Monday, April 01, 2013

Um poema muito especial


1. UMA CHAMA NÃO SE PRENDE

rodeado de paredes
rodeadas de muros altos
que foram depois muralhas
um preso encarcerado
ao longo da terrível década de 50
inteira
Não cedeu.

Levado a tribunal
em 3 e 10 de Maio de 1950
só então fica a saber que Militão e Sofia
presos com ele torturados não «falaram»
não cederam E que esse grande patriota Militão
Ribeiro fazendo greve da fome foi morto
Perante o tribunal acusa os seus acusadores
Defende o seu Partido a sua acção
e a sua orientação política

Ponto a ponto responde às calúnias
que são os porcos argumentos do ódio
e do terror de estado Ponto a ponto
responde com o orgulho do homem livre
e o vigor da inteligência Responde por si
e pelos seus como quem acusa
e ameaça Ameaça o inimigo que o tem preso
Dos 11 anos seguidos, preso,
14 meses incomunicável,
8 anos em isolamento
E não cedeu Nunca cedeu
Agora na humidade salina da cela
contra o eco do estrondo do mar
que não esquece/e grita/contra a fortaleza
contra a corrente contínua dos dias e das noites
este homem livre é uma chama
uma lâmpara marina

Não cede lê e desenha lê
e estuda e escreve este homem livre
que está preso e é uma chama
açoitada pelo vento e pelo silêncio
numa cela
Não cede e escreve
A Questão Agrária
As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média
e escreve uma tradução do Rei Lear
e escreve Até Amanhã, camaradas

o homem livre encarcerado
fugiu enfim
colectivamente
a 3 de Janeiro de 1960
e nunca mais foi apanhado

2. AO ENCONTRO DO ENCONTRO

para que eu pudesse fazer o meu caminho pelo
caminho comum e partilhar o tempo
a invenção, o desejo, o trabalho e a luta por
uma terra sem amos

para que nas histórias lidas desde a infância
eu aprendesse a descobrir os meus
a articular aquelas palavras
sobre as quais o confronto ainda não terminou
e assim nos movem para que eu pudesse sentir-me esperado sobre
esta terra tão dilacerantemente bela
e tão insuportavelmente devasta

para que tendo aprendido a falar eu tivesse
podido encontrar os outros na minha língua
para que eu pudesse olhar, estender as mãos
e encontrar o corpo do mundo
como a minha tarefa comum

para que eu viesse e pudesse chegar a esta reunião contínua
esta assembleia de homens
explorados e livres, oprimidos e
livres

foi necessário que a convocatória chegasse até mim
foi necessário que eles continuassem reunidos e me esperassem
foi necessário que tu tivesses vindo e chegado antes
que te tivessem acolhido e te tivessem transformado o nome próprio
em nome comum

3. ELOGIO DA TERCEIRA COISA

entre mim e ti há a terceira coisa
aquela que nos põe ao alcance da mão
os nomes todos das coisas e as coisas sem nome

quando a multidão sagrada dos pronomes pessoais nos
permite dizer nós contra o tempo e o vento
Nós que aos cinco sentidos acrescentamos os outros

Nós a sensibilidade que imagina o comum

quando uma multidão deixa de ser
um rebanho de escravos para começar a ser
uma assembleia de humanos livres

de pé no chão da terra discutimos o que fazer
pelas mãos em concha bebemos a água
onde a luz do sol cintila irisando-a

Nós que para além de ti e de mim somos
a terceira coisa o fantasma o espectro
que lhes continua a assolar o mundo
a terceira coisa: a promessa sem garantias
a invenção do incomum que partilha o comum
o comunismo que vem connosco
e para além de nós recomeça a contar

Manuel Gusmão

7 comments:

Rogério G.V. Pereira said...

"quando uma multidão deixa de ser
um rebanho de escravos para começar a ser
uma assembleia de humanos livres

de pé no chão da terra discutimos o que fazer"
...

trepadeira said...

Quando os escravos se fazem homens.

Abraço,

mário

Luis Eme said...

muito especial mesmo, Maria.

beijinhos

O Puma said...

Excelente minha amiga

Manuel Veiga said...

excelente escolha, querida Maria...

beijo

Pata Negra said...

um poema especial, uma pessoa especial?! já sei!:
um abraço especialmente especial

OUTONO said...

...pertinente partilha!
Beijo!