1 O PRIMEIRO DIA
- Boa noite, mulher! João, dá um beijo ao pai.
- Chegaste tão tarde, homem. Deves vir com fome. Fiz aquela sopa de couve com batatas de que tanto gostas. Tem um pingo de azeite e duas rodelinhas de linguiça, era o que havia.
- São para o miúdo.
- Hoje é Domingo, pai. Não foste à fábrica…(1)
- Fui a Lisboa, à Rua da Madalena… Gente como eu, de famílias como nós…
- Desembucha, homem! Até o moço parou de comer.
- Então vou contar-te do que é feita essa sopa que tens no prato.
- Sim, pai, conta-me tudo.
- Os operários, como eu, lidam com ferramentas. Alicates, bigornas, ferros de soldar, martelos e punções, entendes? Têm todas o mesmo dono, aquele a quem chamamos patrão. Mas também lidamos com grilhetas, correntes de amarrar, e puas de colar ao chão. São as ferramentas da exploração e também têm o mesmo dono.
Se não nos libertarmos das segundas seremos eternamente escravos das primeiras.
É por isso que o pai sai de noite para a fábrica e só chega a casa de noite. É por isso que achamos boa esta sopa quente de couve com batatas. É por isso que hoje fui a Lisboa, à Rua da Madalena.
Gente como eu, de famílias como nós…
Tudo o que acabaste de ouvir está dentro desse prato de sopa que tens à frente.
- Serve-te, homem, mais uma concha, precisas de te alimentar!
- Serve-te a ti e serve também o menino.
2 UM PUNHADO DE TRIGO
- Bom dia, mãe!
- Bom dia, João!
Depois de comeres quero que vás à despensa e olhes bem para a saca de trigo que o teu pai trouxe.
- É tão grande, minha mãe, como pode o pai com ela?
- Com a vida, meu amor: É o peso da vida!
- E agora, o que queres que faça, mãe?
- Quero que a abras e apanhes um punhado de trigo, com a mão bem fechada, e voltes para a mesa.
Quantas bagas de trigo encontraste na saca?
- Não sei, mãe, devem ser milhões…
- Cada baga é uma pessoa que deu tudo por nós. Que enfiaram no degredo, que maltrataram, que torturaram, e que, até mataram. São pessoas do Mundo inteiro.
- E este punhado, mãe, que trago junto a ti?
- Essas são as nossas, as da nossa terra. Cada baga tem um nome, um rosto, uma identidade. A todas elas roubaram anos de vida e, por vezes, a vida inteira. Afinal tudo o que queriam era o bailado primordial das searas ao vento. Foi para isso que nascemos: somos filhos da mesma terra e um dia seremos iguais no bailado e na bonança.
- É por isso que tu dizes que o futuro há-de ser melhor?
- Sim, meu filho, é por isso que digo. E ele também está nas tuas mãos e no punhado de trigo que trouxeste.
- Que farei com ele, minha mãe?
- Espalha as bagas no alegrete do quintal, aquele que o pai pintou de vermelho, deita-lhe uma pouca de água e a Natureza fará o seu curso.
- Como nós, mãe?
- Como nós, amor!
3 MORTALHAS E LÁPIS DE COR
- Bom dia, mãe!
- Bom dia, filho!
- A mãe hoje vai sair. Vou visitar o pai. Levo-lhe mortalhas, um lápis e os resultados da bola.
- Mortalhas, mãe? O pai não fuma…
- Por isso lhe levo um lápis.
- A que horas voltas, mãe?
- Não sei! O pai um dia disse-me que o inferno tem os relógios parados.
- Espero-te à porta, então, a noite inteira se for preciso.
- É uma noite muito longa, meu amor. Faz muito frio e os lobos rondam a casa. Se quando chegares eu não estiver, vai para casa da tia Amélia. Ela sabe de tudo e tem tudo o que tu precisas: pão com manteiga, uma canjinha para o jantar, uma sebenta e lápis de cor.
- Queres que te faça um desenho mãe?
- Quero muito, João! Quero muito!
