A
tarefa do camarada era simples: esta quinta só entra nesta quinta quem
tiver Entrada Permanente e cartão de serviço. «Não interessa se é da SIC
ou da ASAE. Até podia ser o Jerónimo: antes da abertura, quem não tiver
EP e cartão de serviço, não entra». Exagerada sentença que inventei eu
agora, nanja consta que alguma vez tenha sido dita, pelo menos neste
século, mas avante, que a isso já lá vamos. Se o camarada da portaria
sonhasse como a simplicíssima tarefa estava prestes a ficar complicada,
preferiria mil vezes a inflexível aplicação do igual tratamento
estatutário, cortando o passo ao secretário-geral. Exageros à parte, o
camarada estava ali com a inteira noção da importância da tarefa que lhe
fora confiada, além do mais nestes tempos, tão propícios à provocação, à
mentira e à infiltração que é como as excepções ou, como dizem os
cabrões dos americanos, como a lata das minhocas: se deixas sair a
primeira, logo a segunda escorrega. A anterior justifica sempre a
seguinte e, quando damos por nós, esta merda parece a praia de
Carcavelos. As orientações são gerais, são para todos e são para se
cumprir, e esta já me disse mesmo o camarada, não estou a inventar, que
se sentia ali responsável por manter seguros os portões da zona
libertada, investido da autoridade colectiva de 50 mil militantes
comunistas.
Sentado numa cadeira de espuma esventrada, ao som do velho rádio a pilhas que só tosse Antena 2, o camarada aguentava a portaria com a inquebrantável disciplina da canção dos Inti-Illimani: Tun tun, quem é? Uma rosa e um cravo… Abra-se a muralha! Tun tun, quem é? O sabre do coronel.... Feche-se a muralha. E fechava mesmo. Quando era preciso, aquela portaria parecia Espanha em 36: «Não passarão!» Outro exagero, naturalmente, mas quem faz turnos de quatro horas militantes depois de oito horas assalariadas, aguenta-se melhor imaginando estas doces comparações desproporcionadas: «temos cabeça dura, os do corpo de engenheiros!». E a verdade é que a implantação da Festa do Avante! é muito assim como a reconstrução da catedral ardida de São Paulo em Londres: era o ano de 1671 e o arquitecto, de nome Christopher Wren, pergunta a um velho que varria o chão qual era a sua tarefa, ao que cantoneiro responde apocrifamente: «eu faço catedrais». O camarada da portaria, preservemos o seu anonimato, é um construtor de catedrais de tubo à face do sonho, um reconstrutor do mundo ardido, e alto lá, que aquilo com ele parece a ponte dos franceses, «mamita mia, que bem te guardam! Querem passar os fascistas? Não passa ninguém!». Com esse sentido de missão histórica ora se levantava ora se tombava a cancela «boa noite camarada!» como quem cantaria «Se me quiseres escrever, já sabes o meu paradeiro: terceira brigada mista, primeira linha de fogo». Que, por sua vez, é outra forma de dizer que, se fosse preciso, defendia-se aquela entrada com todos os meios disponíveis «mesmo que nos espere a dor e a morte, contra o inimigo nos chama o dever! O bem mais precioso é a liberdade: há que defendê-la com fé e com valor. Para as barricadas!» «Nada podem bombas onde sobra coração», mas nada, mesmo nada, poderia tê-lo preparado para o que aconteceu a seguir.
O camarada da portaria nunca tinha visto nada assim. Viu-o mal dobrou ali a esquina do Lidl: subia sozinho. Vinha tão devagar que houve tempo de pensar serenamente. Talvez seja por isso que os alentejanos são sempre mais calmos que, por exemplo e sem ofensa, os transmontanos, que vendados pelas montanhas, são desde tempos imemoriais mais facilmente surpreendidos pelo invasor. A genética dos povos pedinornitos dispensa esse estado de alerta permanente: ainda vai a centúria em Mérida e já a gente a topou do atalaião com a antecedência de construir albarradas e preparar o cerco.
Bem, mas de nada serviu a calma ao camarada da portaria. Quando o homem finalmente chegou ao portão, o camarada saudou-o como se fosse o Jerónimo em pessoa.
- Boa noite camarada, EP e cartão de serviço.
Sem uma palavra, o homem levantou a cabeça muito devagar. Tinha barba de dias por fazer. Uma grande ferida crostada abaixo do olho e, na cara suja, uns olhos esverdeados e baços, que pareciam de alumínio polido. Do alforge saiu uma EP muito amachucada e quase decapitada pelo domingo mas, ainda assim, válida.
- Precisas do cartão de serviço, camarada.
- O que é isso?
- O cartão de serviço é… é o cartão que têm os camaradas que vêm trabalhar. A festa para os visitantes só abre amanhã.
- Eu sei, camarada.
Tranquilizou-o ouvi-lo dizer assim a palavra camarada: os comunistas, para quem não sabe, reconhecem-se pela forma como só eles pronunciam a palavra camarada.
- Então... e eu venho para trabalhar.
Não tinha máscara. A camisa, ensebada e rasgada no ombro, caia-lhe sobre as calças demasiado largas. O camarada da portaria pensou que podia ser um louco. Não, era provavelmente um indigente.
- Ó camarada, desculpa lá… Isto não é assim. Qual é a tua organização?
- Boa Fé, