Tuesday, August 25, 2020
Do mistério das coisas
Para ti
em dia soturno
O dia de hoje amanheceu lilás como os lírios que o meu avô plantava no quintal da minha infância.
Vinha todos os dias com as suas grossas e bondosas mãos calejadas acariciar as flores que o prolongavam.
Sempre acreditei que a partir daquele quintal ele queria e podia encher o mundo.
O meu avô morreu há alguns meses atrás, mas os lírios continuam no mesmo sítio, como que à espera das suas mãos.
Quanto a mim, quase deixei de acreditar naquilo que ele me tinha ensinado, porque não obstante ter passado dias, semanas e meses, na busca insana de espécimes semelhantes, em todos os palácios, jardins e nitreiras, mais não consegui do que concluir que, definitivamente, não é possível as flores saltarem as vedações dos quintais.
Até que consegui perceber-te, frágil mas animosa, serena mas lúcida, guerrilheira mas mulher. E reacendeu-se em mim a vontade incontida de juntar os meus lírios aos teus cravos e ainda aos girassóis de alguém e fazer da Terra a nossa plantação.
É pois a ti, mulher-menina-de-sorriso-amargo, que me dirijo com uma confidência a um tempo cruel e necessária.
Uma vez, aquando das minhas surtidas furtivas, pude reparar num pequeno fungo de tal modo encaixado entre duas pedras enormes, que receei que estas o esmagassem. Então usei de toda a minha força para afastar os pedregulhos, mas em balde foi todo o esforço.
Tempo depois retornei ao local e para surpresa minha verifiquei que o pequeno fungo se desenvolvia de tal forma que parecia por si só ser capaz de afastar os dois colossos. Na altura reparei ainda numa pequena flor verde que rompia aquilo e me entrava no olhar.
Passou mais tempo, que ansiosamente fui descontando à espera que me tolhia tantos pensamentos e exaltava outros.
E um dia pude ter a felicidade de ver uma maravilhosa flor vermelha que, explodindo num matizado de vários tons, subia exuberantemente para o céu.
Nessa tarde, quando descia a pé as faldas de Sintra, alguém me tocou no ombro, possivelmente em segundo chamamento, perguntando alguma coisa de castelos, ao que respondi com o meu silêncio.
Eles perceberam e afastaram-se. É que dentro dos meus olhos bailavam sete litros de água.
Depois disto, se me soubeste ler, pegarás certamente no teu amor e na tua espingarda e saltarás definitivamente as barreiras que te separam do sonho, pois só assim poderás alcançar o tempo do pleno ser.
Este escrito, em que te coloco como Govinda da minha existência, é também uma homenagem ao teu estoicismo de mulher e ao facto de durante tantos anos teres conseguido cultivar flores dentro de ti.
25.8.77
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3 comments:
contrariando o destinatário
também eu
homem-septuagenário-de-sorriso-amargo
guardo dentro de mim
todas os cravos e rosas
que meu avô plantava no seu jardim
e tenho a minha espingarda, aqui
Obrigada, Rogério.
Mais de 40 anos depois continuamos do lado certo.
Gostei de seus blogs, parabéns! Deixo-te dois poetas conterrâneos do Rio Grande do Sul (Brasil). Mario Quintana e Lila Ripoll, autora do poema abaixo.
Grito
Não, não irei sem grito.
Minha voz nesse dia subirá.
E eu me erguerei também.
Solitária. Definida.
As portas adormecidas abrirão
passagem para o mundo
Meus sonhos, meus fantasmas,
meus exércitos derrotados,
sacudirão o silêncio de convenção
e as máscaras de piedade compungida.
Dispensarei as rosas, as violetas,
os absurdos véus sobre meu rosto.
Serei eu mesma. Estarei
inteira sobre a mesa.
As mãos vazias e crispadas,
os olhos acordados,
a boca vincada de amargor.
Não. Não irei sem grito.
Abram as portas adormecidas,
levantem as cortinas,
abaixem as vozes
e as máscaras —
que eu vou sair inteira.
Eu mesma. Solitária.
Definida.
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