo desde há dez anos…), com Baudelaire. Um dia vou para um convento. Visto um hábito branco, muito branco, e entro para um convento. Vai ser o meu futuro: para um convento que tenha uma escola de canto gregoriano… ”A literatura de Al Berto esteve sempre associada à sua vida, à aventura. Escrever nunca se dissociou de viver. Nos poemas retratava-se de corpo inteiro. Confessava-se. E confessava-se de um modo às vezes incómodo, pela marginalidade assumida. A narrativa do poeta maldito, melancólico-depressivo, atraído pelo abismo, apaixonado pela noite, pelo lado lunar: procedendo a uma violenta exaltação do seu sofrimento, do seu desamparo. Tornando-os insuportavelmente presentes. Escarafunchando a ferida, permanentemente aberta. Combatendo o mal com mal. Sem esperança.

Em 1981, voltou de novo a Sines e alojou-se na Quinta de Santa Catarina, a quinta dos avós Pidwell Tavares. Nesse ano, entrou para a Câmara Municipal de Sines como animador cultural. Mais tarde, entre 1992 e 1994, depois de ter coordenado o núcleo cultural da autarquia e de ter exercido diversas funções no Centro Cultural Emmerico Nunes (pintor modernista que curiosamente viria a casar com uma prima avó de Al Berto), que ajudou a criar, acabaria por assumir a presidência da direção do referido Centro. Entretanto, a sua popularidade como poeta foi aumentando e a sua poesia alvo de um crescendo constante nos elogios e nos destaques publicitários. Ao longo da sua vida, Al Berto colaborou em diversas revistas e jornais, participou em inúmeros debates, encontros de poesia e sessões de leitura, fez traduções e publicou alguns livros de prosa, teatro e, sobretudo, de poesia.

Em 1987, poeta já consagrado, foi galardoado com o prémio PEN-Club de Poesia, pelo livro “O Medo” que reúne todo o seu trabalho poético de 1974 a 1986 (sendo adicionados em posteriores edições novos escritos do autor), em 1992 recebeu de Mário Soares a medalha de Oficial da Ordem Militar de Sant'Iago da Espada, e em 1995 a Medalha de Mérito Municipal atribuída pelo executivo da Câmara Municipal de Sines.

Morreu em 1997, com 49 anos, em Lisboa, no dia 13 de junho, dia de Santo António, dia do nascimento de Fernando Pessoa, vítima de um linfoma que lhe tinha sido diagnosticado alguns meses antes. Al Berto passou poeticamente pelo mundo. Rebelde, errante, ávido, excessivo, solitário, ensimesmado, cheio de desejos libertários, consumido pelos sentidos da existência.

Paulo Marques

Saturday, January 06, 2024

CARLOS PAULO

 

A minha vida


“Há seis meses sofri um AVC, no teatro A Comuna, em pleno palco. Eu fazia a última parte da peça sentado numa cadeira, falando com o público. Quando as luzes se apagaram, tentei levantar-me mas era como se a minha perna esquerda tivesse desaparecido. Não sentia dor, mas uma insensibilidade total. Ainda fui aos aplausos, amparado de ambos os lados, pensando que tinha tido uma cãibra.
Fiz reabilitação diária num centro perto de Mafra, onde estive internado, mas ali sentia-me deslocado, perdido. Consegui a admissão aqui na Casa do Artista e faço fisioterapia em Entrecampos. Estou o melhor que posso, mas longe de me sentir bem. É como se estivesse de fora de mim a assistir a isto, a este meu andar amparado num tripé, sem me reconhecer nele.

O AVC abalou-me também psicologicamente, porque me veio impedir de fazer uma das coisas de que mais gosto: caminhar! Para além disso, tirou-me a vontade para quase tudo, até a capacidade de ler. Sinto-me esvaziado. O meu esforço actual já não é só físico, é também não perder a intenção de ultrapassar isto, por causa do Teatro, que é a minha vida.

