Sunday, September 27, 2020

Filho

“Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar os nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem.
Isso mesmo!
Ser pai ou mãe é o maior acto de coragem que alguém pode ter, porque é expor-se a todo o tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo correctamente e do medo de perder algo tão amado.
Perder? Como?
Não é nosso, recordam-se?
Foi apenas um empréstimo!"

José Saramago

Wednesday, September 23, 2020

Berna


Para ti
em dia de chumbo

Que felicidade eterna...
na planície enorme onde és
em gamas escarlate e grês
estás com tua meninice terna

Há coisas já passadas mas urgentes
como o teu ventre fofo de flores
e chocolate quente onde cravo os dentes
depois de escolher um amor entre os amores

Que alegres são as nuvens dos teus céus
onde afogo vários vícios meus
e encontro alegria acrescentada

Em ti, cidade plena por distante
acho-me como se fora mero amante
chorando a lonjura da mulher passada.

7/11/87

Wednesday, September 09, 2020

A roda gigante do Avante!

As laranjeiras estão altas. Há também pereiras e uma camélia enorme. Uma carroça de bois, uma adega e uma casa térrea. Ao fundo, a terra sempre cultivada, uma eira e uma casa pequena. José e outros, levantam-se cedo. Deitam a semente à terra. Depois desaparecem. Encerram a porta da casa pequena. Os pássaros pintam o céu. Não há que ter medo. Nunca se ouviu falar que um pássaro fosse bufo. José e os outros, constroem textos com letras de chumbo. Dobram papel fino. Rolam rolos vestidos a tinta negra. As horas passam e o homem da bicicleta descasca uma laranja. Saboreia. Bebe água do poço. A porta abre-se. José abraça o homem da bicicleta. No quadro, com um arame improvisado, um cesto com couves é pendurado. Cai a noite e a bicicleta rola. A lua ajuda.

Ainda o sol não deu os bons dias e já uma matilha de esfarrapados se faz à rua. Trabalhadores de fábrica. Trabalhadores de terra. Pelas pedras espreitam papéis. Saíram clandestinamente do ventre das couves. No adro da igreja espreitam papéis. Nos paralelos da calçada espreitam papéis. São amachucados, escondidos em sapatos ou algibeiras. E quando for possível, longe dos olhares dos abutres, grupos de homens e mulheres rodeiam o papel fino tingido a letras de chumbo. Quem souber juntar letras é o eleito para ler. É necessário aumentos na jorna. Melhores condições na fábrica. Escola para os filhos. Salário igual entre homens e mulheres.

José e os outros descansam os corpos em colchão de palha. Os cães ladram. A porta é arrombada. A polícia de defesa do estado intervém para bem da nação. Aos socos e pontapés, levam José e os outros para as salas bafientas com Salazar e Carmona a olharem. Sorrisos de hiena estampados em molduras pesadas. José e os outros são espancados, torturados. O hálito do agente é ácido. Quem vos mandou fazer os avantes? Foram vocês que montaram a porra da tipografia clandestina? Aquela merda veio de Moscovo? Quem são os vossos chefes? Quem colocou a merda dos avantes na aldeia? Filhos de uma cabra. Comunas de merda. Não vão ficar cá para contar a história. José e os outros não abriram a boca. Cada soco, cada estalada, cada hora de estátua eram anos de silêncio. Levem os gajos. Só comem daqui a três dias. Odeio comunas.

Pela manhã os avantes estavam novamente na vila. O agente de hálito ácido volta a espancar José e os outros. Se não falam, mato-vos. Silêncio e silêncio. José e os outros foram libertados para sempre. De vez. Em abril.
José e os outros continuam a gostar de laranjeiras. Por vezes ainda lançam a semente à terra. Não perderam o jeito nem o gosto. Muito menos a firmeza. José, os outros e tantos outros, lutaram pela liberdade. Combateram como ninguém a escuridão. O medo. A opressão. Lutaram para chegarmos todos até aqui. Um país livre. Livre como o vento ou como um catavento. Um país também de ingratidão. José e os outros resistiram aos socos e à estátua. À fome e à sede. Ao agente de hálito ácido. Também resistem agora. O hálito anda no ar. Cheira-se. Sente-se. Na conversa de café. No comentador limitado. No líder (adoram esta palavra) bafiento. No truque. Na mentira. Na manipulação. Até no pedido de desculpas. Sente-se o agente de hálito ácido a querer pendurar os sorrisos de hiena.

