Thursday, October 26, 2023

Vossos nomes


No chumbo, no terror, na morte, com sangue escrevo,
Alfredo e Catarina,
vossos nomes.
Na pedra, no ácido, neste branco muro escrevo,
Humberto e Militão,
vossos nomes.
Nas trevas, no medo, na raíz da aurora, escrevo,
Maria e Lourenço,
vossos nomes.
No sonho, nos ventos, na flor do trigo escrevo,
Pedro e Guilherme,
vossos nomes.
No aço das duras tarefas, no relâmpago escrevo,
Álvaro e Rui,
vossos nomes.
No amor, na cólera, na fome desta ave escrevo,
Virgínia e António,
vossos nomes.
No sol que levamos, na verde esperança escrevo,
Paula e Dinis,
vossos nomes.
No riso, nas lágrimas, no coração da pátria escrevo
e semeio
vosso nomes.
No ventre em flor da minha amada semeio, escrevo
e multiplico
vossos nomes.
Papiniano Carlos

Monday, October 23, 2023

… e não consigo…

Entraste devagarinho dentro de mim. E eu deixei.
Inundaste-me com a alegria de um menino. E eu sorri.
Dançámos todas as danças que havia para inventar. Estremeci
e o teu coração bateu forte, apressado.
No vai e vem das marés andámos por caminhos proibidos. E tu sabias.

Demos as mãos com a ternura do amor primeiro. O nosso.
Pintámos esse amor com o vermelho da paixão. Vivido.
Das palavras que nos dissemos só uma ficou acordada. Falo da saudade
Todas as outras adormeceram no tempo no dia na hora que não escolhemos
Vejo os teus olhos que me sorriem e tu não me vês.
Dou-te um abraço apertado que tu não sentes.
Beijo-te o corpo sem te tocar e amo-te!
Mantenho o teu cheiro, que guardo com todos os sentidos.
Vives rente ao meu coração que ainda bate descompassado, por ti.
Agora sou eu que quero sair de dentro de mim.
Estilhaçar-me em mil pedaços.
… e não consigo…

Thursday, October 05, 2023

DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO

 


Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo a cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente uma pedra

busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo a corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto.

Aqui as minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco

sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu para dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada

António Ramos Rosa

(poema dedicado a Vasco Gonçalves)

(foto da abrilabril)