Wednesday, April 17, 2024

100 ANOS QUE PASSARAM, 100 ANOS QUE HÃO-DE VIR


1 O PRIMEIRO DIA 

- Boa noite, mulher! João, dá um beijo ao pai. 

- Chegaste tão tarde, homem. Deves vir com fome. Fiz aquela sopa de couve com batatas de que tanto gostas. Tem um pingo de azeite e duas rodelinhas de linguiça, era o que havia. 

- São para o miúdo. 

- Hoje é Domingo, pai. Não foste à fábrica…(1) 

- Fui a Lisboa, à Rua da Madalena… Gente como eu, de famílias como nós… 

- Desembucha, homem! Até o moço parou de comer. 

- Então vou contar-te do que é feita essa sopa que tens no prato.

- Sim, pai, conta-me tudo. 

- Os operários, como eu, lidam com ferramentas. Alicates, bigornas, ferros de soldar, martelos e punções, entendes? Têm todas o mesmo dono, aquele a quem chamamos patrão. Mas também lidamos com grilhetas, correntes de amarrar, e puas de colar ao chão. São as ferramentas da exploração e também têm o mesmo dono. 

Se não nos libertarmos das segundas seremos eternamente escravos das primeiras. 

É por isso que o pai sai de noite para a fábrica e só chega a casa de noite. É por isso que achamos boa esta sopa quente de couve com batatas. É por isso que hoje fui a Lisboa, à Rua da Madalena. 

Gente como eu, de famílias como nós… 

Tudo o que acabaste de ouvir está dentro desse prato de sopa que tens à frente. 

- Serve-te, homem, mais uma concha, precisas de te alimentar! 

- Serve-te a ti e serve também o menino.   


 2 UM PUNHADO DE TRIGO 

- Bom dia, mãe! 

- Bom dia, João! 

Depois de comeres quero que vás à despensa e olhes bem para a saca de trigo que o teu pai trouxe. 

- É tão grande, minha mãe, como pode o pai com ela?    

- Com a vida, meu amor: É o peso da vida! 

- E agora, o que queres que faça, mãe? 

- Quero que a abras e apanhes um punhado de trigo, com a mão bem fechada, e voltes para a mesa. 

Quantas bagas de trigo encontraste na saca? 

- Não sei, mãe, devem ser milhões… 

- Cada baga é uma pessoa que deu tudo por nós. Que enfiaram no degredo, que maltrataram, que torturaram, e que, até mataram. São pessoas do Mundo inteiro. 

- E este punhado, mãe, que trago junto a ti? 

- Essas são as nossas, as da nossa terra. Cada baga tem um nome, um rosto, uma identidade. A todas elas roubaram anos de vida e, por vezes, a vida inteira. Afinal tudo o que queriam era o bailado primordial das searas ao vento. Foi para isso que nascemos: somos filhos da mesma terra e um dia seremos iguais no bailado e na bonança. 

- É por isso que tu dizes que o futuro há-de ser melhor? 

- Sim, meu filho, é por isso que digo. E ele também está nas tuas mãos e no punhado de trigo que trouxeste. 

- Que farei com ele, minha mãe? 

- Espalha as bagas no alegrete do quintal, aquele que o pai pintou de vermelho, deita-lhe uma pouca de água e a Natureza fará o seu curso. 

- Como nós, mãe? 

- Como nós, amor!  


3 MORTALHAS E LÁPIS DE COR 

- Bom dia, mãe! 

- Bom dia, filho! 

- A mãe hoje vai sair. Vou visitar o pai. Levo-lhe mortalhas, um lápis e os resultados da bola. 

- Mortalhas, mãe? O pai não fuma… 

- Por isso lhe levo um lápis. 

- A que horas voltas, mãe? 

- Não sei! O pai um dia disse-me que o inferno tem os relógios parados. 

- Espero-te à porta, então, a noite inteira se for preciso. 

- É uma noite muito longa, meu amor. Faz muito frio e os lobos rondam a casa.  Se quando chegares eu não estiver, vai para casa da tia Amélia. Ela sabe de tudo e tem tudo o que tu precisas: pão com manteiga, uma canjinha para o jantar, uma sebenta e lápis de cor. 

- Queres que te faça um desenho mãe? 

- Quero muito, João! Quero muito! 