José e os outros, estão cá para os enfrentar. E há muitas pedras para colocar os papéis. Não julgue o agente de hálito ácido que desta vez será fácil. Talvez até seja impossível, enquanto houver quem teime em lutar.
O agente de hálito ácido é todo ele ódio. Tem sede de vingança. José e os outros, pintam letras às cores na Quinta da Atalaia. Não perderam a firmeza. Lutam novamente contra o medo. Pela liberdade. O agente de hálito ácido semeia calhaus em terra de pandemia.
Conheço o José e os outros. A todos eles, dou um abraço de gratidão maior que o mundo. Muitas vezes a roda da vida leva-nos para encontros e desencontros. Como agora. A Festa do Avante. A Festa que eu sempre frequentei e onde sempre me senti bem. A Festa que não devia acontecer este ano. Estamos desencontrados. Mas os dias vão passando e afinal, os socos, as bofetadas, a estátua, as torturas ainda não acabaram. O agente de hálito ácido ainda grita – morte aos comunas! Não posso esquecer o lado da barricada em que estou. Pela amizade e pela solidariedade com homens e mulheres íntegros, José, os outros e tantos outros, estarei na Quinta da Atalaia. No cimo da roda gigante levantarei o punho, em silêncio, como tu José, contra o medo e pela liberdade.

Liberdade!

