A serpente persegue a sombra da águia
até ao lugar onde é mais profunda a raiz da água.
Porque escondes o teu livro
quando folheias o coração?
Em que lugar amadurecem cachos de surpresa
durante a ausência dos teus dedos?
Esta manhã é soberba
de sonhos e de cães.
Espero por ti depois das horas de ternura
para mais ternura ainda.
Espero por ti depois do amor
para fazermos mais amor.
Façamos café, depois do fogo.
Temos, dos outros, as nossas mãos.
Herdámos a vida de mulheres e de homens antes de nós
e a outros homens e as outras mulheres não deixaremos
apenas o vento como herança.
O que vês na água?
Com quê construíste a tua casa?
Em que manhã fizeste perguntas ao teu filho?
A serpente continua perseguindo
a sombra da águia.
De quem é o objecto que deténs em tua mão?
Porque cresce a tristeza nos teus ombros?
Esse rio que passa à tua porta e chama por ti
é um rio de sangue
com um caudal de corpos inocentes.
As suas margens são agrestes mas a tua infelicidade
não deixa que lhes descubras os punhais.
Há em ti o mesmo rio.
Não poderás dar um passo, longe ou perto,
sem que firas a tua carne
ou magoes mais os ossos já antes magoados.
Tu tens as tuas próprias margens.
Por favor, destrói as tuas margens.
Acende uma fogueira para que dentro dos teus olhos
possas sentar-te comigo em redor do fogo.
A lua calou-se. Está morta.
Morreram com ela metade dos poetas
e a nova poesia será escrita pelos que sobreviveram.
Verás passar pela tua noite
os mais humildes, os mais sacrificados, aqueles que,
conhecendo o medo, não aceitam as privações e a miséria.
Não poderás voltar-te para o lado e adormecer.
Não deves voltar-te para o lado e tentar esquecer.
Há quanto tempo não escutas a tua fala?
Que espécie de claridade adquiriste para as tuas janelas?
Hoje não é o último dia.
Corre agora a serpente
sobre a sombra da águia. Para lá da tua bebida
morrem povos com sede.
Há milhares de criaturas mortas
nos restos das tuas refeições.
Ajudas a assassinar rios, pássaros e muitos dos teus irmãos
com um simples encolher de ombros.
Constroem-se toneladas de bombas na tua indiferença.
Envenenam-se oceanos para teu conforto.
Por toda a parte se polui o ar de vales e montanhas
para fabricar a tua asfixia.
De onde retirarás mais diamantes? Da boca dos cadáveres?
Em que morte
deixarás apodrecer a tua vida?
A serpente desafia
a sombra da águia.
A nossa manhã continua soberba
de sonhos e de cães.
Façamos café, depois do fogo.
E conversemos. Ainda não
dissemos tudo.
Joaquim Pessoa
in "Inéditos" de "125 POEMAS,
Antologia poética",
Litexa Editora, 3ª ed.