O sangrento 1º de Maio do Porto e os mortos esquecidos de 1982
Durante duas horas, homens fardados e sem freio batem e disparam às cegas. Os jornalistas “comem como os outros”, dirá um deles. Afinal, justifica, estavam ali “para bater e não para chamar ambulâncias”. Nem o serviço de Urgência do Hospital de Santo António é poupado: entram espumando e carregam sobre familiares de feridos.
O dia é 30 de abril de 1982. D. António Ferreira Gomes, bispo resignatário do Porto, recebe a medalha de ouro da cidade. A companhia Seiva Trupe estreia A Dama de Copas. O Coliseu anuncia boxe profissional a 250 escudos o bilhete, para maiores de 14. O Porto amanhece soalheiro, mas tem a noite pendente dos meses de brasa vividos por conta da guerra inflamada por dirigentes sindicais, políticos e editores de jornal: pela primeira vez, com a ajuda do Governo Civil, a UGT conquista à CGTP o direito de comemorar o “Dia do Trabalhador” em plena baixa.
“Risco de confrontos”, alerta-se nas primeiras páginas dos jornais. A “polícia de choque”, dita de Intervenção, avança da capital para o Porto munida de escudos, bastões, G-3, pistolas e gases lacrimogénios. Há comícios marcados de véspera e na Avenida dos Aliados desenham-se trincheiras: os apaniguados de Torres Couto, então secretário-geral da UGT instalam-se em frente ao edifício da Câmara Municipal, protegidos por um cordão policial. A CGTP ocupa a outra fatia da “sala de visitas” da cidade. Um cordão humano de “intersindicais” insulta e protesta contra o aparato policial, junto ao evento da UGT. “A baixa é do povo!”, gritam.
São nove horas da noite. A RTP transmite Plantão de Polícia e anuncia, para depois, o concurso Toma Lá, Dá Cá. O boxe já começou no Coliseu.
O comando distrital da PSP assume as operações e dispersa alguns agitadores à bastonada, sem grandes escaramuças. Às 23 horas, Ramos Rocha, comandante das forças no terreno, adivinha um resto de noite calmo: “Não deve haver mais problemas”, afirma. Magalhães Teixeira, comissário e responsável direto pelos pelotões da “polícia de choque” em diversas artérias de acesso à baixa, tem outros planos. Sem fazer caso da aparente tranquilidade e das ordens superiores para atuar apenas em “caso extremo”, ordena a carga policial. Rua a rua. Sem olhar a quem.
Para descrever o cenário que se seguiu, a Procuradoria-Geral da República não poupou nas palavras: “[Os polícias] agrediram indiscriminadamente todas as pessoas que se encontravam à sua frente, à bastonada e a pontapé, e às vezes com obscenidades, independentemente do sexo e idade; quer arremessassem pedras ou nada fizessem; quer fossem em fuga ou simplesmente estivessem paradas, mormente abrigadas em paragens de autocarros ou nas soleiras dos prédios. Todos eram agredidos, muitas vezes de forma selvática e por mais de um elemento policial contra a mesma pessoa, mesmo que esta se encontrasse prostrada no chão e indefesa”. Fim de citação.
Durante duas horas, homens fardados e sem freio batem e disparam às cegas. Os jornalistas “comem como os outros”, dirá um deles. Afinal, justifica, estavam ali “para bater e não para chamar ambulâncias”. Nem o serviço de Urgência do Hospital de Santo António é poupado: entram espumando e carregam sobre familiares de feridos. Foi necessária a intervenção de médicos e enfermeiros para que a violência parasse. “Pareciam cães”, lembra uma manifestante. Alguns policias dizem-se também agredidos e feridos, mas são apenas tratados a “torsões lombares” causadas pela brutalidade com que usaram os bastões.
