"Caminho da manhã
Vais
pela estrada que é de terra amarela e quase sem nenhuma sombra. As
cigarras cantarão o silêncio de bronze. À tua direita irá primeiro um
muro caiado que desenha a curva da estrada. Depois encontrarás as
figueiras transparentes e enroladas; mas
os seus ramos não dão nenhuma sombra. E assim irás sempre em frente com
a pesada mão do Sol pousada nos teus ombros, mas conduzida por uma luz
levíssima e fresca. Até chegares às muralhas antigas da cidade que estão
em ruínas. Passa debaixo da porta e vai pelas pequenas ruas estreitas,
direitas e brancas, até encontrares em frente do mar uma grande praça
quadrada e clara que tem no centro uma estátua. Segue entre as casas e o
mar até ao mercado que fica depois de uma alta parede amarela. Aí deves
parar e olhar um instante para o largo pois ali o visível se vê até ao
fim. E olha bem o branco, o puro branco, o branco da cal onde a luz cai a
direito. Também ali entre a cidade e a água não encontrarás nenhuma
sombra; abriga-te por isso no sopro corrido e fresco do mar. Entra no
mercado e vira à tua direita e ao terceiro homem que encontrares em
frente da terceira banca de pedra compra peixes. Os peixes são azuis e
brilhantes e escuros com malhas pretas. E o homem há-de pedir-te que
vejas como as suas guelras são encarnadas e que vejas bem como o seu
azul é profundo e como eles cheiram realmente, realmente a mar. Depois
verás peixes pretos e vermelhos e cor-de-rosa e cor de prata. E verás os
polvos cor de pedra e as conchas, os búzios e as espadas do mar. E a
luz se tornará líquida e o próprio ar salgado e um caranguejo irá
correndo sobre uma mesa de pedra. À tua direita então verás uma escada:
sobe depressa mas sem tocar no velho cego que desce devagar. E ao cimo
da escada está uma mulher de meia idade com rugas finas e leves na cara.
E tem ao pescoço uma medalha de ouro com o retrato do filho que morreu.
Pede-lhe que te dê um ramo de louro, um ramo de orégãos, um ramo de
salsa e um ramo de hortelã. Mais adiante compra figos pretos: mas os
figos não são pretos: mas azuis e dentro são cor-de-rosa e de todos eles
corre uma lágrima de mel. Depois vai de vendedor em vendedor e enche os
teus cestos de frutos, hortaliças, ervas, orvalhos e limões. Depois
desce a escada, sai do mercado e caminha para o centro da cidade. Agora
aí verás que ao longo das paredes nasceu uma serpente de sombra azul,
estreita e comprida. Caminha rente às casas. Num dos teus ombros pousará
a mão da sombra, no outro a mão do Sol. Caminha até encontrares uma
igreja alta e quadrada.
Lá dentro ficarás ajoelhada
na penumbra olhando o branco das paredes e o brilho azul dos azulejos.
Aí escutarás o silêncio. Aí se levantará como um canto o teu amor pelas
coisas visíveis que é a tua oração em frente do grande Deus invisível."
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Livro Sexto, 1962
Saturday, September 01, 2018
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