Sunday, April 19, 2020

A Idade do Confinamento



Nessa noite sonhou com o mar. Quando acordou não se lembrava de como ali tinha chegado nem de por que razão estava sozinho, a nadar na imensidão nocturna de um oceano tranquilo, a milhas de qualquer rochedo ou batel. Só se lembrava de que nadou durante muito tempo, até perder as forças — e acordar.

Tacteou a mesinha de cabeceira sobrelotada: os medicamentos para a ciática, o copo de água que os acompanham, um livro — a foleiríssima edição Europa-América do Rei Édipo — e, finalmente, o fio do carregador cujo rasto o conduziu ao telemóvel. Ainda eram seis, não que isso importasse e, como o pequeno-almoço só chegava às sete, assim no silêncio se deixou ficar. As cumeeiras das rugas projectando sombras fundas na cara envelhecida, iluminada pelo clarão do ecrã sem mensagens, nem notificações, nem internet, nem rede, nem nada a não ser a data: 24/7. Fazia nesse dia três anos.

Como o borralho que ainda esconde a brasa rubra sob a cinza fria de manhã, invadiu-o a recordação de um ódio antigo. O Carlos, o da comunicação, só com 55 anos e aquele sorriso de atrasado mental, a distribuir abraços cínicos e filosofia dos pacotinhos de açúcar, «Aproveita a vida, Carla! Olha que há mais vida sem ser a vender pneus», como se não quisesse saber da penalização de 60%, 0,5 por cada mês antes da hora, «nem sei por onde começar, há tanta coisa que ainda quero fazer» e ele, a responder-lhe arqueando as sobrancelhas e contraindo os lábios mudos, numa reprovação que o Carlos não era assim tão estúpido que não pudesse entender mas a que retorquiu apenas com uma petulante gargalhada, como se se estivesse a rir dele, como se soubesse que aquela merda ia acontecer.

Sentia-se enganado. Qualquer penalização teria sido melhor do que aquela reforma completa «Aproveita a vida, Carla!». Na verdade, tudo teria sido melhor do que a terrível ironia de passar duas décadas a suspirar pela reforma redentora, a sonhar com a tal casinha na Beira onde ninguém lhe maçasse a aposentação dourada nos píncaros dos escalões «nem sei por onde começar, há tanta coisa que ainda quero fazer» para, na data na santa liberdade, ficar preso num quarto «Olha que há mais vida sem ser a vender pneus» de 12 por 10 metros quadrados.

Foi apagar o brasido do ódio no chuveiro. Durante esses três anos tinha aprendido muito. Foi na paixão pelos gregos antigos que descobriu o antídoto para o ódio e a vacina para a loucura. Os helenos pensavam no tempo de uma forma diferente: imaginavam-se a recuar para o futuro de costas em vez de avançar na sua direcção. A palavra opiso, por exemplo, que significa «atrás», era usada pelos gregos para designar não o passado, mas o futuro. Quando o rei Édipo arranca os cabelos por «não poder ver o que está aqui nem o que está para trás» lamenta-se de não conseguir ver nem o presente nem o futuro porque, convenhamos, o que está à nossa frente é visível. O problema é que nós vamos para o futuro a andar para trás. O truque, ensinavam os gregos, não consistia, portanto, em planear o Cronos, o tempo sequencial, mas em identificar o Kairós, a oportunidade irrepetível de cada momento presente.

Cronos devia encolher os ombros: já não era capaz de dizer de trás para a frente, ou da frente para trás, que medidas de isolamento social se sucederam a que renovações do Estados de Emergência e que novas ordens das autoridades de Saúde se traduziram em que remodelações do quarto de confinamento. Algures no primeiro ano, o filho disse-lhe pelo telecomunicador que o decreto da 15.º renovação do Estado de Emergência proibia permanentemente os idosos com mais de 65 anos de sair do quarto de confinamento e ele, que já não vivia à espera de Cronos mas de Kairós, não fez demasiadas perguntas. Até esse ponto, os quartos de confinamento de idosos haviam sido apenas uma recomendação, mas as famílias aparentemente não respeitavam as instruções das autoridades sanitárias e o número de mortos não parava de aumentar. Para travar a formidável mortandade que grassava na terceira idade, o novo decreto impunha penas de prisão para os familiares dos idosos infectados. Não se importou demasiado: dentro da nova normalidade até era um privilegiado: a requisição generalizada impedia incontáveis famílias de cuidar dos seus idosos confinados e o seu filho, ao menos, nunca falhara uma refeição. Quando, passado uns meses, colapsaram todas as telecomunicações à excepção da rádio, isso também não o perturbou, afinal, num mundo devastado pela pandemia, ele mantinha uma vida segura e confortável, preso num quartinho, é certo, mas nos 20% de idosos sobreviventes que, perdendo o libelo grisalho de peso para a segurança social e grande estorvo em geral, passaram a ser vistos como uma relíquia tão frágil e tão rara que se tornava necessário prendê-los a todos. Só se afligiu quando o filho testou positivo, embora assintomático. O coitado não tinha sintomas nem da vida: aos cinquenta anos nem mulher nem filhos nem carreira nem casa própria nem perspectivas de um dia se reformar, como ele. Já no segundo ano, o filho informou-o de que estavam infectados todos os adultos do país em idade activa. De resto, não guardava rancor à sua prisão, um sacrifício necessário para preservar a vida, e muito menos ao seu pobre carcereiro que, obrigado por requisição civil, continuaria a trabalhar infectado, das 8 às 20 horas de segunda a sexta e enquanto o Estado de Emergência durasse. A culpa de tudo aquilo era do vírus. E o vírus não sabia sequer o que era o rancor.

Saído do duche, prosseguiu a leitura. O rei de Tebas, Laio, e a sua mulher, Jocasta, ouvem do oráculo de Delfos a terrível profecia de que o seu bebé recém-nascido, a que dão o nome de Édipo, um dia matará o pai e casará com a própria mãe. Para evitar a desgraça, Laio e Jocasta abandonam o infante à morte na natureza. A criança, contudo, escapa nos braços de um Pastor ao destino que lhe fora traçado e cresce sem saber quem é. Já um jovem, Édipo cruzar-se-á por coincidência com o séquito de Laio, que viaja em anonimato. Por motivo fútil, literalmente uma cedência de passagem num cruzamento, dá-se um confronto em que Édipo rebenta toda comitiva real à porrada e mata Laio, executando parte da profecia vaticinada à sua nascença. Embora Édipo o ignorasse, o seu futuro recuava.

Fechou o livro e vestiu-se. Sentia-se incomodado com alguma coisa que não podia identificar.

— Estás aí? — gritou ao telecomunicador.
— Sim… — afirmou, soporosa, a voz do filho passados alguns segundos.
— Estás bem?
— Estou, estou — abreviou o filho.
— Acordei-te?
— Não, não… O que se passa? — insistiu o mais novo.
— Não sei, não é nada. Acordei estranho, hoje ­— começou o progenitor.
— Mas sentes-te bem?
— Sim, sim… Não é isso — continuou contra uma timidez espessa e opaca — Hoje é o aniversário da minha reforma. Três anos, porra. Se calhar foi isso, não sei. Está tudo bem.

