Friday, June 13, 2014

Memória de Álvaro Cunhal



Uma chama não se prende

Rodeado de paredes
rodeadas de muros altos
que foram depois muralhas
um preso encarcerado
ao longo da terrível década de 50

inteira
Não cedeu.

Levado a tribunal
em 3 e 10 de Maio de 1950

só então fica a saber que Militão e Sofia
presos com ele torturados não «falaram»

não cederam E que esse grande patriota Militão
Ribeiro fazendo greve da fome foi morto
Perante o tribunal acusa os seus acusadores
Defende o seu Partido a sua acção
e a sua orientação política

Ponto a ponto responde às calúnias
que são os porcos argumentos do ódio
e do terror de estado Ponto a ponto
responde com o orgulho do homem livre
e o vigor da inteligência Responde por si
e pelos seus como quem acusa
e ameaça Ameaça o inimigo que o tem preso
Dos 11 anos seguidos, preso,
14 meses incomunicável,
8 anos em isolamento
E não cedeu Nunca cedeu
Agora na humidade salina da cela
contra o eco do estrondo do mar
que não esquece/e grita/contra a fortaleza
contra a corrente contínua dos dias e das noites
este homem livre é uma chama
uma lâmpara marina

Não cede lê e desenha lê
e estuda e escreve este homem livre
que está preso e é uma chama
açoitada pelo vento e pelo silêncio
numa cela
Não cede e escreve
A Questão Agrária
As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média
e escreve uma tradução do Rei Lear
e escreve
Até Amanhã, camaradas

o homem livre encarcerado
fugiu enfim
colectivamente
a 3 de Janeiro de 1960


e nunca mais foi apanhado




Manuel Gusmão


(de «Três Curtos Discursos em Homenagem Póstuma a Álvaro Cunhal»)

2 comments:

Justine said...

Foi muito impressionante, a morte destes três gigantes tão próximas uns dos outros!
Não se esquecem, nunca!

Manuel Veiga said...

beijo, querida Maria

fazes bem lembrar-(nos)...

beijo