Saturday, August 30, 2025

Da Condição Humana

 
Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É por sermos iguais que nos esquecemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventre que surgimos.
Ary dos Santos

Monday, August 25, 2025

Pequeno Poema


Quando eu nasci,
ficou tudo como estava.
Nem homens cortaram veias,
nem o Sol escureceu,
nem houve Estrelas a mais...
Somente,
esquecida das dores,
a minha Mãe sorriu e agradeceu.
Quando eu nasci,
não houve nada de novo
senão eu.
As nuvens não se espantaram,
não enlouqueceu ninguém...
P'ra que o dia fosse enorme,
bastava
toda a ternura que olhava
nos olhos de minha Mãe...
Sebastião da Gama

Friday, August 22, 2025

Os Estivadores


Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra.
Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia.
Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
e o que antes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade.
Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto pela gravidade.
Ode marítima é que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo muito pode
mas um homem de pé pode bem mais.

Ruy Belo

Thursday, August 21, 2025

Um Adeus Português


Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada

Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
e puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti

Alexandre O'Neill

Monday, August 18, 2025

POEMA DAS ÁRVORES

 
As árvores crescem sós. E a sós florescem.
Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.
Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.
Depois por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.
E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.
Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.
As árvores, não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.
Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.
Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.
António Gedeão, in 'Obra Poética'

Friday, August 15, 2025

SONETO DA ROSA

 
Mais um ano na estrada percorrida
Vem, como o astro matinal, que a adora
Molhar de puras lágrimas de aurora
A morna rosa escura e apetecida.
E da fragrante tepidez sonora
No recesso, como ávida ferida
Guardar o plasma múltiplo da vida
Que a faz materna e plácida, e agora
Rosa geral de sonho e plenitude
Transforma em novas rosas de beleza
Em novas rosas de carnal virtude
Para que o sonho viva da certeza
Para que o tempo da paixão não mude
Para que se una o verbo à natureza.
Vinícius de Moraes

Wednesday, August 13, 2025

A Fidel Castro

 
Fidel, Fidel, los pueblos te agradecen
palabras en acción y hechos que cantan,
por eso desde lejos te he traído
una copa del vino de mi patria:
es la sangre de un pueblo subterráneo
que llega de la sombra a tu garganta,
son mineros que viven hace siglos
sacando fuego de la tierra helada.
Van debajo del mar por los carbones
Y cuando vuelven son como fantasmas:
se acostumbraron a la noche eterna,
les robaron la luz de la jornada
y sin embargo aquí tienes la copa
de tantos sufrimientos y distancias:
la alegría del hombre encarcelado,
poblado por tinieblas y esperanzas
que adentro de la mina sabe cuándo
llegó la primavera y su fragancia
porque sabe que el hombre está luchando
hasta alcanzar la claridad más ancha.
Y a Cuba ven los mineros australes,
los hijos solitarios de la pampa,
los pastores del frío en Patagonia,
los padres del estaño y de la plata,
los que casándose con la cordillera
sacan el cobre de Chuquicamata,
los hombres de autobuses escondidos
en poblaciones puras de nostalgia,
las mujeres de campos y talleres,
los niños que lloraron sus infancias:
ésta es la copa, tómala, Fidel.
Está llena de tantas esperanzas
que al beberla sabrás que tu victoria
es como el viejo vino de mi patria:
no lo hace un hombre sino muchos hombres
y no una uva sino muchas plantas:
no es una gota sino muchos ríos:
no un capitán sino muchas batallas.
Y están contigo porque representas
todo el honor de nuestra lucha larga
y si cayera Cuba caeríamos,
y vendríamos para levantarla,
y si florece con todas sus flores
florecerá con nuestra propia savia.
Y si se atreven a tocar la frente
de Cuba por tus manos libertada
encontrarán los puños de los pueblos,
sacaremos las armas enterradas:
la sangre y el orgullo acudirán
a defender a Cuba bienamada.
Pablo Neruda
Canción de gesta, 1960



Tuesday, August 05, 2025

Hoje assinei pela Paz

 
Sob as altas árvores da Alameda
e uma jovem com olhos de esperança.
Junto com ela, outras jovens pediram mais assinaturas
e aquela hora foi como uma pátria iluminada
do amor ao amor, da graça pela graça,
de uma luz para outra luz.
Hoje assinei pela Paz.
E comigo, em cem países, cem milhões de assinaturas,
cem orquestras do mundo, uma sinfonia universal,
uma única canção pela Paz no mundo.
Hoje não assinei o poema nem os pequenos artigos,
nem o documento que te escraviza,
Eu não assinei a carta que não sente
nem a mensagem que durará um segundo.
Hoje assinei pela Paz.
Para que o tempo não pare,
para que o sonho não imobilize,
para que o sorriso seja alto e claro,
para que uma mulher aprenda a ver seu filho crescer
e os alunos do filho veem como sua mãe fica cada dia mais jovem.
Hoje dei uma assinatura, a minha, pela Paz.
Um mar de assinaturas que afogam e atordoam
ao industrial e ao político da guerra.
Uma onda gigantesca de assinaturas gigantescas:
o tremor da criança que mal balbucia a palavra,
que é uma rosa das lágrimas da mãe,
a assinatura da humildade – a assinatura do poeta.
Hoje aumentei em um o número mundial de assinaturas pela Paz.
E estou feliz como um adolescente apaixonado,
como uma árvore em pé,
como a primavera inesgotável
e como o rio com seu canto de cristais soberbos.
Hoje parece que não fiz nada
e ainda assim, dei a minha assinatura pela Paz.
A jovem sorriu para mim e em seus lábios havia uma pomba viva,
e ela agradeceu-me com seus olhos de esperança
e continuei meu caminho em busca de um livro para meus filhos.
Bem, lá estava a minha assinatura, precisa e clara,
ao pé do Apelo de Berlim.
Parece que não fiz nada
e ainda assim, acredito que multipliquei minha vida
e multiplicou os desejos mais saudáveis.
Hoje assinei pela Paz.
Efraín Huerta