O silêncio sepulcral que crescia no altifalante incomodou-o.

— E como estão as coisas lá fora? — perguntou só para que o filho tivesse de falar.
— Iguais. O governo ontem disse na rádio que estão à espera de pelo menos mais cinco vagas até haver imunização — retorquiu o filho.
— E a vacina?

Novamente, o silêncio preencheu-se de estática a ziziar no telecomunicador como as cigarras no Estio. Ainda não havia vacina. O confinamento era potencialmente perpétuo.

E foi então, nesse preciso momento, que aconteceu. O filho continuava a falar sobre uma manifestação ilegal contra a requisição civil para todos os trabalhadores em idade activa, mas ele tinha deixado de o ouvir: olhava fixamente para o ecrã do telemóvel que mostrava as horas como uma sentença: eram oito horas e dez minutos.

— …e eu até concordei com a requisição ao início: se ninguém fosse trabalhar, em vez de morrerem muitos com o vírus morríamos todos de fome, mas não acho bem que…
— Sabes que horas são? — perguntou subitamente. A sua voz soou clara e calma, cortava como um machado. O filho tardou a responder. As cigarras eléctricas reocuparam o imenso espaço entre os dois — Porque não estás a trabalhar?
— Houve um problema de abastecimento — titubeou o filho — Mandaram-nos ficar só hoje em lay-off. Amanhã já…
— Não. Tu disseste-me que já não havia lay-off. Não me disseste que quando uma empresa pára os trabalhadores são automaticamente requisitados para ocupar o lugar dos mortos?
— Eu sei… — a respiração do filho suava — Nós achamos que é por isso que isto vai dar barraca… O patrão não informou o governo que ia parar e agora…
— Ok.

Conhecia o filho há mais de cinquenta anos. Ao poisar o telecomunicador, sentiu uma espuma ácida a formar-se-lhe no estômago, o coração ardia-lhe e o cérebro latejava. Não sabia porquê, mas tinha a certeza de que o filho estava a mentir.

Cirandava pelo quarto como uma fera enjaulada. Se o filho ficava em casa, a requisição civil não existia e se a requisição civil não era real, que mais não conseguia ele ver nas suas costas? Para serenar a aflição, regressou ao livro: após matar todo um cortejo de desconhecidos na sequência de uma discussão no trânsito, Édipo ouve dizer que, infeliz coincidência, o rei de Tebas havia falecido, pelo que a coroa do reino, bem como a mão da viúva Jocasta, pertenceria a quem conseguisse derrotar a esfinge. A esfinge era um terrível monstro que impunha um embargo ao comércio tebano, impedindo de entrar ou sair da cidade-estado quem não soubesse responder a uma adivinha, provação que reiteradamente terminava no estômago da esfinge. Édipo, claro está, decidiu que seria de bom alvitre tentar também a sua sorte na estrada para Tebas. «Qual é coisa, qual é ela, que de manhã caminha em quatro patas, à tarde em duas e à noite em três?», perguntou o medonho monstro com cabeça de mulher, corpo de leão e asas de águia. Édipo, que, ainda não o dissemos, era tão danado para a porrada como para as adivinhas, sem delongas respondeu: «é o homem! Na infância gatinha, quando é adulto caminha e na velhice apoia-se numa bengalinha». Derrotada por fim, a esfinge precipita-se no abismo, desimpedindo o caminho para Tebas, onde o infeliz leigarraz se casará com Jocasta e se sentará no maldito trono. Estava cumprida a profecia.

Não se conseguia concentrar. Do turbilhão de hipóteses que o zurziam como vespas uma picou-o em cheio no meio da testa: se o filho lhe mentira sobre ir trabalhar, talvez também lhe tivesse mentido sobre a pandemia. Uma e outra vez quis tergiversar o pensamento para diferentes azimutes, mas o veneno da vespa suspicácia já lhe espalhava o seu barrunto pela corrente sanguínea. Deu por si, preso naquele quarto minúsculo, a perguntar-se quanto ao certo seria verdade. Teriam as telecomunicações colapsado mesmo? Diriam os decretos do Estado de Emergência tudo o que o filho lhe relatava? O que sabia ele sobre vírus e pandemias? Quem era ele para disputar o que lhe dizia o filho, a quem dissera a rádio, a quem dissera o Presidente, a quem disseram os cientistas que era preciso fechar os velhos e trabalhar até exaustão? Poderia a pandemia durar para sempre? Ao fim de tanto tempo fechado, sem ouvir nem ver ninguém, a emergência torna-se em normalidade, a excepção converte-se em regra e o confinamento numa verdade tão desnecessária de provar ou discutir como o ar invisível que se respira.

Tinha de ouvi-lo pelos próprios ouvidos.

— Estás aí? — perguntou.— Sim — a voz seca do filho emergiu da estática.
— Quero ouvir a rádio.

A resposta do filho tardou, deixou o titanesco pedido de chumbo caído no chão, e subitamente caiu sobre ele, rápida, assertiva e com força de lei natural.

— Não pode ser, pai. Só temos uma e está comigo. Se ta desse, infectava-te.
— Não quero saber, desinfecta-a — recorreu desapegadadamente.
— O desinfectante está esgotado há dois anos, pai. Porque é que queres a rádio? Eu não te digo as notícias quando as há?
— Não interessa. Limpa-a como puderes. Usa sabonete, usa lixívia, mas traz-ma. Não oiço mais nenhuma voz há três anos. Quero ouvir a rádio. Até pode ficar desse lado da porta com o volume no máximo.
— Isto é por causa daquilo hoje de manhã? — Insurgiu-se o filho.
— Não. Só quero que me tragas a rádio durante uma hora. Estou a pedir-te.
— Não.

Um silêncio de fel borbulhava do telecomunicador, queimava-lhe os ouvidos e secava-lhe a boca.

— Se não me trouxeres imediatamente o rádio, eu vou-me embora.

De pouco serviram a súplicas enraivecidas do filho. Quando se tornou claro que o seu pedido seria indeferido, respirou fundo, colocou a máscara e agarrou na maçaneta da porta corta-fogo que, em três anos, nunca tentara rodar. A mão estremeceu-lhe quando rodou o puxador e um fio de gelo desceu-lhe pela espinha. Estava trancada. Estivera sempre trancada. E pela primeira vez, percebeu que era um prisioneiro. Por isso gritou, até a voz enrouquecer, esmurrou a porta até as mãos lhe sangrarem. Depois chamou pelo filho caído em lágrimas contra a porta como um trapo humano. Assim chorou baixinho durante muitas horas.

