1. RECONSTITUIÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO
Elas são quatro milhões, o
dia nasce, elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café. Elas
picam cebolas e descascam batatas. Elas migam sêmeas e restos de comida
azeda. Elas chamam ainda escuro os homens e os animais e as crianças.
Elas enchem lancheiras e tarros e pastas de escola com latas e buchas e
fruta embrulhada num pano limpo. Elas lavam os lençóis e as camisas que
hão-de suar-se outra vez. Elas esfregam o chão de joelhos com escova de
piaçaba e sabão amarelo e correm com os insectos a que não venham
adoecer os seus enquanto dormem. Elas brigam nos mercados e praças por
mais barato. Elas contam centavos. Elas costuram e enfiam malhas em
agulhas de pau com as lãs que hão-de manter no corpo o calor da comida
que elas fazem. Elas vêm com um cântaro de água à cinta e um molho de
gravetos na cabeça. Elas limpam as pias e as tinas e as coelheiras e os
currais. Elas acendem o lume. Elas migam hortaliça. Elas desencardem o
fundo dos tachos. Elas passajam meias e calças e camisas e outra vez
meias. Elas areiam o fogão com palha de aço. Elas calcorreiam a cidade a
pé e à chuva porque naquele bairro os macacos são caros. Elas correm
esbaforidas para não perder o comboio, o barco. Elas pousam o cesto e
abrem a porta com a mão vermelha. Elas põem a tranca no palheiro. Elas
enterram o dedo mínimo na galinha a ver se tem ovo. Elas acendem o lume.
Elas mexem o arroz com um garfo de zinco. Elas lambem a ponta do fio de
linha para virar a camisa. Elas enchem os pratos. Elas pousam o
alguidar na borda da pia para aguentar. Elas arredam a coberta da cama.
Elas abrem-se para um homem cansado. Elas também dormem.
2. REPRODUÇÃO DA FORÇA DE TRABALHO
Elas vão à parteira que lhes
diz que já vai adiantado. Elas alargam o cós das saias. Elas choram a
vomitar na pia. Elas limpam a pia. Elas talham cueiros. Elas passam
fitilhos de seda no melhor babeiro. Elas andam descalças que os pés já
não cabem no calçado. Elas urram. Elas untam o mamilo gretado com um
dedal de manteiga. Elas cantam baixinho a meio da noite a niná-lo para
que o homem não acorde. Elas raspam as fezes das fraldas com uma colher
romba. Elas lavam. Elas carregam ao colo. Elas tiram o peito para fora
debaixo de um sobreiro. Elas apuram o ouvido no escuro para ver se a
gaiata na cama ao lado com os irmãos não dá por aquilo. Elas assoam.
Elas lavam joelhos com água morna. Elas cortam calções e bibes de
riscado. Elas mordem os beiços e torcem as mãos, a jorna perdida se o
febrão não desce. Elas lavam os lençóis com urina. Elas abrem a risca do
cabelo, elas entrançam. Elas compram a lousa e o lápis e a pasta de
cartão. Elas limpam rabos. Elas guardam uma madeixita entre dois trapos
de gaze. Elas talham um vestido de fioco para uma boneca de papelão
escondida debaixo da cama. Elas lavam as cuecas borradas do primeiro
sémen, do primeiro salário, da recruta. Elas pedem fiado popeline da
melhor para a camisa que hão-de levar para a França, para Lisboa. Elas
vão à estação chorosas. Elas vêm trazer um borrego à primeira barraca e
ao primeiro neto. Elas poupam no eléctrico para um carrinho de corda.
3. PRODUÇÃO
Elas sobem para cima de um
caixote, que ainda são pequenas para chegar à bancada de descarnar o
peixe. Elas mondam, os dedos tolhidos de frieira e urtiga. Elas fazem
descer a lâmina de cortar o coiro. Elas sopram nos dedos a aquecê-los,
esfregam os olhos, voltam a pôr as mãos por detrás da lente a acertar os
fios da matriz do transistor. Elas espremem as tetas da vaca para o
balde apertado entre as pernas. Elas fecham num dia as pregas de papel
de mil pacotes de bolacha. Elas acertam em duzentos casacos a postura da
manga onde cravar o botão. Elas limpam o suor da testa com a manga e a
foice rebrilha ao sol por cima da cabeça e da seara. Elas ouvem a
matraca de dez teares enquanto a peça cresce diante, o fio amandado de
braço a braço aberto. Elas cortam os dedos nas primeiras vinte cinco
latas até calejar bem. Elas fazem a agulha passar para cá e lá em cruz
na tela do tapete. Elas vigiam a última fieira de garrafas, caladas, à
espera da sirene. Elas carregam o cesto de azeitona à cabeça já sem
cantar, até que o sol se ponha.