Adriano Miranda
amiranda@publico.pt

O Raul este ano teve de ir à festa

A tarefa do camarada era simples: esta quinta só entra nesta quinta quem tiver Entrada Permanente e cartão de serviço. «Não interessa se é da SIC ou da ASAE. Até podia ser o Jerónimo: antes da abertura, quem não tiver EP e cartão de serviço, não entra». Exagerada sentença que inventei eu agora, nanja consta que alguma vez tenha sido dita, pelo menos neste século, mas avante, que a isso já lá vamos. Se o camarada da portaria sonhasse como a simplicíssima tarefa estava prestes a ficar complicada, preferiria mil vezes a inflexível aplicação do igual tratamento estatutário, cortando o passo ao secretário-geral. Exageros à parte, o camarada estava ali com a inteira noção da importância da tarefa que lhe fora confiada, além do mais nestes tempos, tão propícios à provocação, à mentira e à infiltração que é como as excepções ou, como dizem os cabrões dos americanos, como a lata das minhocas: se deixas sair a primeira, logo a segunda escorrega. A anterior justifica sempre a seguinte e, quando damos por nós, esta merda parece a praia de Carcavelos. As orientações são gerais, são para todos e são para se cumprir, e esta já me disse mesmo o camarada, não estou a inventar, que se sentia ali responsável por manter seguros os portões da zona libertada, investido da autoridade colectiva de 50 mil militantes comunistas.
Sentado numa cadeira de espuma esventrada, ao som do velho rádio a pilhas que só tosse Antena 2, o camarada aguentava a portaria com a inquebrantável disciplina da canção dos Inti-Illimani: Tun tun, quem é? Uma rosa e um cravo… Abra-se a muralha! Tun tun, quem é? O sabre do coronel.... Feche-se a muralha. E fechava mesmo. Quando era preciso, aquela portaria parecia Espanha em 36: «Não passarão!» Outro exagero, naturalmente, mas quem faz turnos de quatro horas militantes depois de oito horas assalariadas, aguenta-se melhor imaginando estas doces comparações desproporcionadas: «temos cabeça dura, os do corpo de engenheiros!». E a verdade é que a implantação da Festa do Avante! é muito assim como a reconstrução da catedral ardida de São Paulo em Londres: era o ano de 1671 e o arquitecto, de nome Christopher Wren, pergunta a um velho que varria o chão qual era a sua tarefa, ao que cantoneiro responde apocrifamente: «eu faço catedrais». O camarada da portaria, preservemos o seu anonimato, é um construtor de catedrais de tubo à face do sonho, um reconstrutor do mundo ardido, e alto lá, que aquilo com ele parece a ponte dos franceses, «mamita mia, que bem te guardam! Querem passar os fascistas? Não passa ninguém!». Com esse sentido de missão histórica ora se levantava ora se tombava a cancela «boa noite camarada!» como quem cantaria «Se me quiseres escrever, já sabes o meu paradeiro: terceira brigada mista, primeira linha de fogo». Que, por sua vez, é outra forma de dizer que, se fosse preciso, defendia-se aquela entrada com todos os meios disponíveis «mesmo que nos espere a dor e a morte, contra o inimigo nos chama o dever! O bem mais precioso é a liberdade: há que defendê-la com fé e com valor. Para as barricadas!» «Nada podem bombas onde sobra coração», mas nada, mesmo nada, poderia tê-lo preparado para o que aconteceu a seguir.
O camarada da portaria nunca tinha visto nada assim. Viu-o mal dobrou ali a esquina do Lidl: subia sozinho. Vinha tão devagar que houve tempo de pensar serenamente. Talvez seja por isso que os alentejanos são sempre mais calmos que, por exemplo e sem ofensa, os transmontanos, que vendados pelas montanhas, são desde tempos imemoriais mais facilmente surpreendidos pelo invasor. A genética dos povos pedinornitos dispensa esse estado de alerta permanente: ainda vai a centúria em Mérida e já a gente a topou do atalaião com a antecedência de construir albarradas e preparar o cerco.
Bem, mas de nada serviu a calma ao camarada da portaria. Quando o homem finalmente chegou ao portão, o camarada saudou-o como se fosse o Jerónimo em pessoa.
- Boa noite camarada, EP e cartão de serviço.
Sem uma palavra, o homem levantou a cabeça muito devagar. Tinha barba de dias por fazer. Uma grande ferida crostada abaixo do olho e, na cara suja, uns olhos esverdeados e baços, que pareciam de alumínio polido. Do alforge saiu uma EP muito amachucada e quase decapitada pelo domingo mas, ainda assim, válida.