Costuma-se dizer que não é por falta de força que os elefantes não arrancam da terra as palancas a que os acorrentam, mas simplesmente porque assumem desde pequeninos que as estacas são impossíveis de arrancar e, quando crescem, nunca mais experimentam. Com ele fora ao contrário. Nunca tentara abrir a porta porque sempre assumira que estava aberta. Caindo por terra essa suposição, desmanchavam-se todas as outras certezas: haveria ainda confinamento obrigatório? Duraria ainda o Estado de Emergência? A requisição civil generalizada seria verdadeira? Existiria mesmo alguma pandemia?

Nessa noite, a primeira em que o filho não lhe trouxe o jantar, deitou-se na cama e retomou a leitura: volvidos muitos anos sobre a coroação de Édipo, uma misteriosa maldição abate-se sobre Tebas: toda a vida se torna estéril. A infecundidade afecta não somente os seres humanos como também as plantas e os animais por igual, matando lentamente a cidade à fome. O oráculo revela aos tebanos que a maldição só poderá ser quebrada descobrindo o assassino do rei Laio. Em busca de respostas, Édipo consulta Tirésias, o famoso profeta cego, que lhe revela ser ele o assassino de seu pai. Quando o anátema de Tirérias se confirma, o mundo de Édipo desmorona-se sob o peso da realidade. Jocasta, sua mãe e mulher, suicida-se e Édipo, incapaz de enfrentar a verdade, arranca os próprios olhos com um alfinete da mulher.

Não faria sentido esperar por Cronos, que devora tudo o que cria, era preciso agir. Édipo segredara-lhe uma ideia ao ouvido.

Na manhã seguinte, aliás como todos os dias, às 7 da manhã, o filho desceu as escadas com o pequeno almoço num tabuleiro: um copo de leite e um pão de leite com queijo e manteiga. Abriu o microondas que, através de duas portas, comunicava com o interior do quarto, permitindo desinfectar os alimentos através de uma fervura rápida, e poisou o pequeno-almoço no prato giratório. A outra porta também estava aberta, violação clara das regras de saúde, e, no chão do quarto, viu o pai, jacente de bruços numa enorme poça daquilo que tanto podia ser sangue como negra pez, não fosse só o sangue cheirar a sangue.

Destrancou a porta desesperado e ajoelhando-se junto ao pai entre soluços embargados e pedidos indecifráveis, agarrou-lhe entre as palmas a cara inerte. Procurava a ferida que tão copiosamente jorrava mas em nenhum lugar se via. Nem nos pulsos, nem no pescoço, nem nos lugares costumeiros dos suicidas convictos, nem sequer no coração, pelo menos a olho nu se visse, que ele há feridas no coração que profusamente sangram e nunca se vêem. Até que numa fracção de segundo, o pai levanta-se de um salto com um vigor juvenil guardado sabe-se lá onde, derruba no charco de sangue o filho meio atónito de cócoras e cruza como um felino o umbral. Antes que o filho pensasse sequer em se levantar, deu duas voltas à chave.

Enquanto estancava a hemorragia que provocara enterrando profundissimamente na coxa uma lâmina de barbear, ouvia os ecos abafados do filho a berrar impropérios e a projectar-se em peso contra a porta. Depois foi à janela. Forçou os olhos a habituarem-se à claridade do céu que não via há 3 anos. A rua imóvel e deserta de gente permanecia sob o mesmo feitiço soporífero. Só os gatos vadios e os estendais adejar os perfumes do detergentes da roupa na tarde de Primavera é que quebravam a ilusão de ter alguém carregado no botão da pausa. A casa também parecia congelada no tempo: o filho não mudara a posição de nada, nem sequer da televisão, que afinal continuava a funcionar normalmente. A pandemia afinal continuava, confirmou o noticiário, e a requisição civil era real, mas nem uma palavra sobre quaisquer medidas de confinamento forçado para os velhos. Algo não batia certo, como uma profecia que parece incompleta sem uma grande razão de existir.

Desceu as escadas, enfiou a cara no microondas e disse ao filho:

— Acho que me deves uma explicação.
— Vais prender-me aqui para sempre? — respondeu o filho sem o encarar. Estava sentado na cama, dobrado sobre si mesmo, com os cotovelos nos joelhos e a cabeça amparada entre as duas mãos. Dali, parecia estar a ver-se a si próprio na televisão: a barba menos branca, a cabeça menos calva, mas de resto tal pai, tal filho.
— Só se não me explicares porque é que me ias fazer isso a mim.
— Para não te infectar! Para te proteger!
— Não mintas, já estive a ver televisão.

Calmamente, o filho ergueu a cabeça e observou o quarto à sua volta como quem procura imaginar-se a viver numa casa nova. Naquele instante foi como se estivesse a olhar pela fechadura do tempo para o filho pequenino, assim sentadinho na cama do seu quarto, abstraído das profecias que lhe reservava o mundo. O que estava para fazer doeu-lhe tanto que sentiu as glândulas lacrimais em brasa e os ossos gelados e até Cronos, um tipo que devora os próprios filhos, se comoveu perante semelhante visão.

— A requisição geral — começou por fim — depois de meses em casa, fomos obrigados a ir trabalhar. Essa parte é verdade. Na fábrica todos os dias adoeciam trabalhadores. Eram substituídos automaticamente pelos funcionários das empresas que já não conseguiam laborar por problemas de logística, abastecimento ou falta de mão-de-obra. Os números de mortos também eram verdadeiros. Diziam que morrer a economia era pior do que morrermos alguns de nós. Só eles é que não morriam.
— Eles quem?
— O governo, o meu patrão… os ricos deste país. Esses aprenderam a proteger-se rapidamente. Sabes o que é que faziam? Nunca saíam de sítios como este. Maiores, é certo, mas não entendes que te estava a proteger? — perguntou o filho.
— E porque é que eu não podia saber? Porque tiveste de mentir este tempo todo? — devolveu o pai.
— A única escapatória à compulsão ao trabalho da requisição era a reforma antecipada, com um corte de 70 por cento… Só com isso eu não me safava, pai.
— Então prendeste o teu próprio pai para lhe roubares a reforma?!

O filho, como que sentindo os olhares reprovadores dos leitores, desviou os olhos envergonhados e levantou-se perturbado e sem saber que o maior opróbrio não é o seu mas o de um tempo em que os filhos dependem das reformas dos pais para se manterem vivos.

— Prendi-te aqui dentro para não morrer. Se fosse trabalhar ia trabalhar 11 horas por dia até morrer infectado.
— Porque não me pediste?
— Pedir-te uma mesada? Como um adolescente? Pedir-te que pusesses pão no prato de um velho de 58 anos? E tu, vais dizer que me dirias que sim?

Nessa noite sonhou com o mar. Quando acordou, preparou um pão com queijo e um copo de leite, tocou três vezes à porta, colocou o pequeno-almoço no prato giratório do microondas e foi ver televisão. O presidente anunciava a 50.ª renovação do Estado de Emergência, que expandia a iniciativa privada dentro das prisões e autorizava a polícia a fazer buscas sem mandato nas casas suspeitas de ocultaram trabalhadores em idade activa fugidos ao trabalho. Já não se lembrava de quase nada do sonho dessa noite, nem como ali tinha chegado nem por que razão estava sozinho, a nadar na imensidão nocturna de um oceano tranquilo, mas, de alguma forma, o sonho parecia-lhe fazer sentido.