- Vou desenhar o nosso alegrete vermelho com o trigo a despontar. Ao pezinho mais bonito, aquele que se inclina para mim, darei o nome do pai. 


4 LIVRO EM BRANCO 

- Pai! 

- Diz, filho. 

- Que livro é aquele que tens na mesinha de cabeceira? 

- Foi feito por mim, nas pequenas horas vagas. Quem me ensinou foi um velho mestre encadernador. Cosidinho à mão, fio norte, requife… tudo o que um bom livro merece. 

- Mas não tem nada escrito, pai. Para que serve um livro em branco? 

- Para colocarmos um sonho em cada folha. 

- Mas como? Explica-me tudo, pai. 

- Uma canção bonita, um quadro, um poema, até um bailado podemos ver nesse livro. Está lá tudo o que quisermos e só nós conseguimos ver e ouvir. 

Tudo o que nós amamos e eles odeiam cabe nesse Livro dos Sonhos. 

- Mas isso não é perigoso, meu pai? 

- É! Se um dia eles cá voltarem para me levarem de novo, certamente roubarão o livro. Nunca entenderão aquelas folhas em branco, nunca conseguirão ler a esperança de cada folha. Essa será a nossa vitória desse dia. 

- E se assim for, pai, o que faremos? 

- Faremos um livro novo. 

Chegará o dia em que, com uma caneta de tinta permanente, passaremos a limpo tudo o que nos vai na alma e abriremos o nosso livro para que todos o possam ver. Com ele faremos uma grande Festa. Todos os anos faremos uma grande Festa. Todos os sonhos escondidos terão a luz do dia, tudo o que o futuro nos destina terá uma candeia. 

- É por isso que tu e a mãe dizem que futuro espera por nós? 

- É, filho. É por isso mesmo! 

- Pai, posso abrir o livro e imaginar um conto bonito com crianças, flores e animais? 

- Podes, João! Esse livro será a tua maior herança.   


5 CASA SEM MORADA 

- O que estás a fazer, pai? 

- Uma mala com um avio de roupa para ti. Pijama, roupa de sair, e um agasalho de lã feito pela tua mãe… Acho que está tudo. 

- Mas para quê, pai? Onde me levas? 

- Vais passar uns tempos a casa da tia Amélia. Ela já tem um divã de abrir e fechar no canto da sala. 

- E tu, pai? E a mãe? 

- Nós vamos passar uns tempos numa casa sem morada. 

- Mas onde, pai? Como saberei de vós? 

- Vais levar contigo o nosso Livro dos Sonhos, aquele que tem as folhas em branco e só nós conseguimos ler. Quando a saudade te apertar, abre o livro. Poderás ver os pais nos locais que o teu coração te indicar. É um segredo só nosso! 

- Mas quando poderei voltar a tê-los? 

- O inferno tem os relógios parados… 

- E vocês, queridos pais, o que vão fazer longe de mim? 

- Fazer andar os ponteiros, meu filho. Fazer andar os ponteiros.    


6 O DIA MAIS BONITO 

- Tia Amélia!? 

- Diz João… 

- O relógio da sala está quase a dar as 11 da noite, estás a ouvir rádio… 

- São insónias e pressentimentos… tenta dormir, meu amor. 

Quis saber quem sou 
O que faço aqui 
Quem me abandonou 
De quem me esquec

- É tão bonita essa canção, tia. 

- Pois é, João! Vou baixar o som, por causa dos vizinhos, vê se dormes, a tia não consegue. 

Grândola, vila morena 
Terra da fraternidade 
O povo é quem mais ordena 
Dentro de ti, ó cidade! 

- Tia, essa canção fala de coisas perigosas, daquelas coisas que só nós vemos no livro que o meu pai fez… 

- Sim, meu amor. É verdade! Esta é a noite de todas as insónias e pressentimentos. - Tia, também tenho insónias e são 4 de madrugada… Não desligues o rádio. 

Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas… 

- Tia, os ponteiros do relógio da sala não param. Será que o relógio do inferno também começou a trabalhar? 

- Acho que sim, João! Isso só quer dizer que ele tem os dias contados. 

- E os meus pais, tia? Tenho tantas saudades… 

- Quando o Sol subir vou à procura deles. Acho que sei onde os encontrar. 

- Onde, Tia? Onde estarão? 

