Foi há 65 anos a mais importante luta travada no mundo rural durante o fascismo
A Grande Greve do Couço
Em Junho de 1958, aquando das eleições para a Presidência da República e depois de Arlindo Vicente ter promovido a união da sua candidatura à do General Humberto Delgado, tendo em conta a necessidade do reforço das posições democráticas, o povo do Couço, tal como milhares de portugueses, mobilizou-se contra o fascismo, organizado pelo seu Partido de sempre, o PCP.
No dia 23 de Junho, para assinalar os 54 anos das lutas do povo do Couço acontecidas em 1958, o ano da Grande Greve, a Comissão de Freguesia do PCP levou a cabo uma caminhada de memória pelos locais dos grandes acontecimentos dessas heróicas jornadas de luta.
Às onze badaladas que marcavam a hora, a Rua de Angola, que acolhe o Centro de Trabalho do PCP no Couço, encheu-se de gente. Empunhando as bandeiras do seu Partido, rubras, essa massa humana dirigiu-se para o local onde era a garagem dos «Olímpios», na Rua Eng.º Aleixo Pais – o mesmo local em que, há mais de meio século, se realizou uma sessão pública de propaganda da candidatura do General Humberto Delgado.
Até lá, em passo descontraído, contava-se histórias, apurava-se recordações, falava-se do passado numa perspectiva de futuro. À medida que se avançava, outros se juntavam, engrossando a acção que prestava jus ao passado que foi de luta e cuja memória se quer preservar, como exemplo para as novas gerações.
Liliana de Sousa, da Comissão de Freguesia do PCP, fez o relato dos acontecimentos. Era, então, 6 de Junho de 1958, uma sexta-feira. Após a «despegada» dos trabalhadores, estes concentraram-se na rua principal para receber os oradores da Oposição Democrática para um comício de encerramento da campanha eleitoral. Apesar do aparato de repressão feroz, com a aldeia apinhada de elementos da GNR e pides, centenas de pessoas juntaram-se para assistir ao comício. «Esta foi, de facto, a única aldeia do País onde foi feito um comício eleitoral da Oposição Democrática», salientou a comunista, informando que, já à noite, na garagem dos «Olímpios», acotovelavam-se duas centenas e meia de pessoas para ouvir os intervenientes. A restante população que, não cabendo no pequeno espaço, ficou na rua foi sendo dispersada pelas autoridades fascistas. Lá dentro falavam os oradores e foi lida uma saudação da população do Couço à candidatura do General Humberto Delgado.
«Tivemos de ir cinco ou seis vezes a Santarém, uma vez que as sessões tinham de ser autorizadas pelo Governo Civil do distrito», afirmou Joaquim José Dias. Sobre aquele dia, recordou que os patrões «não queriam que os trabalhadores despegassem mais cedo para ir ao comício», o que acabou por acontecer. «As pessoas, segundo se conta, como era hábito na altura e para se defenderem, traziam pedras no bolso. Depois do comício terminar, os participantes depositaram as pedras, formando um monte, que nos dias seguintes foi visitado pelas populações, em sinal de resistência», acrescentou Liliana de Sousa.
O resultado mais expressivo do País
A segunda paragem da «caminhada da memória» foi junto à Escola Primária, que reportava para o dia 8 de Junho, dia da votação. Ali, os delegados da Oposição Democrática vigiavam o acto eleitoral e, por pressão das cerca de 400 pessoas que se juntavam à porta do edifício da Escola, foi possível forçar a publicação de resultados no Couço. A candidatura do General Humberto Delgado foi vencedora com mais de 80 por cento dos votos, sendo que nos resultados nacionais o fascismo atribuía falsamente uns meros 23 por cento à candidatura democrática. «Foi o resultado mais expressivo do País», salientou Arménio Marques Silva, manifestando «muita saudade» por aquele dia e «pelas pessoas que estiveram aqui comigo». Sobre aqueles tempos, o militante do PCP frisou que «a República foi um grande avanço, mas aquilo que era essencial e mais interessava às classes trabalhadoras não chegou a mudar assim tanto». Isso só aconteceu com o 25 de Abril de 1974.
Entre o dia da votação e o dia da Greve, que teve lugar a 23 de Junho, muitas foram as reuniões clandestinas organizadas pelo PCP, algumas com centenas de jovens e mulheres, designadamente no local da Serra da Burra, com o intuito de preparar a resposta à monumental burla fascista.