17.4.20  
Ilustração de Renata Candeias

Wednesday, April 15, 2020

Queria tanto ser cubano

Queria tanto ser cubano

Nunca fui turista em Cuba. Nunca dormi num hotel nem molhei o cu em Varadero. Ganhei enormes bolhas nas mãos. Rebentaram-se os lábios de tanto cieiro. Transpirei ao ritmo da catana e da enxada
Em 1994 era um tenro fotógrafo e tinha ganho um prémio em Espanha. Em Cuba, milhares de Balseros partiam do Malecon em direcção ao desconhecido. No avião da Ibéria sentia o nervoso miudinho. Gastei todo o valor do prémio num bilhete para Havana. Era louco. Talvez. Deixei a minha avó a chorar. Deixei. Mas o que importava se um lado da história estava em Cuba? Todas as manhãs e a todas as horas, jornais e televisões debitavam barcos improvisados. Cuba era somente Malecon. E a outra Cuba? Foi então que parti para Caimito. De catana numa mão e máquina fotográfica na outra.

Vivíamos o tempo negro. O Período Especial. Lojas vazias. Autocarros sem peças. Prédios gastos. Luz só de vez em quando. Racionamento de leite e iogurtes. A palavra de ordem era resolver. E com engenho e persistência os cubanos resolviam. A música não faltava. Assim como não faltava a união.

O bloqueio do vizinho e a queda do muro fizeram de Cuba uma despensa vazia. Não existia quase nada. Desde o simples sabonete ao barril de petróleo. O que existia em abundância era a dignidade, e isso foi fundamental para os cubanos. O seu sistema de saúde e educação que fazem corar um país desenvolvido continuou a funcionar, a taxa de mortalidade infantil continuou mais baixa que a dos Estados Unidos, a alimentação chegou a todos. E quando a Rússia fechou todas as portas, Cuba continuou de portas abertas para receber as crianças vítimas de Chernobyl e tratá-las nos seus hospitais.

Nunca fui turista em Cuba. Nunca dormi num hotel nem molhei o cu em Varadero. Ganhei enormes bolhas nas mãos. Rebentaram-se os lábios de tanto cieiro. Transpirei ao ritmo da catana e da enxada. Fiz quilómetros de bicicleta. Fiz outros a pé ou de boleia. Percorri quase toda a ilha. Fui a festas em casas modestas. Entrei em escolas e hospitais. Discuti muito. Com artistas, com médicos, com varredores de rua, com reformados. Abracei imensa gente. Beijei com amor. Amor sentido de que algo de mágico me estava a acontecer. Não sabia o que era e ainda hoje não sei.

O povo cubano é diferente. Não parece deste mundo. Eu, fruto do capitalismo desenvolvido, sentia-me pequeno perante a grandeza de tamanha gente. Culta, interessada, inteligente e, coisa rara, humana. Em cada esquina, em cada quarteirão, numa avenida, num largo, num café, numa marginal, num quarto, numa cozinha, numa escola, num ministério, num cabeleireiro, sentia a solidariedade a fervilhar. Respiravam-se outros valores e fiquei sem respiração quando um velho me convidou a entrar na sua casa. Olha, tenho casa, televisão, banheiro e até batedeira. O velho em novo foi criado de americano. Não tinha nada, só as suas mãos e a força do saber que alguma coisa tinha de mudar. A revolução deu-lhe quase tudo. Outras tantas faltarão.
Depois de meses a aprender a ser cubano aprendi que nunca lá chegaria. Numa noite de trovoada, a Ângela, uma negra grande e linda, olhou-me nos olhos e disse "fica". Não fiquei. Não tinha a grandeza humana que um cubano tem. Depois de meses em Cuba regressei a Portugal e todos os santos domingos ia a uma cabine telefónica para ouvir a voz doce da Ângela.
Um dia a Ângela aterrou na Portela. Foram dias loucos. E numa noite num hotel em Lisboa olhei-a nos olhos e disse "fica". Não ficou. Tinha de ajudar Cuba. O amor impossível findou. Ficamos os dois nos nossos mundos tão distantes e tão próximos. Nunca mais voltei a aterrar em Havana.

Adiós, Fidel!


Thursday, April 09, 2020

Adriano Correia de Oliveira

09 abril 2007

Galeria da Música Portuguesa: Adriano Correia de Oliveira



ADRIANO

Não era só a voz o som a oitava
que ele queria sempre mais acima
nem sequer a palavra que nos dava
restituída ao tom de cada rima.

Era a tristeza dentro da alegria
era um fundo de festa na amargura
e a quase insuportável nostalgia
que trazia por dentro da ternura.

O corpo grande e a alma de menino
trazia no olhar aquele assombro
de quem queria caber e não cabia.

Os pés fora do berço e do destino
alguém o viu partir de viola ao ombro.
Era Outubro em Avintes. E chovia.

(Manuel Alegre)