- Vou desenhar o nosso alegrete vermelho com o trigo a despontar. Ao pezinho mais bonito, aquele que se inclina para mim, darei o nome do pai.
4 LIVRO EM BRANCO
- Pai!
- Diz, filho.
- Que livro é aquele que tens na mesinha de cabeceira?
- Foi feito por mim, nas pequenas horas vagas. Quem me ensinou foi um velho mestre encadernador. Cosidinho à mão, fio norte, requife… tudo o que um bom livro merece.
- Mas não tem nada escrito, pai. Para que serve um livro em branco?
- Para colocarmos um sonho em cada folha.
- Mas como? Explica-me tudo, pai.
- Uma canção bonita, um quadro, um poema, até um bailado podemos ver nesse livro. Está lá tudo o que quisermos e só nós conseguimos ver e ouvir.
Tudo o que nós amamos e eles odeiam cabe nesse Livro dos Sonhos.
- Mas isso não é perigoso, meu pai?
- É! Se um dia eles cá voltarem para me levarem de novo, certamente roubarão o livro. Nunca entenderão aquelas folhas em branco, nunca conseguirão ler a esperança de cada folha. Essa será a nossa vitória desse dia.
- E se assim for, pai, o que faremos?
- Faremos um livro novo.
Chegará o dia em que, com uma caneta de tinta permanente, passaremos a limpo tudo o que nos vai na alma e abriremos o nosso livro para que todos o possam ver. Com ele faremos uma grande Festa. Todos os anos faremos uma grande Festa. Todos os sonhos escondidos terão a luz do dia, tudo o que o futuro nos destina terá uma candeia.
- É por isso que tu e a mãe dizem que futuro espera por nós?
- É, filho. É por isso mesmo!
- Pai, posso abrir o livro e imaginar um conto bonito com crianças, flores e animais?
- Podes, João! Esse livro será a tua maior herança.
5 CASA SEM MORADA
- O que estás a fazer, pai?
- Uma mala com um avio de roupa para ti. Pijama, roupa de sair, e um agasalho de lã feito pela tua mãe… Acho que está tudo.
- Mas para quê, pai? Onde me levas?
- Vais passar uns tempos a casa da tia Amélia. Ela já tem um divã de abrir e fechar no canto da sala.
- E tu, pai? E a mãe?
- Nós vamos passar uns tempos numa casa sem morada.
- Mas onde, pai? Como saberei de vós?
- Vais levar contigo o nosso Livro dos Sonhos, aquele que tem as folhas em branco e só nós conseguimos ler. Quando a saudade te apertar, abre o livro. Poderás ver os pais nos locais que o teu coração te indicar. É um segredo só nosso!
- Mas quando poderei voltar a tê-los?
- O inferno tem os relógios parados…
- E vocês, queridos pais, o que vão fazer longe de mim?
- Fazer andar os ponteiros, meu filho. Fazer andar os ponteiros.
6 O DIA MAIS BONITO
- Tia Amélia!?
- Diz João…
- O relógio da sala está quase a dar as 11 da noite, estás a ouvir rádio…
- São insónias e pressentimentos… tenta dormir, meu amor.
O que faço aqui
Quem me abandonou
De quem me esqueci
- É tão bonita essa canção, tia.
- Pois é, João! Vou baixar o som, por causa dos vizinhos, vê se dormes, a tia não consegue.
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti, ó cidade!
- Tia, essa canção fala de coisas perigosas, daquelas coisas que só nós vemos no livro que o meu pai fez…
- Sim, meu amor. É verdade! Esta é a noite de todas as insónias e pressentimentos. - Tia, também tenho insónias e são 4 de madrugada… Não desligues o rádio.
Aqui Posto de Comando do Movimento das Forças Armadas…
- Tia, os ponteiros do relógio da sala não param. Será que o relógio do inferno também começou a trabalhar?
- Acho que sim, João! Isso só quer dizer que ele tem os dias contados.
- E os meus pais, tia? Tenho tantas saudades…
- Quando o Sol subir vou à procura deles. Acho que sei onde os encontrar.