- No Largo de Carmo. É mais um pressentimento… 

- Vais deixar-me sozinho? Tenho medo! 

- Hoje não, João! Hoje é o primeiro dia sem medo. Faz um desenho bonito na tua sebenta para quando os teus pais chegarem. Eles vão ficar tão felizes… 

- Está bem, tia Amélia! Vou desenhar um menino como eu a pôr uma flor no cano de uma espingarda.    


7 O LIVRO DA LEI 

- Bom dia, mãe! Que livro é esse que trazes? É o nosso Livro dos Sonhos? 

- Não, querido! É o Livro da Lei. Foi o Dia Mais bonito que permitiu fazê-lo. 

- E nesse Livro da Lei está lá algum sonho nosso? 

- Sim! Estão lá muitas coisas que sonhámos e a promessa de sonhos vindouros. Está lá uma casa para todos, uma escola bonita para ti e para os outros meninos, estão lá doutores e enfermeiros para quando estivermos doentes, estão lá os livros que eram proibidos e que agora deixaram de ser, a música, o teatro… Tudo o que estava no Livro dos Sonhos agora está a tinta permanente no Livro da Lei. 

- E eles vão deixar? Vão respeitar esse Livro? 

- Vão fazer o que puderem para o evitar. Lembras-te quando os pais foram morar para uma Casa sem Morada? 

- Sim, minha mãe! Fiquei na casa da tia Amélia… 

- Essas casas agora têm todas morada e, para que não haja dúvidas, têm todas a nossa bandeira à entrada. 

Vão ser maus como sempre foram, vão tentar destruí-las, vão mentir com todos os dentes sobre as nossas intenções, vão tentar enganar o Povo com todas as mentiras que aprenderam no inferno. 

- E nós, o que faremos, mãe? 

- O que sempre fizemos. Lembras-te das ferramentas que o pai usa? Alicates, bigornas, ferros de soldar, martelos e punções… 

- Lembro muito bem, mãe. 

- Continuaremos ao lado de quem as usa. De quem usa as ferramentas da terra; de quem usa as ferramentas do pensamento; de quem usa o coração a bater por um Mundo melhor. 

- Só que agora esse sonho já tem morada certa… 

- Sim, meu amor! Esse sonho habita em casas com a nossa bandeira à porta. São as casas mais Livres do Mundo.    


8 O FUTURO TEM PARTIDO

- Pai!?

- Diz, João!

- Lem­bras-te quando foste a Lisboa, à Rua da Ma­da­lena?

- Lembro-me muito bem! Foi há 100 anos, mas lembro-me como se ti­vesse sido ontem.

- Quando che­gaste a casa fa­laste-me de gri­lhetas, cor­rentes de amarrar, e puas de colar ao chão.

Ex­pli­caste-me isso en­quanto jan­tá­vamos uma sopa de couve com ba­tatas…

- É ver­dade, meu filho! Foi a luta e a me­mória que nos trou­xeram aqui.

- E agora, pai? Conta-me tudo…

- Agora, ainda não nos li­vrámos delas… mas po­demos cerrar os pu­nhos à porta da fá­brica e erguê-los em todas as praças.

Somos todos iguais na hora do nas­ci­mento. Um mi­nuto de­pois pa­rece que temos o des­tino tra­çado. Uns, como o pai, têm de tra­ba­lhar muito para essa sopa que tens à frente. Ou­tros têm quem lhes ponha a mesa com co­midas e vi­nhos finos. Já não são nossos donos, mas ainda são donos de grande parte do nosso tra­balho.

- Achas que um dia dei­xará de ser assim?

- Tenho a cer­teza, meu filho! Tenho a cer­teza!

- Mas quando, pai? Quando?

- Não sei, João! Apenas sei que hoje é o pri­meiro dia dos pró­ximos 100 anos.

- Pai, vou fazer um de­senho desse dia!

- Faz! Quando es­tiver ter­mi­nado leva-o para a nossa casa, aquela que tem a ban­deira à en­trada, e pen­dura-o na pa­rede por cima da es­tante. Assim, quando algum de nós es­tiver de­sa­ni­mado po­derá olhar para o teu de­senho e sorrir com a cer­teza que o Fu­turo tem Par­tido.

João Monge

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(1)  N.A. 6 de Março de 1921 foi um Domingo.  

#50Anosdo25deAbril

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