Adriano Maria Correia Gomes de Oliveira nasceu no Porto, a 9 de Abril de 1942. Filho primogénito de Joaquim Gomes de Oliveira, agricultor, e de Laura Correia, doméstica, Adriano passa a infância na Quinta de Porcas, em Avintes (concelho de Vila Nova de Gaia). Em Avintes faz a instrução primária e, depois, no Porto, o curso dos liceus no Colégio Almeida Garrett e no Liceu Alexandre Herculano. É ainda em Avintes que se inicia no teatro amador e colabora na fundação da União Académica de Avintes. Inicia-se também na prática do voleibol – beneficiando dos seus dotes atléticos e da sua altura – vindo mais tarde, já em Coimbra, a ser campeão nacional da modalidade. Em Outubro de 1959, aos 17 anos de idade, matricula-se na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, mas nunca chegará a concluir o curso.
Passa a desenvolver grande actividade nos organismos estudantis da academia: canta e é solista no Orfeão Académico, fez parte do Grupo Universitário de Danças Regionais e integra o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) onde representa várias peças. A sua primeira ambição musical, ainda caloiro, é tocar viola eléctrica no Conjunto Ligeiro da Tuna Académica, do qual faziam parte José Niza, Daniel Proença de Carvalho, Rui Ressurreição, Joaquim Caixeiro, entre outros. Como José Niza já ocupava o lugar de guitarrista, Adriano abandona a ideia e dedica-se ao canto, iniciando-se naturalmente pelo fado de Coimbra. Nessa altura vivia-se em Coimbra uma das fases mais ricas da canção feita pelos estudantes. Depois da época áurea – anos 30 – protagonizada por nomes como António Menano, Francisco Menano, Edmundo Bettencourt e Artur Paredes, os anos 50 e 60 conduziram a canção coimbrã ao mais alto nível com vozes como Luiz Goes, Fernando Machado Soares e José Afonso e guitarristas como António Brojo, Eduardo Melo, Jorge Tuna, Jorge Godinho e António Portugal.
Adriano, embora não tendo sido contemporâneo, nos estudos, dos cantores referidos, conviveu com eles, sobretudo com José Afonso e Fernando Machado Soares, os quais, embora já fora de Coimbra, continuavam a manter uma ligação muito estreita com a vida académica e a influenciar os cantores estudantes dos anos
60, dos quais Adriano era companheiro: Barros Madeira, Lacerda e Megre, Sousa Pereira, Vítor Nunes, José Mesquita, José Miguel Baptista, António Bernardino e outros.
Sobre a Coimbra desses anos 60, escreve Manuel Alegre: «Vivia-se, então, quando ele [Adriano] chegou a Coimbra, um tempo de grande tensão histórica e de grande tensão interior, um tempo de impulso e de pulsão, de mudança e mutação. Algo mudara no nosso viver colectivo. Algo mudara dentro de cada um de nós. Era um tempo pejado de apelos e sinais, carregado de perigos e angústias, um tempo prenhe de coisas novas, por vezes indistintas e confusas, mas que buscavam o seu rosto e a sua forma. Ruíam tabus e mitos, levantavam-se barreiras, apertava-se a mordaça e reforçava-se a repressão, mas algo estava em marcha, algo que nenhuma censura e nenhuma polícia podiam travar: era uma nova consciência que despontava, uma energia que pulsava naquela geração sobre que se abatia, por um lado o endurecimento da ditadura salazarista, por outro o espectro cada vez mais próximo da guerra de África. Ao mesmo tempo chegavam a Coimbra ecos e notícias da luta libertadora de outros povos e também da tomada do paquete Santa Maria por Henrique Galvão, do ataque ao quartel de Beja, de manifestações e greves em Lisboa e Alentejo. E já por Coimbra tinha passado o vendaval da candidatura presidencial de Humberto Delgado, bem como a revolta da Academia contra o decreto 40.900 que visava a liquidação da tradicional autonomia das associações estudantis e, no caso particular de Coimbra, da Associação Académica. Tal como noutras épocas decisivas (recordo as gerações de Garrett e de Antero), o sopro do tempo, a corrente das ideias, o próprio fluir da História tinham chegado e provocavam um fervilhar de iniciativas, buscas, enfim, uma extrema tensão geradora duma nova mentalidade e duma nova maneira de ser. Foi nessa Coimbra que Adriano desembarcou. Trazia consigo uma grande generosidade e aquela dose de inocência que nunca haveria de perder. Não sei como, talvez por acaso, ou talvez não (não estará o Acaso, afinal, ma origem de tudo?), começou a aparecer por minha casa onde já se juntavam, entre outros, o António Portugal, o José Afonso, o Rui Pato. Descobrimos então o timbre inconfundível da voz de Adriano e também essa sua conhecida pretensão, que nunca perderia e haveria de provocar infindáveis discussões com o António Portugal, de cantar uma oitava acima de Edmundo de Bettencourt».
Com grande sensibilidade para a poesia e para a música popular, dotado de um timbre de voz único e de uma rara expressão em tudo o que interpretava, Adriano, em 1960 – um ano depois de chegar a Coimbra –, grava o seu primeiro disco, um EP com o título "Noite de Coimbra" para a editora Orfeu, de Arnaldo Trindade. O disco inclui quatro temas: "Fado da Mentira" (letra e música de António Menano), "Balada dos Sinos" (letra e música de Eduardo Melo), "Canta Coração" (letra de Eduardo Melo e música do próprio Adriano) e "Chula" (música de António Portugal). Os três primeiros temas tem acompanhamento de António Portugal e Eduardo Melo (guitarras), Durval Moreirinhas e Jorge Moutinho (violas), sendo o último um instrumental de António Portugal. Nos anos de 1961 e 1962 grava mais três EP com fados de Coimbra. Diz Paulo Sucena: «Foram os fados, na verdade, que ensinaram o jovem Adriano a colocar a voz, a respirar nos tempos certos, a atacar, a segurar ou a esvanecer as sílabas musicais, a valorizar fonológica e semanticamente os matizes das palavras, enfim, a dar aos receptores um canto limpo, verbal e musicalmente.»
Participando de corpo inteiro, e de alma e coração, na vida estudantil do início dos anos 60, e na contestação do regime político – que culminou com a greve de 1962 – Adriano cedo se apercebe que a canção era uma forma de intervenção política de grande eficácia. E foi assim que, em plena ditadura, teve a coragem de cantar textos que mais ninguém cantou e que – tal como os de José Afonso – contribuíram para corroer o regime salazarista/marcelista, o mesmo é dizer, para a criação das condições que levariam ao 25 de Abril de 1974. Em 1963, grava o EP "Trova do Vento Que Passa", que além do tema título inclui "Pensamento", "Capa Negra, Rosa Negra" e "Trova do Amor Lusíada" (poemas de Manuel Alegre e composições de António Portugal). António Portugal e Rui Pato são os acompanhantes à guitarra e à viola, respectivamente. A "Trova do Vento Que Passa" (Há sempre alguém que resiste / há sempre alguém que diz não) torna-se rapidamente um dos maiores hinos de resistência e de contestação ao regime ditatorial, a par de "Os Vampiros" de José Afonso, gravado no mesmo ano. Conta o próprio Manuel Alegre: «Por essa altura, andava eu a descobrir a poesia trovadoresca. Encantara-me precisamente o saber oficinal dos poetas-trovadores e a quase inigualável perfeição de algumas cantigas de amor e de amigo. Encantava-me a tal difícil simplicidade de algumas delas. Eram trovas e cantigas que tinham uma música lá dentro e quase se podiam assobiar. (...) E assim nasceram as Trovas. Nasceram por assim dizer quase naturalmente. Estavam na voz do Adriano, na guitarra do António Portugal, no ar novo que se respirava e vivia em Coimbra. Não mais a capa velhinha, feita mortalha para a sepultura. Havia que cantar a capa transformada em bandeira de luta e liberdade. Eram Trovas que os estudantes cantavam em coro. Trovas que já não eram apenas de Coimbra mas de todo o movimento estudantil português». A seguir, Adriano grava mais três EP: "Lira" (1964), "Menina dos Olhos Tristes" (1964) e "Elegia" (1967), marcados pelas duas vertentes que orientarão a sua obra: a canção popular portuguesa, por um lado, e a poesia criada pelos grandes poetas, por outro. Destes discos merecem destaque duas belas baladas em que se denuncia a guerra colonial: "Menina dos Olhos Tristes" (com poema de Reinaldo Ferreira - O soldadinho não volta / do outro lado do mar / O soldadinho já volta / está mesmo quase a chegar / Vem numa caixa de pinho / do outro lado do mar) e "Barcas Novas" (com poema de Fiama Hasse Pais Brandão - De Lisboa sobre o mar / Barcas novas são mandadas / Barcas novas levam guerra / Sobre o mar com suas armas).
Em 1964, Adriano viaja até Paris onde conhece Luís Cília, que permanecerá outra das suas grandes referências e que para ele compõe a música de três temas incluídos no LP "Margem Sul" (1967): "Canção Terceira" (com poema de Manuel Alegre), "Sou Barco" (com poema de Borges Coelho) e "Exílio" (com poema de Manuel Alegre). Deste belo álbum, que conta com as participações de António Portugal (guitarra) e Rui Pato (viola), merecem ainda destaque os temas "Rosa de Sangue" (com poema de António Ferreira Guedes e música de Adriano), "Margem Sul" (com poema de Urbano Tavares Rodrigues e música de Adriano), "Rosa dos Ventos Perdida", (com poema de António Ferreira Guedes e música de Adriano) e "Pedro Soldado" (com poema de Manuel Alegre e música de Adriano).
Sempre activo na vida académica, não tardará a trocar o desporto (sagrara-se campeão nacional de voleibol pela Académica) pelo crescimento envolvimento na luta política. A crise académica de 1969, porém já não o encontrará na cidade do Mondego. Quando lhe falta apenas uma cadeira para terminar o curso de Direito, em 1966, Adriano, já casado com Maria Matilde Leite (de quem terá dois filhos, Isabel e José Manuel), troca Coimbra por Lisboa, para onde pedira transferência de matrícula. Trabalha no gabinete de imprensa da FIL (Feira Internacional de Lisboa) e é produtor da editora onde sempre gravou, a Orfeu. Em 1967, é mobilizado para o serviço militar, sendo incorporado na Escola Prática de Infantaria de Mafra. Será depois transferido para Escola Prática de Cavalaria de Santarém e, por fim, para o Quartel da Ajuda, em Lisboa, de onde sai em 1970.