- Onde, Tia? Onde estarão?
- No Largo de Carmo. É mais um pressentimento…
- Vais deixar-me sozinho? Tenho medo!
- Hoje não, João! Hoje é o primeiro dia sem medo. Faz um desenho bonito na tua sebenta para quando os teus pais chegarem. Eles vão ficar tão felizes…
- Está bem, tia Amélia! Vou desenhar um menino como eu a pôr uma flor no cano de uma
espingarda.
7 O LIVRO DA LEI
- Bom dia, mãe! Que livro é esse que trazes? É o nosso Livro dos Sonhos?
- Não, querido! É o Livro da Lei. Foi o Dia Mais bonito que permitiu fazê-lo.
- E nesse Livro da Lei está lá algum sonho nosso?
- Sim! Estão lá muitas coisas que sonhámos e a promessa de sonhos vindouros. Está lá uma casa para todos, uma escola bonita para ti e para os outros meninos, estão lá doutores e enfermeiros para quando estivermos doentes, estão lá os livros que eram proibidos e que agora deixaram de ser, a música, o teatro… Tudo o que estava no Livro dos Sonhos agora está a tinta permanente no Livro da Lei.
- E eles vão deixar? Vão respeitar esse Livro?
- Vão fazer o que puderem para o evitar. Lembras-te quando os pais foram morar para uma Casa sem Morada?
- Sim, minha mãe! Fiquei na casa da tia Amélia…
- Essas casas agora têm todas morada e, para que não haja dúvidas, têm todas a nossa bandeira à entrada.
Vão ser maus como sempre foram, vão tentar destruí-las, vão mentir com todos os dentes sobre as nossas intenções, vão tentar enganar o Povo com todas as mentiras que aprenderam no inferno.
- E nós, o que faremos, mãe?
- O que sempre fizemos. Lembras-te das ferramentas que o pai usa? Alicates, bigornas, ferros de soldar, martelos e punções…
- Lembro muito bem, mãe.
- Continuaremos ao lado de quem as usa. De quem usa as ferramentas da terra; de quem usa as ferramentas do pensamento; de quem usa o coração a bater por um Mundo melhor.
- Só que agora esse sonho já tem morada certa…
- Sim, meu amor! Esse sonho habita em casas com a nossa bandeira à porta. São as casas mais Livres do Mundo.
8 O FUTURO TEM PARTIDO
- Pai!?
- Diz, João!
- Lembras-te quando foste a Lisboa, à Rua da Madalena?
- Lembro-me muito bem! Foi há 100 anos, mas lembro-me como se tivesse sido ontem.
- Quando chegaste a casa falaste-me de grilhetas, correntes de amarrar, e puas de colar ao chão.
Explicaste-me isso enquanto jantávamos uma sopa de couve com batatas…
- É verdade, meu filho! Foi a luta e a memória que nos trouxeram aqui.
- E agora, pai? Conta-me tudo…
- Agora, ainda não nos livrámos delas… mas podemos cerrar os punhos à porta da fábrica e erguê-los em todas as praças.
Somos todos iguais na hora do nascimento. Um minuto depois parece que temos o destino traçado. Uns, como o pai, têm de trabalhar muito para essa sopa que tens à frente. Outros têm quem lhes ponha a mesa com comidas e vinhos finos. Já não são nossos donos, mas ainda são donos de grande parte do nosso trabalho.
- Achas que um dia deixará de ser assim?
- Tenho a certeza, meu filho! Tenho a certeza!
- Mas quando, pai? Quando?
- Não sei, João! Apenas sei que hoje é o primeiro dia dos próximos 100 anos.
- Pai, vou fazer um desenho desse dia!
- Faz! Quando estiver terminado leva-o para a nossa casa, aquela que tem a bandeira à entrada, e pendura-o na parede por cima da estante. Assim, quando algum de nós estiver desanimado poderá olhar para o teu desenho e sorrir com a certeza que o Futuro tem Partido.
João Monge
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(1) N.A. 6 de Março de 1921 foi um Domingo.
#50Anosdo25deAbril
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