- Precisas do cartão de serviço, camarada.
- O que é isso?
- O cartão de serviço é… é o cartão que têm os camaradas que vêm trabalhar. A festa para os visitantes só abre amanhã.
- Eu sei, camarada.
Tranquilizou-o ouvi-lo dizer assim a palavra camarada: os comunistas, para quem não sabe, reconhecem-se pela forma como só eles pronunciam a palavra camarada.
- Então... e eu venho para trabalhar.
Não tinha máscara. A camisa, ensebada e rasgada no ombro, caia-lhe sobre as calças demasiado largas. O camarada da portaria pensou que podia ser um louco. Não, era provavelmente um indigente.
- Ó camarada, desculpa lá… Isto não é assim. Qual é a tua organização?
- Boa Fé, Évora.
- Então e vieste sozinho?
O homem respirou fundo como se tentasse recompilar vários detalhes de uma resposta complexa.
-Vim. Vim na carreira até Setúbal e depois fui andando, andando…
-Vieste a pé desde Setúbal?
- Vim. - E do bornal mostrou um mapa que de tão dobrado parecia feito de guardanapo. Perdi-me aqui - e apontava toscamente - na Serra da Arrábida porque lá ninguém pára o carro.
O camarada da portaria não acreditava, claro.
- É pá. Grande esticão. Quanto tempo é que demoraste?
- Cinco dias, cinco noites. Fui dormindo onde calhava. Ia comendo e bebendo pelos cafés. E já cá estou. Posso-me sentar?
Está mais que provado que «Quem corre por gosto não cansa» é, entre todos os bordões do almanaque, o mais falso e o mais injusto. Tudo cansa, tudo se desfaz. Até as coisas que amamos, ou não fosse o mundo dialéctico e não estivessem até as pedras em perpétua erosão.
O camarada da portaria foi buscar a cadeira esventrada e disse-lhe para esperar. Marcou a extensão da Comissão de Campo, explicou a situação e, com todo o detalhe, descreveu o homem. Os camaradas da Comissão de Campo também não sabiam o que fazer e acharam melhor ligar para os camaradas da Direcção da festa. Os camaradas da Direcção da festa mostraram-se apreensivos: podia ser uma armadilha para denegrir a festa ou romper a disciplina sanitária. Decidiram por isso, ligar para o camarada responsável pela Boa Fé, que estava naturalmente na Festa, e que não acreditou no que estava a ouvir. Esse camarada é o Raul, explicou. Estava muito afastado há anos. Comprava o Avante!, é certo, mas pouco mais podia. Há uma semana, a mulher morreu de cancro: o camarada não está bem.
A Direcção acabou por decidir que o camarada poderia entrar e que lhe devia ser dada uma máscara. Um camarada ficou de tratar da tenda e outro ficou de pedir emprestado um saco-cama. Mas o camarada, que tem nome e efectivamente se chama mesmo Raul, não queria ir dormir nem ir ao posto médico. Queria ajudar.
Tanto insistiu que sentaram-no numa carrinha descapotada a cortes de rebarbadora e levaram-no para a Cidade da Juventude. Porquê para a Cidade da Juventude? Porque à meia noite o camarada fazia anos, explicaram os camaradas que deram a orientação. Não sei o que mais vos diga, foi o que a organização decidiu, camaradas; e eu também não perguntei porquê: às vezes os desígnios da organização são misteriosos.
Quem achar difícil acreditar que isto realmente se pudesse ter passado na Quinta da Atalaia, no dia 3 de Setembro de 2020, nem sonha o que veria se pudesse, do alto dos tempos medievais em que aqui havia mesmo uma torre de atalaia, ver o que esta quinta já viu. Imaginemos nós que tínhamos de explicar aos monges jerónimos que aqui plantaram vinha, que um dia a vinha seria de monges dominicanos, que daqui seriam corridos a pontapé por uma revolução republicana. Imaginemos se tivéssemos de explicar aos Condes de Atalaia, oriundos de outra Atalaia, a de Vila Nova da Barquinha, que ganharam estas terras como compensação por traírem a pátria ao serviço dos Filipes de Espanha, que um dia esta terra não voltaria nunca mais às mãos de mais nenhuma família aristocrática. Imaginemos que tínhamos de explicar aos trabalhadores do senhor Reynolds, patrão da Lisbon Fresh Water Suply, que daqui extraía a cristalina água mineral Águanave, que um dia toda esta terra seria da classe operária e dos comunistas? Pois: a descrença seria mútua.