4. SERVIÇOS
Elas carregam no botão da
caixa e fazem quinhentos trocos miúdos. Elas metem a cavilha, dizem
outro número e passam a vigésima chamada. Elas mexem panelões que lhes
chegam à cinta. Elas descem doze caixotes de lixo já noite fechada. Elas
fazem todas as camas e despejos de uma família alheia. Elas picam
bilhetes metidas numa caixa de vidro. Elas batem à máquina palavras que
não entendem. Elas arquivam por ordem alfabética duas mil fichas e vinte
e cinco ofícios. Elas vão outra vez buscar a gaveta das luvas para o
balcão a ver se há aquele verde. Elas aspiram do pó antes das nove doze
assoalhadas, e cento e dez degraus de alcatifa. Elas entram na praça
manhã cedo, já vindas do lota ajoujadas com o peixe para as bancadas.
Elas acertam as bainhas de joelhos, a boca cheia de alfinetes. Elas põem
trinta e duas arrastadeiras e tiram sessenta temperaturas. Elas pintam
unhas de homem. Elas guardam sanitas e fazem renda em pequenos cubículos
sem janela.
5. TRANSMISSÃO DE IDEOLOGIA
Coisas que elas dizem:
— Se mexes aí, corto-ta.
— Isso não são coisas de menina.
— O meu homem não quer.
— Estuda, que se tiveres um empregozinho sempre é uma ajuda.
— A mulher quer-se é em casa.
— Isto já vai do destino de cada um.
— Deus não quis.
— Mas o senhor padre disse-me que assim não.
— Dá um beijinho à senhora que é tão boazinha para a gente.
— Você sabe que eu não sou dessas.
— Estás a dar cabo do teu futuro com uns e com outros.
— Deixa-te disso, o que é preciso é sossego e paz de espírito.
— Comprei uns jeans bestiais, pá.
— Sempre dá para uma televisão daquelas novas.
— Cada um no seu lugar.
— Julgas que ele depois casa contigo?
— Sempre há-de haver pobres e ricos.
— Se tu gostasses de mim não
andavas com aquela cabra a gastar o nosso.— Põe o comer ao teu irmão que está a fazer os trabalhos.
— Sempre é homem.
6. PRODUÇÃO DE DESEJO
Elas olham para o espelho
muito tempo. Elas choram. Elas suspiram por um rapaz aloirado, por duas
travessas para o cabelo cravejadas de pedrinhas, um anel com pérola.
Elas limpam com algodão húmido as dobras da vagina da menina pensando,
coitadinha. Elas escondem os panos sujos de sangue carregadas de uma
grande tristeza sem razão. Elas sonham três noites a fio com um homem
que só viram de relance à porta do café. Elas trazem no saco das compras
uma pequena caixa de plástico que serve para pintar a borda dos olhos
de azul. Elas inventam histórias de comadres como quem aventura. Elas
compram às escondidas cadernos de romances em fotografias. Elas namoram
muito. Elas namoram pouco. Elas não dormem a pensar em pequenas cortinas
com folhos. Elas arrancam os primeiros cabelos brancos com uma pinça
comprada na drogaria. Elas gritam a despropósito e agarram-se aos filhos
acabados de sovar. Elas andam na vida sem a mãe saber, por mais três
vestidos e um par de botas. Elas pagam a letra da moto ao que lhes bate.
Elas não falam dessas coisas. Elas chamam de noite nomes que não vêm.
Elas ficam absortas com a mola da roupa entre os dentes a olhar o gato
sentado no telhado entre as sardinheiras. Elas queriam outra coisa.
7. REVOLUÇÃO
Elas fizeram greves de
braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta.
Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário
igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Eles
foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas
gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à
sogra que isso era dantes. Elas trouxeram alento e sopa aos quartéis e à
rua. Elas foram para as portas de armas com os filhos ao colo. Elas
ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas
choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas
choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e
não foram. Elas aprenderam a mexer nos livros de contas e nas alfaias
das herdades abandonadas. Elas dobraram em quatro um papel que levava
dentro urna cruzinha laboriosa. Elas sentaram-se a falar à roda de uma
mesa a ver como podia ser sem os patrões. Elas levantaram o braço nas
grandes assembleias. Elas costuraram bandeiras e bordaram a fio amarelo
pequenas foices e martelos. Elas disseram à mãe, segure-me aqui os
cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como
é. Elas vieram dos arrebaldes com o fogão à cabeça ocupar uma parte de
casa fechada. Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na
mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam
e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o
pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as
bestas, os homens e as crianças adormecidas.
Dezembro 1975
Maria Velho da Costa, Cravo, Lisboa, Moraes Editores, 1976.
https://youtu.be/KC4DhlU8NbU
1 comment:
E que seria do mundo sem nós?
Bom Dia da Mulher, querida amiga (tenho saudades!)
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