Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.
Quando nos sentíssemos cansados,
fartos do mesmo sol a fingir de novo todas as manhãs,
convocaríamos os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer:
"Fulano de tal comunica ao mundo que vai transformar-se em nuvem hoje às 9 horas.
Traje de passeio."
E então, solenemente, com passos de reter tempo,
fatos escuros, olhos de lua de cerimónia,
viríamos todos assistir à despedida.
Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio. "Adeus! Adeus!"
E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes…
(primeiro, os olhos… em seguida, os lábios…depois os cabelos…)
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se em fumo…
tão leve…tão subtil…tão pólen…
como aquela nuvem além (veem?) - nesta tarde de Outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis…
José Gomes Ferreira
Monday, November 02, 2020
Devia morrer-se de outra maneira
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