O camarada da JCP que estava responsável pela implantação é que não achou tanta graça ao mistério. Mas que ajuda é que alguém assim poderia dar? Os camaradas decidem assim as coisas e depois os outros que se desenrasquem, não é? A 24 horas da abertura, a cidade estava atrasada e não havia tempo para estas brincadeiras do oxigénio em pó, do empalmo de 7 vias ou do nivelador de toldos. Mas a orientação é para cumprir, pá, e lá teve o camarada responsável da JCP, contrafeito, de dar uma tarefa ao bizarro camarada.
- Ó camarada, ficas aqui com esta malta. Ponham-no a trabalhar.
E ele, de facto, lá ia ajudando no que sabia. Segurava nas tábuas, passava parafusos, dava opiniões, nem sempre colhidas, ao enxame a fremir de jovens apressados que forravam com contraplacados as paletes do chão.
- Raul, não é? Então vieste a pé desde Setúbal? - era estranho, mesmo para os comunistas, tratá-lo por tu, mas depressa a distância se evaporou. O Raul era operário agrícola, mas até se safava com a madeira. Também tinha estado toda a vida precário. Às vezes sem contrato, sem descontos, sem nada. Entre os que estavam ali da jota a meter chão, havia mais quatro também assim, não operários agrícolas, mas a recibos verdes, com contratos de um ano ou sem contrato nenhum.
- É fodido, pá, se ficas doente, quando envelheces, como é que é? - A pergunta do jovem era retórica, claro está, mas o Raul deu-lhe razão.
Contou-lhes que, quando era puto, guardava os porcos dos senhores para os putos de hoje guardarem os porcos dos netos dos senhores. É a luta de classes. O resto é conversa. Depois tinha andado maltês, a trabalhar de braceiro por esse país fora, a dormir onde calhasse, a viver de côdeas, porra, a ser despedido por dá cá aquela palha e a malta concordou que ainda hoje é esse quero posso e mando. Só com o 25 de Abril é que isto melhorou e até isso nos querem tirar, protestou. E como nós não deixamos, eles, os patrões, detestam-nos. Se nos pudessem ilegalizar, ilegalizavam. Se tivessem de nos matar, matavam.
O discurso do Raul estava a dar cabo dos planos do camarada responsável para terminar a cidade a tempo. À sua volta tinha-se juntado um perigoso aglomerado anti-sanitário de irresponsáveis jovens, alguns sem máscara, todos tisnados de óleo, serradura, tinta e dulcíssimos suores de trabalho militante.
O Raul, disse-lhes, tinha andado a vida toda a combater o fascismo. Tinha estado preso com o Jaime Rebelo, que, tirando partido de ser analfabeto, cortou a própria língua para não poder denunciar os camaradas à PIDE. O Raul contou-lhes que, antes do 25 de Abril, os comunistas ficavam com a vida toda destruída: a carreira, a família, a casa, a liberdade. Tiravam-lhes tudo menos a dignidade. O Raul confessou-lhes que se não fosse a mulher, que ficou com os filhos quando ele esteve preso, e trabalhava de sol a sol para dar de comer às crianças, também não sabia se não teria de ter cortado a própria língua. Quem é que se oferece para explicar ao Raul que isto dos riscos da pandemia são um axioma absoluto e que mais nada importa a não ser ficar em casa?
- Quantos anos estiveste preso?
- Seis, mais qualquer coisa.
Mas foi na prisão que aprendeu a ler. Com os outros, com os camaradas. Haverá prenda mais bonita? Os presos faziam jornais lá dentro e ensinavam uns aos outros. Uma vez foi apanhado, isto no Forte de Peniche, com imprensa do Partido e levou tanta pancada, apontava para a zona dos rins, que achava que morria, mas não morreu. Então este ano teve de vir à festa. Era para não vir. Por causa da pandemia. Mas levou tanta pancada dos guardas que quando vê o Partido a levar pancada é como se fosse ele próprio outra vez naquela cela, a levar dos guardas, quase até à morte. Disse assim à mulher «Olha, agora é que vou mesmo» e a mulher, claro, mandou-o ter juízo. Ela, coitada, acabou por não poder vir mesmo.
É meia-noite. A malta da JCP poisou as ferramentas, parou de trabalhar, pôs-se toda de pé. Uma brisa do Norte lambe-lhes suavemente as frontes suadas, transcendendo a realidade. Cerraram-se agora muitos punhos contra o céu estrelado e a juventude canta ao Raul os «Parabéns a você», mas com a melodia da Internacional. O Raul achou graça àquilo e riu-se alto, com alegria verdadeira, como se não tivesse acabado de fazer 95 anos.