Passa da meia-noite quando Pedro Vieira, 24 anos, operário têxtil e dirigente sindical, sai do cinema com a namorada. É apanhado pelos acontecimentos e vê-se obrigado a fugir à sanha policial. Os amigos fazem o mesmo. Ele desata a correr a caminho da ponte D. Luíz I, em direção a Gaia, onde mora. Um polícia dispara e atinge-o, pelas costas. Alvejado, Pedro corre ainda alguns metros, amparado pelos amigos. Por pouco tempo. Cai minutos depois, inerte, em consequência de lesões no tórax.
Quase duas horas mais tarde, Mário Gonçalves, 17 anos, olha, incrédulo, para as cenas que se desenrolam à sua frente. É vendedor ambulante, não é manifestante, observa apenas, enquanto conversa com os amigos, bem perto da Estação de São Bento. A agitação amedronta-o. Os amigos correm e ele, atrás de um muro, espreita. Um polícia dispara. E corre a confirmar o feito, olhar vazio num rosto de sangue. “Foi uma coisa horrível. O meu filho mais pequeno até se mijou com os nervos, de medo”, conta uma vizinha do morto ao jornalista Manuel António Pina. Mário não estava a fazer nada. Era filho de gente simples, humilde. Anos depois, a família há de contentar-se com uma indemnização, “a primeira vez que o Estado assumiu, de algum modo, a responsabilidade por excessos da polícia”, precisou, em tempos, o advogado José Afonso.
A 1 de Maio de 1982, a morte saiu à rua. Feridos, foram às dezenas. Podia ter sido pior, comentou-se, à época: “Vi um polícia tentar atingir uma pessoa pelas costas. E só não o fez porque a arma encravou no momento do disparo”, recorda Alfredo Mendes, antigo jornalista do DN, repórter na noite sangrenta do Porto. Inquiriu-se, investigou-se, nada. Só as balas extraídas dos cadáveres falam: o calibre é usado apenas por graduados (comissários, chefes de esquadra e sub-chefes) do Corpo de Intervenção.
O País ferve. O Governo da Aliança Democrática (AD), presidido por Pinto Balsemão, “lança a polícia na rua, deixa que agentes enfurecidos persigam gente desarmada”, lê-se no editorial do semanário O Jornal, que reclama o apuramento dos factos até às últimas consequências. Ramalho Eanes, Presidente da República, indigna-se. Pede-se a demissão de Ângelo Correia, Ministro da Administração Interna, então figura de anedotário nacional por causa de uma fantasiosa “revolta dos pregos”, fake news da época. Mas o homem não se demite.
Maio adentro, CGTP e UGT responsabilizam-se mutuamente. Rui Oliveira e Costa, homem próximo de Torres Couto, acusa a Intersindical de utilizar trabalhadores “como carne para canhão”. O Governo lava as mãos.
Sucedem-se as crises no seio da coligação governamental, o País arde em greves, manifestações. As notícias dão conta das dificuldades de Ramalho Eanes, inquilino de Belém, para deitar água nas várias fervuras. Mário Soares é o líder da oposição. Álvaro Cunhal é o secretário-geral do PCP. Mas a esquerda só concorda na divergência. UGT e CGTP radicalizam acusações. A crise económica é real. Noticia-se o saneamento de dirigentes sindicais, o despedimento de mulheres grávidas. Os acontecimentos do Porto, quase poderia dizer-se, são um retrato da época. Carregado nas tintas.
Entretanto, o Papa João Paulo II está para chegar. A CGTP pede uma audiência a Sua Santidade, pois pretende relatar-lhe, de viva voz, as horas sangrentas do Porto. “Agenda carregada”, respondem do Vaticano. O bispo também não recebe. O pároco da Sé, esse, recusa dizer missa em homenagem aos mortos do 1º de Maio.
O funeral das vítimas entope as principais artérias da baixa da cidade. As ruas irrigam-se de protestos. O País veste de luto. Torres Couto comenta: “Foi uma passeata de dois caixões pela cidade”.
(A partir de um artigo publicado na VISÃO, a 24 de Abril de 2002)
Miguel Carvalho
Visão, 30.04.2019 às 17h24