«O povo não arredou pé»
A terceira paragem, junto ao monumento do Povo ao Couço, assinalou a declaração da Grande Greve (23 de Junho). Nessa manhã, naquela que foi a Praça de Jorna, foram detidos João Camilo, já referenciado como militante comunista, e três homens que não dispersaram à ordem da GNR. De imediato, uma multidão, com cerca de 1500 pessoas, concentrou-se à porta do posto para exigir a libertação imediata dos presos. «O povo juntou-se, cercando o posto da GNR. A PIDE e a guarda ainda tentaram sair de jipe, mas o povo não arredou pé. Eles tiveram medo de matar alguém, porque sabiam que não saíam daqui vivos», recordou Manuel Braz.
Uma mulher, rodeada de outras e de crianças, chegou mesmo a agarrar-se ao cano da arma de um tenente da GNR para evitar que este disparasse sobre a população.
Nesse dia e nessa noite, alguns homens da Freguesia do Couço cortaram os fios telefónicos do posto, com o intuito de isolar a aldeia de comunicações com um exterior. «Acabámos por levar a nossa avante, e eles foram obrigados a soltar os camaradas, que foram levados em ombros pelas ruas do Couço», sublinhou o militante comunista.
«Esta foi uma luta muito linda e necessária para quem vive do seu trabalho. Nós éramos uns autênticos escravos», acrescentou Manuel Braz, enfatizando que também agora «é preciso lutar» porque «o capital é desmesurado, e as medidas de austeridade que nos querem impor nunca terminam».
Diamantino Ramalho, já à porta do antigo quartel da GNR, referiu, por seu lado, os grupos de homens e mulheres que, organizados, se dirigiram aos «ranchos», explicando que havia uma Greve declarada contra a burla eleitoral, e todos aderiram. A pé, chegaram a Coruche, à Barragem de Montargil e às obras dos canais do Sorraia. Aos jovens, Diamantino Ramalho apelou a que «se juntem, que não fujam», para «chegar ao que é necessário atingir». Diamantino Ramalho, terminou citando Álvaro Cunhal, que, na inauguração do Monumento ao Povo do Couço, terá dito: «O Couço em si é todo um monumento».
Luta com objectivos políticos
José Casanova, natural da Freguesia do Couço, director do Jornal Avante! e membro do Comité Central do PCP, valorizou o facto de, pela primeira vez, as mulheres terem participado «em grande número, na luta e na sua organização», assim como os jovens, e deu conta de que aquela Greve envolveu cerca de oito mil trabalhadores. «Esta foi a maior luta camponesa no tempo da fascismo, sendo a primeira a realizar-se com objectivos assumidamente políticos», destacou, frisando que «as organizações de base têm um peso muito grande na vida e na acção do Partido», tanto em 1958 como agora, em 2012.
Numa mensagem aos comunistas, que «lutaram em 1958, que conquistaram as oito horas de trabalho, a Reforma Agrária, logo a seguir ao 25 de Abril», José Casanova apelou ao «esforço» e ao «trabalho» de cada um «para que o Partido se reforce, para que chegue mais longe, e se assuma na vanguarda da luta», de modo a «honrar e dignificar as lutas do passado, particularmente a Grande Greve, cuja importância ultrapassa a freguesia do Couço, o concelho de Coruche e o distrito de Santarém».
Dar resposta aos problemas
A caminhada terminou em ambiente de grande combatividade, com todos a cantarem o Hino do Caxias, de resistência ao fascismo, mas a iniciativa continuou no Centro de Trabalho do PCP com um almoço que juntou muitas dezenas de pessoas. Ali, Pedro Silva, responsável pela organização do Couço, deixou um repto: «Os camaradas que têm memória destes acontecimentos devem transmitir, colectivamente, estes ensinamentos às futuras gerações, para que estes possam prosseguir a luta que estamos a travar e teremos de travar no futuro. Façamos desta data uma espécie de aniversário do Partido, e que daqui para a frente possamos sempre comemorar a Grande Greve do Couço.»
Tomaram ainda a palavra Luís Alberto Ferreira, presidente da Junta de Freguesia, que alertou para o encerramento de serviços públicos da Freguesia, e José Casanova, que destacou a «vaga de prisões» que aconteceu no Couço, como «não houve em nenhuma parte do País», e a «coragem» do povo, que «deve merecer a nossa admiração». «Devemos orgulhar-nos muito disto, e trazer para o presente estes exemplos do passado», sublinhou, terminando: «Nós precisamos de ser mais fortes organicamente, interventivamente, ideologicamente. Precisamos de estar melhor preparados para dar resposta à situação que hoje nos é colocada, perante esta política de direita que há mais de 30 anos está a devastar o País.»
Jornal "Avante", 28 de Junho de 2012