Carvalhesa - Texto de Ruben de Carvalho
Carvalhesa - Texto de Ruben de Carvalho
Sexta 1 de Junho de 2001
Carvalhesa
Em Março de 1985 a Comissão Política
do CC do PCP criou um grupo de trabalho com o objectivo de se tentar criar um
tema musical para a campanha eleitoral para as eleições legislativas
desse ano e que desse identidade sonora às diversas manifestações,
desde os carros de som até aos indicativos de tempos de antena.
A primeira ideia dessa equipa foi a de encontrar
um tema de música tradicional portuguesa a que se pudesse dar um tratamento
instrumental no estilo do que entretanto se começara a chamar
MPP,
Música Popular Portuguesa. Vivia-se então um momento de
grande criatividade em termos de música popular, na esteira de
Zeca
Afonso e
Sérgio Godinho, os trabalhos dos Trovante, de Júlio
Pereira, de Fausto tinham criado uma sonoridade tão nova quanto portuguesa
e que conseguia um resultado inteiramente surpreendente: conquistava público
em todo o País e em todas as áreas culturais. Pelas suas raízes
no folclore despertava eco nas audiências culturalmente fixadas em raízes
e padrões rurais com a mesma facilidade com que desencadeava o entusiasmo
de plateias juvenis que de bom grado trocavam a batida rock por surpreendentes
linhas rítmicas bebidas em adufes e Zés-Pereiras.
Pensou-se assim procurar um dos temas tradicionais
que
Lopes-Graça harmonizara para o Coro da Academia de Amadores
de Música, assegurando mais uma significante ligação entre
duas épocas e dois estilos, ligados pela comum paixão pelo património
popular e pela comum identificação ideológica e política
com os interesses do povo português. Optou-se em primeiro lugar por uma
conhecidíssima melodia, a do «
Canta, camarada, canta».
Sabe-se como esta velha canção de contrabandistas transmontanos
adquirira durante o fascismo um cunho claramente progressista, não apenas
pelo facto de a Lopes-Graça se dever a sua divulgação,
mas também pelo uso do vocativo «camarada».
A ideia era que o arranjo fosse puramente instrumental,
mas defrontou-se a dificuldade de a melodia possuir letra tradicional e bem
conhecida entre os democratas - sendo praticamente inevitável que a sua
execução coral acabasse a generalizar-se. E se nada vinha de mal
ao mundo se num comício da então APU se cantasse «
canta,
camarada canta/canta que ninguém te afronta», já parecia
polémico que no mesmo local se atroasse os ares afirmando «
eu
hei-de morrer de um tiro/ou de uma faca de ponta»... E se não
seriam de prever críticas ao «
viva a malta, trema a terra/daqui
ninguém arredou», as coisas poder-se-iam complicar com o «
quem
há-de temer a guerra/sendo um homem como eu sou»...
Passou-se então à consulta do
livro «
Cancioneiro Popular Português» de
Michel
Giacometti (
Círculo de Leitores. Lisboa, 1981). Piano em frente,
lá se foi procurando e, uma semana decorrida, pelas três da manhã,
a «
Carvalhesa» deve ter soado pela primeira vez fora de Trás-os-Montes,
de onde é natural. Em Julho desse ano gravou-se a primeira versão
e editou-se um maxi-single de vinyl.
Como se explica no folheto que acompanhou essa
primeira edição, verificou-se, porém, ainda antes da gravação,
um «caso». Poucos dias depois da escolha, tinha-se procurado nos
discos dos «
Arquivos Sonoros Portugueses», de
Giacometti
e
Lopes-Graça, se lá estaria a «
Carvalhesa»
gravada em versão original e popular - e estava! Imediatamente se decidiu
pedir a
Giacometti uma cópia da gravação e ter-se-ia
um excelente lado B do maxi-single.
Contudo, ao ouvir o disco dos «
Arquivos»,
verificou-se com grande perplexidade que a «
Carvalhesa» que
o gravador de
Giacometti registara em Trás-os-Montes e ali se
reproduzia não era manifestamente aquela cuja pauta se encontrava no
livro e que se iria utilizar. O mistério seria decifrado dias mais tarde
pelo próprio
Giacometti.
No início deste século, um jovem
maestro e compositor alemão, nascido em Berlim em 1882, fixou-se em Nova
Iorque. Estudara em Berlim e Munique, apenas com 20 anos era maestro assistente
da ópera de Stuttgart e, em 1905, começa a desempenhar idênticas
funções no New York Metropolitan. O seu nome -
Kurt Schindler.
O trabalho de
Schindler nos Estados Unidos
foi profícuo em numerosas áreas. Criou, em 1909, o coro da MacDowell
Church (rebaptizado Schola Cantorum em 1912) que desempenhou importantíssimo
papel na divulgação e recuperação coral clássica
e moderna, foi organista do famoso Temple Emanu-El de Nova Iorque, compôs,
dirigiu.