Em Julho de 1969, afirma à revista Flama: «O que eu pretendo fazer é, honestamente, tentar um caminho, que não seja o único, de renovar a música portuguesa, dando às pessoas algo mais que as "chachadas" alienatórias que por aí se cantam». E concretizando as suas palavras, nesse ano, Adriano tem a grande ousadia de gravar "O Canto e as Armas", um álbum quase integralmente dedicado à poesia de Manuel Alegre, que se encontrava exilado em Argel e quando o próprio Adriano cumpria o serviço militar. Todos os 13 temas do alinhamento foram compostos pelo próprio Adriano e têm acompanhamento à viola de Rui Pato. Baladas como "Raiz", "E a Carne se Fez Verbo", "Peregrinação", "Trova do Vento Que Passa n.º 2" e "As Mãos" rapidamente se tornam hinos de resistência ao Estado Novo. "O Canto e as Armas" é assim uma premonição do que viria a passar-se cinco anos depois na madrugada de 25 de Abril: o canto de Adriano e as armas de Salgueiro Maia, ambos com raízes na Escola Prática de Cavalaria de Santarém, seriam decisivos para a restauração da democracia e da liberdade em Portugal. Ainda em 1969, Adriano é distinguido com o Prémio Pozal Domingues.
Em 1970, grava o LP "Cantaremos", outro dos álbuns fundamentais da sua discografia, no qual inicia a colaboração com José Niza de resultarão alguns dos mais belos temas do seu repertório. Este disco inclui temas tão emblemáticos como "Cantar de Emigração" (com poema da galega Rosalía de Castro e música de José Niza), "Fala do Homem Nascido" (com poema de António Gedeão e música de José Niza), "Lágrima de Preta" (com poema de António Gedeão e música de José Niza), "Canção com Lágrimas" (com poema de Manuel Alegre e música de Adriano) e "Como Hei-de Amar Serenamente" (com poema de Fernando Assis Pacheco e música de Adriano). Os instrumentistas foram Rui Pato (viola, viola baixo e viola de 12 cordas) e Tiago Velez (flauta, em "Cantar de Emigração" e "Lágrima de Preta"). Contou ainda com a colaboração de Carlos Alberto Moniz nos arranjos dos temas populares açorianos ("O Sol Perguntou à Lua" e "Sapateia") e de "Canção Para o Meu Amor Não se Perder no Mercado da Concorrência" (poema de Manuel Alegre e música de Adriano).
Em Outubro de 1971, edita o LP "Gente de Aqui e de Agora", sendo a totalidade das músicas da autoria de José Niza, que as compôs no norte de Angola, durante a Guerra Colonial, onde cumpria o serviço militar como alferes-médico. O álbum, gravado nos Estúdios Polysom, sob a supervisão técnica de Moreno Pinto, inclui um poema de Fernando Assis Pacheco na contracapa e 10 canções no alinhamento, entre as quais "Emigração" (com poema do galego Manuel Curro Enríquez), "E Alegre se Fez Triste" (com poema de Manuel Alegre), "O Senhor Morgado" (com poema de Conde de Monsaraz), "Cana Verde" (com poema de Fernando Miguel Bernardes), "A Vila de Alvito" (com poema de Raul de Carvalho), "Canção Tão Simples" (com poema de Manuel Alegre), "Roseira Brava" (com poema de António Ferreira Guedes) e "História do Quadrilheiro Manuel Domingos Louzeiro" (com poema de António Aleixo). Este álbum representa ainda o início de uma nova fase na obra de Adriano, caracterizada por maiores exigências de natureza estético-musical, por um tratamento mais apurado dos acompanhamentos e arranjos e por uma pesquisa e escolha poética mais exaustiva e diversificada. É o próprio Adriano que, em entrevista a Vieira da Silva (Mundo da Canção, 1971), explicita: «Este disco é um passo enorme em frente. Em todos os aspectos: instrumentação, construção musical (que pertence a José Niza), vocalização (onde houve um trabalho muito mais cuidado do que anteriormente na técnica de cantar). Demorou mais tempo a realizar do que normalmente, porque valia a pena, porque eu sabia que estávamos a trabalhar no caminho certo e com segurança. Com segurança graças exactamente à direcção do José Niza que me podia apontar quando as coisas estavam certas ou não». Neste álbum, Adriano canta pela primeira vez com acompanhamento de orquestras, dirigidas por José Calvário (em "E Alegre se Fez Triste", o primeiro arranjo do maestro, então com vinte anos) e por Thilo Krassman (em "Cantiga de Amigo"), e por pequenos conjuntos instrumentais: viola (José Niza), piano e acordeão (Rui Ressurreição), baixo e harmónica (Thilo Krassman), bateria (José Eduardo L. Cardoso).
Até à queda da ditadura, Adriano não gravará mais discos porque se recusa a enviar os textos à Comissão de Censura. Nesse período saem alguns EP com temas dos álbuns anteriores e um LP intitulado "Fados de Coimbra" (1973) que reúne os fados dos três primeiros EP (editados em 1960 e 1961).
Em 1975, em pleno PREC, Adriano edita o LP "Que Nunca Mais", no qual musica e interpreta nove poemas de Manuel da Fonseca, corolário do trabalho que desenvolvera durante os últimos anos da ditadura. O álbum, gravado nos estúdios da Rádio Triunfo, por José Manuel Fortes, tem a direcção musical e arranjos de Fausto Bordalo Dias e conta com participação musical do próprio Fausto (guitarra acústica, percussão, kazu, coros), Júlio Pereira (guitarra solo, baixo, piano, órgão, bandolim, buzuki, cadeira, coros), Zau e Pantera (percussões), José Luís Simões (trombones de varas), Vitorino Salomé (acordeão) e Carlos Paredes (guitarra portuguesa). O alinhamento começa com "Tejo Que Levas as Águas", cuja letra (vide abaixo), passadas mais de três décadas sobre a Revolução dos Cravos, readquiriu uma surpreendente e preocupante actualidade. O álbum vale a Adriano Correia de Oliveira o Prémio de Melhor Artista do Ano atribuído pela revista britânica "Music Week".
A partir de 1975, Adriano não pára de cantar, quer em Portugal, quer no estrangeiro o que, naturalmente, lhe retira tempo para preparar novas gravações. Quer antes, quer depois do 25 de Abril, pode dizer-se que não existe sítio em Portugal onde Adriano não tenha cantado, a maioria das vezes sem as mínimas condições logísticas e técnicas e sem qualquer compensação monetária. E, por isso, morreu pobre, conta José Niza. Gravará apenas mais dois discos: em 1978, um single intitulado "Notícias d’Abril", com duas composições suas sobre poemas de Alfredo Vieira de Sousa ("Se Vossa Excelência... " e "Em Trás-os-Montes à Tarde"); e em 1980, um álbum de título genérico "Cantigas Portuguesas", em que Adriano retoma e aprofunda a exploração do nosso riquíssimo cancioneiro tradicional que havia iniciado nos anos 60. Os arranjos e a direcção musical são mais uma vez de Fausto Bordalo Dias e entre os instrumentistas contam-se o próprio Fausto e Pedro Caldeira Cabral.
Fiel ao espírito de grupo que sempre o animou, Adriano Correia de Oliveira é, em 1979, um dos fundadores da CantarAbril, cooperativa de músicos ligada ao Partido Comunista Português. Decorridos dois anos, será alvo de um processo pouco digno para a direcção da cooperativa que, pura e simplesmente, decide expulsá-lo. Motivo invocado: uma alegada dívida de 40 contos e a «inadaptação de Adriano à perspectiva mercantilista de mercado». Alguns dos seus colegas de ofício como Luís Cília, Fausto e José Afonso solidarizam-se com ele. A saúde do cantor já está consideravelmente degradada devido ao consumo imoderado de álcool. As suas actuações no último ano de vida, nomeadamente num concerto de apoio aos jornalistas da ANOP, ameaçados de desemprego, são fortemente afectadas por esse problema. A cooperativa ia endossando os convites dirigidos a Adriano para outros cantores da casa. Na altura em que mais precisava de apoio e de ajuda, Adriano vê-se abandonado e atraiçoado por muitos dos seus antigos companheiros de luta. Dois anos mais tarde, numa sessão assinalando o primeiro ano sobre a morte de Adriano Correia de Oliveira, na presença de vários membros da Cantarabril, o jornalista Júlio Pinto, também ex-militante do PCP, acusa de assassinos os que o expulsaram da cooperativa. Adriano seria depois recebido na cooperativa Era Nova, ligada a cantores próximos da extrema-esquerda, como Fausto e José Mário Branco. Mas já de pouco lhe serviu. Morre a 16 de Outubro de 1982, em Avintes, nos braços da mãe, vítima de uma hemorragia no esófago. Tinha 40 anos de idade e deixa vários projectos por realizar, designadamente uma regravação dos seus temas mais antigos.
No ano seguinte, a Orfeu lança um LP duplo contendo 22 temas intitulada "Memória de Adriano" (reeditado em CD pela Movieplay, em 1992). Em 1994, a Movieplay publica a sua "Obra Completa", numa caixa com 7 CDs (organizados tematicamente por José Niza) acompanhados de um livrinho com textos de Manuel Alegre, Paulo Sucena e José Niza. Ainda em 1994, a mesma editora lança uma compilação de 18 temas do cantor, na série "O Melhor dos Melhores". Posteriormente, alguns dos álbuns originais como "O Canto e as armas", "Cantaremos", "Gente de Aqui e de Agora" e "Que Nunca Mais" são também editados em CD.
«A voz do Adriano era uma voz alegre e triste. Solidária e solitária, havia nela ternura e mágoa, esperança e desesperança, amparo e desamparo, festa e luta. E também saudade e fraternidade. Nenhuma outra voz portuguesa, com excepção das de Amália Rodrigues e José Afonso, está tão carregada desse não sei quê antigo que trazemos no sangue, como o apelo do mar e o amor da terra, como a toada e o tom do nosso próprio ser, do seu ritmo secreto, da sua música primordial. Voz de Fado e de destino, herança talvez do mouro e do celta que nos habitam, a voz de Adriano tinha também o masculino apelo do rebate e do combate. Era uma voz que precisava de poesia e de que a poesia precisava», escreve Manuel Alegre. E acrescenta: «Sem a voz de Adriano, muitos dos poemas que os poetas escreveram não teriam chegado onde chegaram. Foi pela sua voz que eles chegaram ao povo e ao país inteiro, a tal ponto que alguns desses poemas deixaram de ter autor para passarem a fazer parte da nossa memória comum e do nosso canto colectivo».
Contudo, os media portuguesas, sobretudo a rádio, muito pouco têm feito em prol da memória de Adriano Correia de Oliveira. Apesar de estar totalmente publicada em CD, a sua riquíssima obra tem sido alvo de um silenciamento, a todos os títulos criminoso, principalmente por estar a ser negada aos mais jovens a oportunidade de tomarem conhecimento do legado de um dos compositores / intérpretes superlativos da música portuguesa de sempre. Em Maio de 2006, lavrei o meu protesto pelo que se estava a passar na rádio pública, designadamente na Antena 1 mas, infelizmente, e apesar de ter enviado uma cópia do texto aos altos responsáveis da estação pública, constato com mágoa e revolta que o grande cantor continua arredado dos alinhamentos de continuidade ("playlists"). Espero que no ano em que se comemoram os 65 anos do seu nascimento e se assinalam os 25 anos da morte, a direcção da RDP encabeçada por Rui Pêgo tenha a lucidez e a sapiência de corrigir a vergonhosa situação, mais própria de um país obscurantista e culturalmente atrasado. Foi também a pensar nisso que tomei a iniciativa de elaborar este texto.


