Sunday, June 23, 2024

Canção da minha tristeza

Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
Nada acontece. Nada. Nem, ao menos, tu
virás despentear os meus cabelos.
Nem, ao menos, tu, neste tempo de angústia
vens dizer o meu nome ou cobrir-me de beijos.
Ah, meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
A cidade enlouquece os meus olhos de pássaro.
Eu recuso as palavras. Sei o nome da chuva.
Quero amar-te, sim. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.
Nada acontece. Nada. E eu procuro-te
por dentro da noite, com mãos de surpresa.
Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
E tu, longe, longe. Onde estás meu amor,
que não vens despentear os meus cabelos?
Eu quero amar-te. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.

Joaquim Pessoa

Wednesday, June 19, 2024

Nos 80 anos de Chico



Hoje o amigo Chico Buarque completa 80 anos de vida.
Muitos parabéns ao artista brasileiro!

Lanzarote, 19 de março de 1997
Meu caro Chico,
Acabámos de ouvir a belíssima música e as belíssimas palavras de Levantados do Chão. Ouvimo-las emocionados, como se as estivessem cantando todos os homens e mulheres sem terra desse dorido Brasil. Graças ao teu talento e ao teu coração generoso, a gente sofredora do campo tem agora o seu hino. Oxalá ele venha a ser cantado e ouvido em todas as partes do mundo onde falta a justiça e o direito é negado. Quanto a mim, ficar-te-ei para sempre agradecido por teres dado à tua canção o título de um livro meu. Podes imaginar a alegria que isso me dá. E também o orgulho.
Recebe o nosso fraterno abraço,

José Saramago
In "Saramago, os seus nomes" (Porto Editora e Companhia das Letras, 2022) 

LEVANTADOS DO CHÃO
Milton "Bituca" Nascimento e Chico Buarque
Como então? Desgarrados da terra?
Como assim? Levantados do chão?
Como embaixo dos pés uma terra
Como água escorrendo da mão?
Como em sonho correr numa estrada?
Deslizando no mesmo lugar?
Como em sonho perder a passada
E no oco da Terra tombar?
Como então? Desgarrados da terra?
Como assim? Levantados do chão?
Ou na planta dos pés uma terra
Como água na palma da mão?
Habitar uma lama sem fundo?
Como em cama de pó se deitar?
Num balanço de rede sem rede
Ver o mundo de pernas pro ar?
Como assim? Levitante colono?
Pasto aéreo? Celeste curral?
Um rebanho nas nuvens? Mas como?
Boi alado? Alazão sideral?
Que esquisita lavoura! Mas como?
Um arado no espaço? Será?
Choverá que laranja? Que pomo?
Gomo? Sumo? Granizo? Maná?


Sunday, June 09, 2024

O cinzento dos dias


É o cinzento dos dias e a humidade no corpo que nos faz ficar assim. O frio que não escolhe e nos encolhe. A distância que de repente fica mais distante ainda, a uma lonjura difícil de chegar. O mar que deixou de ser azul e nestes dias se pinta de castanho. As ondas que se atiram contra nós em vez de rebentarem suavemente... em espuma de mel.
São dias de fome. E de sede.
São noites de silêncio em que nos ouvimos em gritos calados. São as palavras a rebentarem o peito e a ficarem aprisionadas nos dedos. É o sim e o não sem sabermos porquê.
Abro uma garrafa de tinto antigo, deixo-o aquecer até aos 17 graus. Já cheira a pão quente. O doce de abóbora ainda está morno. Falta o requeijão de Seia. E faltas tu.

Saturday, June 08, 2024

A Nêspera


Uma nêspera
estava na cama
deitada
muito calada
a ver
o que acontecia
 
chegou a Velha
e disse
olha uma nêspera
e zás comeu-a
 
é o que acontece
às nêsperas
que ficam deitadas
caladas
a esperar
o que acontece
Mário Henrique Leiria

Monday, June 03, 2024

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Porque os nós são pele
Porque a pele é tua
Tal como os cheiros
Deixas os teus braços inteiros
Sempre prontos, sempre primeiros
Na tua fonte de seres nua
Porque os nós são mar
Em cada ilha que se perpetua
Tal como as fomes quentes
Deixas os teus braços presentes
Sempre prontos, sempre ardentes
Na tua fonte de seres nua.
Como nos velhos tempos, Maria!
Pedro Branco