Faço Teatro desde os 16 anos. Quando não estou a atuar, caminho pelas ruas da cidade. Vivia sozinho, mas nunca fiz da casa um lar, apenas um abrigo onde eu pernoitava. Adorava deambular, observar pessoas e, quando se proporcionava, conversar com elas, inusitadamente. Eu sou de pessoas, não de coisas materiais. Tenho telemóvel só para atender chamadas e nem carro tenho. Duas palavras me definem: ator e caminhante. Adorava apanhar o metro no Rossio, sair na Alameda e descer a Almirante Reis a pé. É na rua que sinto o mundo, não dentro de casa.

Há quase 50 anos que tomo o pequeno almoço no Café Gelo, no Rossio, espaço de tertúlia de grandes intelectuais portugueses. Os empregados já nem me perguntam o que quero. Quando está um tempo agradável, venho fumar o meu cigarro fora.

Num desses dias amenos, vi uma senhora a gesticular. Olhou para mim e disse-me: ‘Eu não sou doida! Eu falo sozinha para não enlouquecer!’ Convidei-a para se sentar ao meu lado e estivemos duas horas e meia a conversar. Despedimo-nos num abraço, ela de lágrimas nos olhos.”


Doze passas


“Eu vivo atento às pessoas e vejo que elas se cruzam num vaivém constante mas não se olham. Faz falta mais troca de olhares e ouvidos para escutar.

Gosto também de observar o comportamento humano porque isso enriquece a minha capacidade interpretativa. Eu tenho de conseguir colocar-me nos diferentes personagens com o maior realismo possível.

De todas as pessoas se aprende, porque são tão diversas quantas as que estão numa plateia a assistir. Costumo dizer aos jovens atores: quando uma sala está cheia, nós não sabemos a cor da pele, o sexo, a idade, a religião, a orientação sexual ou política. Ali, todas as pessoas são apenas seres humanos que respeitamos profundamente. Isso é que é bonito: o respeito pelo ser humano.

Nesse aspecto, o Teatro, como a cultura em geral, une as pessoas, não as divide. A única limitação é a dificuldade que os mais desfavorecidos têm de chegar a ela. Mas foi também por isso que eu e o João Mota fundámos A Comuna há 51 anos. Fizemos acordos com Juntas de Freguesia para facilitar o acesso a pessoas de baixa condição económica. O João foi o meu grande amor, com quem estive 18 anos. Fizemos vida conjunta, mas afastámo-nos porque já éramos mais irmãos que outra coisa. Foi de tal forma uma relação importante, que além de fundarmos A Comuna, ele adoptou como filho um sobrinho meu, na altura com 4 anos, com quem ainda vive.

Depois dele, já não voltei a fazer vida conjunta. Optei por ficar sozinho, mas não solitário. Tinha o Teatro, os transeuntes, os amigos - paixões que eu sublimo - um mundo para observar… e uma família maravilhosa.

Sou um de sete irmãos, todos próximos e ligados. O meu pai era ultraconservador mas a minha mãe compensava em tudo. Conheceram-se em África. Casaram tinha ela 17 anos, três meses depois de conhecer o meu pai, e viveram uma eterna paixão.

Ela foi exemplar na maneira como nos educou. Dizia sempre: ‘Eu tenho sete filhos, mas cada um é um.’ E tratava cada filho da maneira mais acertada, com respeito, sentimento que hoje une os irmãos.

Se o meu Natal ainda tem alegria, devo-o à família que tenho. Já as doze passas vão todas para o mesmo desejo: voltar a ser autónomo!”


Carlos Paulo | Nós nos Outros

Apoiarte - Casa do Artista



Wednesday, January 03, 2024

A fuga de Peniche


 

A fuga da prisão de Peniche foi há 64 anos.
Evadiram-se, para voltarem à luta, os seguintes dirigentes do PCP:
Álvaro Cunhal
Carlos Costa
Francisco Martins Rodrigues
Francisco Miguel
Guilherme da Costa Carvalho
Jaime Serra
Joaquim Gomes
José Carlos
Pedro Soares
Rogério de Carvalho

(desenho de Margarida Tengarrinha, feito sob pormenores fornecidos por AC)