Saturday, January 25, 2025

Chico Buarque: a Festa do «Avante!» 1980 foi a «maior plateia»

 

Chico Buarque regressa a Portugal, 38 anos depois de ter ficado «apavorado», e depois rendido, com uma das maiores plateias da sua vida, num concerto de «clima perfeito» e pelo qual nem cobrou cachê.


«Depois do concerto, ele reconheceu que foi especial e disse: "Nunca mais se vai repetir uma coisa destas". Não sei se foram os astros, houve ali um clima perfeito naquilo tudo, e o Chico, pela atitude dele, foi fundamental», contou à Lusa o jornalista António Macedo, que acompanhou o músico brasileiro nos dias que passou em Portugal, que culminaram no concerto de encerramento da Festa do Avante!, a 13 de Julho de 1980.


O concerto, o primeiro de Chico Buarque em Portugal depois do 25 de Abril de 1974, reuniu uma «embaixada» de músicos brasileiros, com Edu Lobo, os MPB 4 e Simone, como conta um dos responsáveis pela programação da festa anual do PCP, Ruben de Carvalho: «O Chico é um pai de santo, vai toda a gente atrás».

Para o «clima perfeito» terão concorrido o momento histórico, com os «brasileiros cheios de "pica"» contra a ainda vigente ditadura militar – rumo ao movimento «Diretas, já» –, aponta Ruben de Carvalho, a química entre os músicos gerada numa viagem recente a Angola, ainda muito presente, e a emoção da morte de Vinicius de Moraes, dias antes do concerto que se realizou no Alto da Ajuda, então recinto da Festa do Avante!.

O concerto foi encenado por Ruy Guerra, o cineasta moçambicano que levou o Cinema Novo para o Brasil, e os ensaios decorreram no antigo edifício do Teatro Aberto, em Lisboa.

António Macedo assistiu a esses ensaios, passou muito tempo com Chico Buarque, que estava instalado com a mulher, Marieta Severo, e as filhas, no Hotel Penta – «só me faltou dormir com ele» –, e acompanhou-o numa visita ao recinto do Alto da Ajuda, antes do início da Festa do Avante!.

«Quando olhou para aquela vastidão de terreno à frente, ele que é um tipo muito envergonhado, que não gosta de concertos, disse: "Isto é tudo para o povo?"», conta.

Estava «completamente apavorado», recorda António Macedo, que se lembra de lhe ter ouvido um «Eu não canto». Cantou. «Transcendeu-se. Esteve praticamente duas horas em palco», lembra, naquela que António Macedo escreveu para o jornal Se7e ter sido «a maior plateia» que Chico jamais tivera pela frente.

António Macedo lembra um alinhamento «em crescendo nas canções políticas»: «A parte final do concerto começa com o Apesar de Você, é para aí a sexta antes do fim, e depois ele começa a ligar isso com Portugal, canta o Fado Tropical, estreia a Morena de Angola – é a primeira vez que a canção é cantada pelo Chico, já era conhecida porque tinha sido cantada pela Clara Nunes.»

O relato do jornal O Diário refere também as canções Geni e o ZepelimConstruçãoRoda VivaCio da TerraCálice, e, naturalmente, Tanto Mar.

AbrilAbril

1 de Junho de 2018

Quem era a Geni do Zepelim


De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Co'os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir
Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geleia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo –- Mudei de ideia

– Quando vi nesta cidade
– Tanto horror e iniquidade
– Resolvi tudo explodir
– Mas posso evitar o drama
– Se aquela formosa dama
– Esta noite me servir
Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
– e isso era segredo dela –
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão
Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Geni é uma personagem da peça Ópera do Malandro, de Chico Buarque. Trata-se de uma travesti que vive pelos covis da malandragem carioca, ao redor dos puteiros e das prostitutas, dos bandidos e contrabandistas.

Sua índole é boa, sua força é tremenda para aguentar todas as porradas da vida. Geni é, no fundo, uma vencedora, uma resistente. Mas Geni também tem seus podres, suas mentiras, suas falcatruas. A ironia é também uma forma de sobreviver.

A canção com que Chico presentou sua personagem, Geni e o Zepelim, é uma belíssima parábola da trajetória desta pessoa expulsa para as margens da vida por ser o que é, mas que, por um dia, tem seu momento de epifânico, saindo da invisibilidade que lhe é imposta.

Saiba mais em nosso site:
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Sunday, January 19, 2025

sem título

Quem me conhece sabe que eu sou de dizer o que penso. Às vezes de rajada, outras de uma forma mais pensada, talvez escolhendo palavras para que entendam melhor.
Há muitos jovens (20, 30 anos) a gostar do xegoiso. E isto preocupa-me, porque este 'gostar' não é consciente, não tem bases sólidas. É porque 'está na moda', é por ignorância ideológica, é porque os pais não fizeram o 'trabalho de casa'... e eu sinto-me impotente para alterar o que já está instalado num simples 'porque gosto'. Não sabem porque gostam, mas gostam. E vão votar...
Não era assim, cinzenta, que queria começar o fim de semana, mas é como me sinto. Com gente 'chegante' e 'ficante' tão perto de mim.
Pronto, falei. Por escrito. Pode ser que leiam.

Friday, January 17, 2025

SPARTACUS


Em cada hora
Em cada dia
Século após século
os homens arremessam o teu nome ao vento
e dele saem dardos, punhais, espadas
e dele saem pombas e flores ensanguentadas
De cada letra um filho
De cada som um eco
Teu nome-profecia
Teu nome vinho-novo
que ao terceiro dia há-de ressuscitar
nas veias do meu povo
Teu nome
que mil vezes tem sido agrilhoado
Teu nome sangue-mel
nos lábios do carrasco uma esponja de fel
Teu nome-escravo
Teu nome-espectro
fantasma de terror na noite de algozes
temido como as vozes que clamam no deserto
Teu nome-salmo
escrito em cada corpo morto
em cada cruz erguida
Teu nome-espiga
que se transforma em pão
Teu nome-pedra
da construção do mundo
que será o fruto do teu gesto
Teu nome
em cada gesto do esvoaçar das asas
da gaivota presa
Teu nome
vela-acesa na catedral da esperança
do altar-homem
Teu nome
em cada grito
em cada mão
Teu nome-sinfonia
que há-de explodir com a alegria
de um átomo liberto
Spartacus!
Teu nome-irmão.
Maria Eugénia Cunhal

Wednesday, January 15, 2025

Os olhos das crianças

Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem para trás das grades do silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.

Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.

Sidónio Muralha
(foto do Eduardo Gageiro)

Wednesday, January 01, 2025

Ode à Paz

 
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História, deixa passar a Vida!

Natália Correia