Discografia:

- Noite de Coimbra (EP, Orfeu, 1960)
- Balada do Estudante (EP, Orfeu, 1961)
- Fados de Coimbra (EP, Orfeu, 1961)
- Fados de Coimbra (EP, Orfeu, 1962)
- Trova do Vento Que Passa (EP, Orfeu, 1963)
- Lira (EP, Orfeu, 1964)
- Menina dos Olhos Tristes (EP, Orfeu, 1964)
- Elegia (EP, Orfeu, 1967)
- Adriano Correia de Oliveira (LP, Orfeu, 1967)
- Margem Sul (LP, Orfeu, 1967)
- Adriano Correia de Oliveira (EP, Orfeu, 1968)
- Rosa de Sangue (EP, Orfeu, 1968)
- O Canto e as Armas (LP, Orfeu, 1969; CD, Movieplay, 1997)
- Cantaremos (LP, Orfeu, 1970; CD, Movieplay, 1999)
- Trova do Vento Que Passa nº. 2 (EP, Orfeu, 1971)
- Cantar de Emigração (EP, Orfeu, 1971)
- Gente de Aqui e de Agora (LP, Orfeu, 1971; CD, Movieplay, 1999)
- Batalha de Alcácer Quibir (EP, Orfeu, 1972)
- Lágrima de Preta (EP, Orfeu, 1972)
- O Senhor Morgado (EP, Orfeu, 1973)
- Fados de Coimbra (LP, Orfeu, 1973)
- A Vila de Alvito (EP, Orfeu, 1974)
- Que Nunca Mais (LP, Orfeu, 1975; CD, Movieplay, 1997)
- Para Rosalía (EP, Orfeu, 1976)
- Notícias d’Abril (Single, Orfeu, 1978)
- Cantigas Portuguesas (LP, Orfeu, 1980)
- Memória de Adriano (2LP, Orfeu, 1983; CD, Movieplay, 1992)
- Adriano Correia de Oliveira: O Melhor dos Melhores, vol. 40 (CD, Movieplay, 1994)
- Obra Completa (7CD, Movieplay, 1994)
1. Fados e Baladas de Coimbra
2. Cantigas Portuguesas
3. Trova do Vento Que Passa: Adriano Canta Manuel Alegre (I)
4. O Canto e as Armas: Adriano Canta Manuel Alegre (II)
5. Gente de Aqui e de Agora e Outras Canções: Adriano Canta José Niza
6. Que Nunca Mais: Adriano Canta Manuel da Fonseca
7. A Noite dos Poetas
- Adriano Correia de Oliveira: Clássicos da Renascença, vol. 28 (CD, Movieplay, 2000)
- Vinte Anos de Canções (CD, Movieplay, 2001)


