“Faltam cinco minutos para as 23 horas”. João Paulo Diniz fala sobre a senha que mudou o país, a democracia e o jornalismo
João Paulo Diniz explica logo no início da nossa conversa: “A senha não era a música, era a frase: ‘faltam cinco minutos para as 23 horas’” e conta que quando foi à discoteca da rádio buscar o disco do Paulo de Carvalho, trouxe também o de Beatles e mais outra meia dúzia de discos que marcavam a década de 70. “Para não dar nas vistas”, conta.
Quando o Major Costa Martins foi ter com ele à Rádio no dia 22 de abril de 1974 desconfiou que pudesse ser um esquema da PIDE. Só mais tarde, com Otelo Saraiva de Carvalho, que já conhecia desde os tempos da Guiné, percebeu que o movimento era sério. Otelo pedia confiança e que o ajudasse a enviar um sinal para todo o país. Assim, foi, e a cinco minutos das 23 horas, João Paulo Diniz lançava a primeira senha. Aos 25 minutos do dia 25, a Rádio Renascença confirmava a revolução com a segunda senha: a Grândola Vila Morena.
Para João Paulo Diniz não houve dúvidas. Se corresse mal “era um azar terrível, uma chatice em todos os aspetos”, mas o radialista confiava no movimento, tinha um desejo profundo que acabasse a guerra em África e que pudesse viver num país sem ditadura e com eleições livres. Fez a tropa com 21 anos e poucos meses depois foi mandado para a Guiné. Esteve dois anos em Bissau na rádio das Forças Armadas: “Tive sorte, mas vi coisas que preferia não ter visto”, afirma.
"Eu tinha de confiar que ia correr bem e ter fé"
Confidencia que, quando aceitou a missão de lançar a senha, contou à mãe o que ia fazer e que, naturalmente, ela demonstrou muita preocupação e pediu cuidado – o pai de João Paulo Diniz já tinha estado preso dois anos em Cabo Verde. João tentou descansar a preocupação da mãe e explica: “A fazer uma coisa destas eu tinha de confiar que ia correr bem e ter fé.”
A escolha da música também não foi consensual e se para muitos de nós a voz de Zeca é inconfundível, antes de 1974 não era bem assim. “Estava proibidíssimo pela censura, logo não tocava nas rádios e podia haver confusão entre os militares porque podiam não identificar a voz”. O radialista explica ainda que havia pessoas que conheciam o cantor e tinham os discos em casa, mas que preferia uma mensagem mais clara, uma música que todos conhecessem: a música que representou Portugal na Eurovisão: E Depois do Adeus, com a música de José Calvário, letra de José Niza e interpretação de Paulo de Carvalho.
O Festival da Eurovisão desse ano realizou-se no dia 6 de abril em Brighton, no Reino Unido, e a música que é hoje um dos marcos da Revolução ficou em último lugar.
No ano anterior, no Festival da Canção no Luxemburgo, Fernando Tordo driblava a censura no tema Tourada, com os versos de Ary dos Santos: “Com bandarilhas de esperança / Afugentamos a fera / Estamos na praça da primavera / Nós vamos pegar o mundo /Pelos cornos da desgraça / E fazermos da tristeza graça”
João Paulo Diniz estava no Luxemburgo para cobrir o evento e deslocações como esta faziam-no questionar e desejar por uma vida democrática também em Portugal.
Cresceu em tempo de ditadura e viveu com censura até aos seus 25 anos. Diz que é “uma coisa sinistra, uma dominação do pensamento das pessoas, uma desconsideração do ser humano”.
"No dia seguinte, apresentei-me ao trabalho. Foi um dia muito especial"
No dia em que lançou a música de Paulo de Carvalho continuou a trabalhar até às 2h e foi para casa dormir. Mas acordaram-no poucas horas depois com a informação de que o Rádio Clube Português estava a transmitir marchas militares. “Já sabia o que estava a acontecer e fiquei acordadíssimo”, conta. E depois? “Depois apresentei-me ao trabalho, estava de serviço e fui trabalhar. A programação estava toda alterada, foi um dia muito especial.”
Depois desse dia, para o locutor foi como se tivesse mudado de país, “não a nível geográfico, mas houve uma alteração profunda da sociedade”, conta. “Deixamos de viver sempre a falar baixinho e a desconfiar que o outro poderia ser da PIDE.”
Na redação, e mesmo passados alguns meses sobre a revolução, pensava muitas vezes ao ler as notícias: “Isto há uns meses era impensável. Não é que fosse nada de transcendente, mas agora podíamos dizer à vontade. Deu-me um gozo espantoso”, relembra.