No final da década de 20, o laureado
maestro largou a sua confortável vida de músico reconhecido e
respeitado na grande metrópole e embarcou para a Europa para fazer investigação
etnográfica - em Espanha! A escolha do local não é surpreendente:
a música espanhola, coral e de órgão, estivera sempre no
centro dos interesses de
Schindler, tanto quanto a música tradicional,
para a qual fora profundamente influenciado pelo seu professor de adolescência
Max Friedlander.
De gravador de discos de alumínio debaixo
do braço,
Schindler percorreu durante os anos de 1931 e 32 as
Astúrias, Navarra, o Norte da península, e, em 1932, atravessando
as difusas raias transmontanas, acabou por entrar em Portugal onde prosseguiu
o seu trabalho. Infelizmente, porém, o gravador avariara-se e
Schindler
fez a sua recolha em Trás-os-Montes apenas mediante transcrições
musicais.
Regressado aos EUA, viria a falecer em 1935.
Postumamente, a Columbia University editou o resultado das suas investigações
em «
Folk Music and Poetry of Spain and Portugal» (
Columbia
University. Hispanic Institut in the United States. New York, 1941. Existe uma
reedição do Centro de Cultura Tradicional. Salamanca, 1991. Vd.
http://digilib.nypl.org/dynaweb/ead/music/musschindle).
Mais de vinte anos depois, em 1958, um etnólogo
natural de Ajaccio, na Córsega, que acabara de dirigir uma missão
internacional de estudo do folclore das ilhas mediterrânicas, descobriu
o livro de
Schindler nas prateleiras da biblioteca do Museu do Homem,
em Paris. Meses depois, sobraçando o primeiro gravador
Nagra (ainda
de manivela!) a aparecer em Portugal,
Michel Giacometti seguia as pisadas
de
Schindler no Nordeste transmontano e entrava pela primeira vez num
país que iria adoptar como seu e que o iria adoptar como um dos seus
filhos.
Nessas primeiras andanças por Trás-os-Montes,
Giacometti foi ainda encontrar a memória do investigador americano
que por ali andara duas décadas antes. E o seu tecnológico microfone
era comparado, pelos músicos populares que gravou, com a fascinação
que sobre eles exercera aquele estrangeiro que escrevia sinais num papel enquanto
os escutava para depois, quase misteriosamente, repetir exactamente os mesmos
sons lendo os pontos e riscos que anotara...
Em 1981,
Giacometti teve finalmente
possibilidades de editar o seu «
Cancioneiro Popular Português»
e fê-lo com a probidade de intelectual e de homem de ciência que
era: nele não inclui exclusivamente os registos efectuadas durante o
seu trabalho e a sua colaboração com
Fernando Lopes-Graça,
mas sim uma selecção geral - definida por critérios de
rigor e qualidade - do trabalho de quantos contribuíram para a recolha
de melodias criadas pelo povo português. E ali se encontram mesmo recolhas
de homens que, fixando embora a voz do povo, bem pouco a respeitavam, como o
caso do desconfiado musicólogo amador que, nos anos 60, informou pressuroso
a PIDE de que pelas suas terras andava pregando a subversão um francês
que recolhia melodias e tradições...
Giacometti sorria,
quando contava: «
Mandei-lhe o livro, telefonou-me, agradecendo, desfazendo-se
em desculpas, tentando explicar aquilo ..» E, investigador apaixonado
e generoso, concluía: «
É de direita, mas é um
bom homem. E muito sério nas recolhas que fez.»
A «
Carvalhesa» foi uma das
peças objecto de selecção. Exactamente na mesma aldeia
(Tuiselo, perto de Vinhais - Bragança) onde em 1932
Schindler
recolhera a melodia publicada em «
Folk Songs...»,
Giacometti havia recolhido em 1970 uma outra, a que os seus executantes
populares atribuíam o mesmo nome, mas inteiramente diferente.
O facto não é estranho. Como
se afirma nas notas do «
Cancioneiro», «
a
"CarvaIhesa", dança de quatro laços, era, com a "Murinheira"
e o "Passeado", o baile preferido da região. O instrumento
tradicional a acompanhar estas danças era a gaita de foles».
Ou seja, a «
Carvalhesa» é essencialmente uma dança,
para a qual se conhecem duas melodias, mas que poderá mesmo ter sido
dançada com outras entretanto perdidas. Face às duas versões,
Giacometti entendeu ser mais interessante a recolhida por esse compositor
alemão que fora o ausente cicerone da sua descoberta de Portugal. E,
página 217 do «Cancioneiro, tema 166, lá ficaria a «
Carvalhesa»
recolhida por
Kurt Schindler.
O arranjo da «
Carvalhesa»
gravado em 1985 acompanhou a actividade política do PCP em sucessivas
campanhas eleitorais, na Festa do «Avante!», cujos palcos sempre
abre e encerra e dos quais se tornou verdadeiramente emblemática.
Ruben de Carvalho
Julho de 2001
«Carvalhesa» em formato mp3
Pauta «Carvalhesa»
http://www.pcp.pt/carvalhesa-texto-de-ruben-de-carvalho