Saturday, January 19, 2019

Adeus



Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras
e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro!
Era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.

Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava!
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
no tempo em que o teu corpo era um aquário,
no tempo em que os teus olhos
eram peixes verdes.
Hoje são apenas os teus olhos.
É pouco, mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...
já não se passa absolutamente nada.

E, no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos nada que dar.
Dentro de ti
Não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade

7 comments:

Elvira Carvalho said...

Um poema de que gosto muito.
Abraço e bom domingo

Rogério G.V. Pereira said...

Talvez um dos mais belos
e certos
poemas de amor

Maria João Brito de Sousa said...

Um dos meus favoritos, na obra de EA.

Luis said...

o geninho é isto

meia duzia de palavras simples que são como beijos ou facadas no coração

Teresa Durães said...

Adoro este poema! Adoro EA!

Justine said...

É pungente, este poema do nosso Eugénio - e tão belo, tão belo!

bettips said...

Eugénio, pausado e sempre urgente. Tão belo!