António Santos

Sunday, September 06, 2020

A Festa do Avante de 2020

Está quase a acabar a 44ª Festa do Avante!. 
Todos os que estiveram na Festa, em lazer ou em trabalho, não vão esquecer que é possível retomarmos a vida que 'parou' em Março, que é possível a alegria e o convívio, com as precauções necessárias sim, mas que é possível. 
Aos que tentaram denegrir a Festa, condenando a sua realização nas mais variadas formas, aos que disseram que era impossível manter a distância física nos concertos, aos que tentaram até ao fim que a Festa não se realizasse mas que não tiveram coragem de a proibir, aí estão os vários registos fotográficos e em vídeo que provam o que as televisões não mostraram nos últimos três dias. 
Aprendam como se organiza uma Festa com milhares de visitantes, aprendam como se respeitam as normas da DGS, aprendam a viver e a ser felizes! 
Sendo que esta Festa foi a que teve menos visitantes não deixou de ser, para mim, a Festa mais bonita que já me foi dado ver. Porque não nos vergam, porque nos devolveu a esperança, porque foi de luta e coragem, porque foi de resistência!

Friday, September 04, 2020

Última intervenção de José Casanova na Festa do Avante

Intervenção de José Casanova,
membro do Comité Central e director do Avante!

A mais fraternal e humana Festa do País

São muitas as razões para termos orgulho, um grande orgulho, no nosso Partido. Uma dessas razões é a Festa do Avante! – esta Festa que, desde 1976, passou a ser a menina-dos-olhos do «nosso grande colectivo partidário».
A Festa é o Partido e o Partido está na Festa – e este ano de forma muito especial, já que o tema central da nossa Festa é o Centenário do nascimento do camarada Álvaro Cunhal. Na verdade, toda esta bela cidade da Atalaia é percorrida pela memória dos seus 75 anos de militância revolucionária, traduzidos na construção de uma notável obra teórica e literária e numa entrega ímpar à construção, ao reforço e à defesa do nosso Partido Comunista Português.
Nessa longínqua primeira Festa do Avante!, que construímos na antiga FIL, o camarada Álvaro Cunhal iniciou a sua intervenção no comício de encerramento dizendo: «Esta festa do nosso glorioso Avante!, do nosso glorioso Partido, é a maior, a mais extraordinária, a mais entusiástica, a mais fraternal e humana jamais realizada no nosso País.» De então para cá, 37 anos passados, a Festa do Avante! foi sempre, e cada vez mais, este espaço imenso, extraordinário, entusiástico, de alegria, de liberdade, de fraternidade.
E é assim porque esta é a Festa do PCP, a Festa do Partido da classe operária e de todos os trabalhadores que tem como objectivo supremo a construção de uma sociedade sem exploradores nem explorados; a Festa do nosso grande colectivo partidário, que a constrói e lhe dá vida durante estes três dias inolvidáveis, com o seu trabalho voluntário, militante e solidário, com a sua dedicação, a sua criatividade, a sua militância revolucionária – tudo isto conferindo à Festa uma característica singular: como toda a gente sabe, nenhum outro partido nacional é capaz de realizar uma festa com esta dimensão, com esta beleza, com este conteúdo.

Fraternais saudações
Está aqui muito trabalho, muito trabalho envolvendo muita gente, muita entrega, muito esforço – e há, por isso, muitas saudações a fazer. Por isso, saúdo, em primeiro lugar, os construtores da nossa Festa: os milhares de camaradas e amigos que, em jornadas de trabalho voluntário, ergueram esta bela cidade; e os que a fizeram funcionar durante três dias, num ambiente de convívio, amizade e camaradagem só possível de encontrar em quem transporta consigo um ideal de liberdade, de justiça social, de paz, de solidariedade.
Saudações, igualmente, para todos os visitantes da Festa – militantes do PCP e da JCP, membros de outras forças políticas, designadamente dos nossos aliados na CDU, cidadãos apartidários – os que aqui vieram mais uma vez e os que pela primeira vez nos visitaram, enchendo este espaço e animando-o com a sua presença – e donde se destaca a sempre crescente participação de jovens, a dar mais força e mais futuro à Festa e a permitir-nos dizer que a Festa do Avante! é, cada vez mais, a Festa da Juventude.

A todos desejamos que vão daqui satisfeitos e que voltem para o ano.
Aqui fica também uma saudação e um agradecimento às diversas entidades públicas e privadas que, com o seu apoio, contribuíram para o bom funcionamento da Festa, começando desta vez pelas corporações de bombeiros: a Federação Distrital de Bombeiros, os Bombeiros Mistos do Concelho do Seixal, os Bombeiros Mistos da Amora, os Bombeiros Voluntários de Cacilhas, Trafaria, Sesimbra, Sul e Sueste e Salvação Pública do Barreiro – e estendemos esta saudação a todos os bombeiros que, arriscando as suas vidas e, infelizmente, perdendo-as, até, em vários casos, têm vindo a dar combate corajoso à vaga de incêndios que alastra pelo País.

Saudamos e agradecemos o apoio que nos deram a Fertagus e Sul Fertagus, Transportes Sul do Tejo, Venamar e Amarsul. As centenas de associações, colectividades e federações desportivas. O Núcleo de Física da Instituto Superior Técnico, o Circo Matemático da Associação Ludus. A Guarda Nacional Republicana e a Polícia de Segurança Pública. As juntas de freguesia de Amora, Corroios, Fernão Ferro e Laranjeiro, entre muitas outras. A Câmara Municipal de Lisboa e câmaras municipais da Península de Setúbal – e de forma particular a Câmara Municipal do Seixal. Uma saudação amiga também, para a População da Amora e para os vizinhos da Festa.