Fontes:
- Literatura inclusa na discografia de Adriano Correia de Oliveira
- Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa, dir. Luís Pinheiro de Almeida e João Pinheiro de Almeida, Círculo de Leitores, 1998
- Página http://adriano.esenviseu.net/index.asp


Propostas para a 'playlist' da RDP-Antena 1 (e Antena 3):
(por ordem alfabética)

- A Batalha de Alcácer Quibir
- As Balas
- As Mãos
- Balada do Estudante
- Barcas Novas
- Cana Verde
- Canção da Beira Baixa
- Canção com Lágrimas
- Canção Para o Meu Amor Não se Perder no Mercado da Concorrência
- Canção Tão Simples
- Canção Terceira
- Cantar de Emigração
- Cantar Para Um Pastor
- Charama
- Deus te Salve, Rosa
- E o Bosque se Fez Barco
- Emigração
- Exílio
- Fala do Homem Nascido
- História do Quadrilheiro Manuel Domingos Louzeiro
- Lágrima de Preta
- Margem Sul
- Menina dos Olhos Tristes
- No Vale Escuro
- Pedro Soldado
- Pensamento
- Peregrinação
- Pescador do Rio Triste
- Raiz
- Regresso
- Rosa dos Ventos Perdida
- Roseira Brava
- Rosinha
- Sapateia
- Sou Barco
- Tejo Que Levas as Águas
- Trova do Amor Lusíada
- Trova do Vento Que Passa
- Trova do Vento Que Passa n.º 2
- Tu e Eu Meu Amor
- Vira Velho

(todos os temas in "Obra Completa")



Tejo Que Levas as Águas



Poema: Manuel da Fonseca
Música e voz: Adriano Correia de Oliveira


Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar

Lava-a de crimes espantos
de roubos, fomes, terrores,
lava a cidade de quantos
do ódio fingem amores

Leva nas águas as grades
de aço e silêncio forjadas
deixa soltar-se a verdade
das bocas amordaçadas

Lava bancos e empresas
dos comedores de dinheiro
que dos salários de tristeza
arrecadam lucro inteiro

Lava palácios, vivendas
casebres, bairros da lata
leva negócios e rendas
que a uns farta e a outros mata

Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar

Lava avenidas de vícios
vielas de amores venais
lava albergues e hospícios
cadeias e hospitais

Afoga empenhos favores
vãs glórias, ocas palmas
leva o poder de uns senhores
que compram corpos e almas

Leva nas águas as grades
de aço e silêncio forjadas
deixa soltar-se a verdade
das bocas amordaçadas

Das camas de amor comprado
desata abraços de lodo
rostos, corpos destroçados
lava-os com sal e iodo

Tejo que levas as águas
correndo de par em par
lava a cidade de mágoas
leva as mágoas para o mar


(in "Que Nunca Mais", 1975)

___________________________

Outros artistas desta galeria:
Carlos Paredes
Janita Salomé
José Afonso
Luiz Goes
Pedro Barroso



Retirado daqui: http://nossaradio.blogspot.com/2007/04/galeria-da-msica-portuguesa-adriano.html

Monday, April 06, 2020

*


Há-de bater-nos à porta
E antes de abrirmos entrar
Sentar-se à nossa mesa
Convidar-se p’ra jantar

Há-de deitar-se na cama
Sem lençol ou cobertor
Há-de vir de madrugada
A fingir que por amor

Há-de acordar de manhã
Tomar o café connosco
Há-de meter-se no carro
Conduzir a contra-gosto

Há-de passar a jornada
Mesmo ali ao nosso lado
Controlar a nossa luta
“É trabalho ou é cigarro?”

Há-de regressar à noitinha
Como se fosse saudade
Há-de esconder ser mentira
Mascarado de verdade

E se bebermos um copo
Há-de ser pedra de gelo
Fazer-se um abraço amigo
Passando a mão pelo pêlo

E há-de fazer-nos culpados
Pelo desejo que sentirmos
Estejamos nós acordados
Durmamos com quem dormirmos

Há-de invadir-nos o sangue
Percorrer-nos cada veia
Se formos praia ser mar
Se formos mar ser areia

Há-de tornar-se rotina
Como quem nasceu assim
Roubar-nos o corpo e a alma
O agora e o aqui

Hei-de mostrar-lhe que sei
que não passa de cilada
Resistir já é vencer
Mesmo morto hei-de dizer
Que o medo já não me mata

AM 2020