Meio século de diferenças entre troca de pesetas e o imediatismo da informação
Comemorou 50 anos de carreira em 2015. Este ano, em março, a Sociedade Portuguesa de Autores atribuiu-lhe o Prémio Igrejas Caeiro. O interesse pela rádio começou bem cedo e aos 13 já tentava fazer audições, aos 16 começou a trabalhar na Rádio Peninsular. Depois trabalhou no Rádio Clube e foi para Londres, onde esteve seis anos na BBC: “Foi das melhores experiências da minha vida”, recorda. Trabalhou cerca de 30 anos na Antena 1, passou pela RTP, SIC e TVI e dirigiu a Rádio Alfa, em Paris.
Ao longo destes anos, entrevistou nomes que ficam para sempre na história, como Salvador Dali, Fidel Castro e por cá Ruy de Carvalho ou Eunice Muñoz. Destaca o encontro com Nelson Mandela: “Vê-lo é um momento daqueles em que uma pessoa quase que se belisca. Ele era espantoso, um homem inteligentíssimo, eu estava ali com muito respeito por ele”, conta.
Meio século depois, trabalhar em televisão e rádio é completamente diferente. “Tudo se transformou. Há uma agressividade muito grande, mas no bom sentido: quando acontece algo, em instantes está lá um repórter”, aprecia e recorda o tempo em que foi cobrir o assalto ao Banco Central de Espanha, em Barcelona. Em maio de 1981, sob a direção de Adelino Gomes, João Paulo Diniz foi enviado para a Catalunha: “Tínhamos de ir à agência de viagens para marcar a viagem e tive de ir por Madrid para o nosso correspondente me ir levar pesetas.”
Elogia a rapidez com que hoje se chega ao local e a facilidade com a que a informação é transmitida mas deixa também críticas a um culto da imagem em detrimento da credibilidade.
“Acho que é ótimo haver cursos de comunicação social e haver estágios nas rádios, jornais e televisões, pois isto dá uma pequena tarimba aos jovens”, conta. O primeiro curso de jornalismo em Portugal surgiu apenas em 1979, na Universidade Nova de Lisboa, e a profissão aprendia-se e afinava-se nas redações com os mais velhos. “Hoje, tenho a sensação de que atiram a gente nova aos crocodilos, percebe-se que ainda não estão em condições para enfrentar uma câmara de televisão e mostrar credibilidade, acho isso uma péssima ideia. É preciso começar devagarinho para depois se poder levantar voo".
Comparando a informação em Portugal com a de outros meios anglo-saxónicos, afirma que tem pena de por cá não se ver locutores “de cabelos brancos” e que “há muitas carinhas larocas”. “A televisão não é uma passagem de modelos, é essencial transmitir credibilidade”, afirma.
“A democracia é uma coisa muito séria”
Quando questionado sobre as expectativas que se tinham naquela época para a democracia e como avalia o seu estado na atualidade, João Paulo Diniz é perentório: “A democracia é uma coisa muito séria. Pela democracia, houve milhares de portugueses que foram presos, que foram torturados, que foram mortos. É uma coisa muito séria.”
O locutor, hoje com 73 anos, desenvolve: “Acho que a democracia se traduz numa expressão que ouço há muito tempo: a máxima liberdade. Concordo muito, mas é importante referir que isto traz a máxima responsabilidade. E eu acho eu a democracia é isso: a máxima liberdade com a máxima responsabilidade.”
Um dos homens que deu início a um dos dias mais importantes da história do país, afirma que fica muito desiludido com os níveis de abstenção a que se vão assistindo nas várias eleições. “A democracia somos nós que a construímos e quando há eleições e as pessoas ficam a dormir ou vão dar uma volta e não votam, acho que depois não deviam fazer críticas”, ao mesmo tempo, delega responsabilidade sobre o descontentamento com a classe política aos governos e que têm obrigação de se perguntar o que estão a fazer de errado para as pessoas não se interessarem pela participação democrática.
João Paulo Diniz acrescenta ainda: “Há atitudes de certos deputados na Assembleia da República que me chateiam solenemente, há comportamentos que são anedóticos, fazem show-off, gracejam, mandam bitaites e, para mim, isto é brincar com coisas muito sérias.” “Acho a negação do espírito democrático, os senhores deputados têm uma missão fantástica, mas o país espera mais”, sentencia.
Entrevista originalmente publicada a 25 de Abril de 2022.