Finalmente, uma saudação especial – muito fraterna e muito solidária – para os nossos convidados estrangeiros, camaradas e companheiros de luta que, em representação de partidos comunistas e outras organizações progressistas, nos trouxeram, com a sua solidariedade internacionalista, notícias das lutas travadas pelos seus militantes e pelos seus povos – camaradas e companheiros de luta vindos de: Alemanha, Angola, Bélgica, Brasil, Cabo Verde, Chile, Colômbia, China, Chipre, Coreia, Cuba, Dinamarca, El Salvador, Equador, Espanha, EUA, França, Grã-Bretanha, Grécia, Guatemala, Guiné-Bissau, Holanda, Irão, Irlanda, Itália, Japão, Letónia, Marrocos, Moçambique, Palestina, Peru, Rússia, Sahará Ocidental, Timor Leste, Turquia, Venezuela e Vietname.
A todos estes camaradas e companheiros de luta – e aos muitos que, não podendo estar presentes, nos enviaram saudações – manifestamos a solidariedade dos comunistas portugueses com as lutas que travam nos seus países.

Muitas lutas para travar
1990 foi o ano da realização da primeira Festa do Avante! aqui na Atalaia. Vivíamos, então, um tempo difícil em que, a pretexto dos trágicos acontecimentos a ocorrer nos países socialistas, o nosso Partido era alvo de uma das mais ferozes ofensivas de sempre: diziam uns que o PCP estava em vias de extinção ou que já tinha morrido; diziam outros que ao PCP só restava a opção de deixar de ser comunista…
E enquanto uns e outros cumpriam a sua tarefa de cangalheiros frustrados, o PCP comprava o terreno da Atalaia, graças a uma campanha de fundos à escala nacional, construía aqui a Festa do Avante!, e proclamava cheio de força e determinação: «Assumimos com orgulho a natureza e a identidade do PCP.»

E, no comício de encerramento dessa Festa, o camarada Álvaro Cunhal dizia: «Este ano, para todos nós, a Festa do Avante! tem um sabor novo e contém em si um motivo da nossa alegria. É que a Atalaia é nossa (…) este maravilhoso local será terra firme e certa para a Festa do Avante!».
E assim foi de então para cá: «terra firme e certa para a Festa do Avante!», que continuou a afirmar-se, de forma crescente, como «demonstração do valor irradiante da criatividade, da mensagem cultural, cívica e política, do ambiente e convívio fraterno e humano, da ligação às massas e da influência de massas do Partido Comunista Português».

E não podia ser de outra forma, sendo esta a Festa de um colectivo partidário que é o digno herdeiro das gerações de comunistas que ao longo de décadas construíram este nosso Partido Comunista Português. Um colectivo partidário inspirado no mais belo e humano de todos os ideais; o ideal comunista. Um colectivo partidário que tem como referências maiores do seu projecto e da sua acção, a obra, os ensinamentos e o exemplo de Marx, Engels, Lénine e Álvaro Cunhal. Um colectivo partidário sempre aberto aos muitos e muitos homens, mulheres e jovens que, identificados com os valores e os ideais de Abril, connosco convivem, todos os anos, na Festa do Avante!, e connosco participam na luta pela defesa dos interesses dos trabalhadores, do povo e do País.
Porque, como afirmou o camarada Álvaro Cunhal na sua última intervenção aqui no Palco 25 de Abril, em 1996: «A Festa do Avante! é nossa, dos comunistas. Mas, a todos os que, não sendo comunistas, querem um futuro melhor para o povo português e a pátria portuguesa, aqui dizemos: a Festa do Avante! é também vossa, porque é a festa da liberdade em que Abril está presente, a festa da confraternização e da confiança no futuro.»

A Festa deste ano foi, como sempre acontece, um espaço de luta e um momento de preparação para novas lutas. E ainda bem que assim foi, porque face à gravidade da situação em que a política das troikas mergulhou o País, temos muito que lutar no futuro imediato – um futuro que começa já amanhã.

Porque amanhã, a luta continua. Então, até amanhã, camaradas.

Setembro 2013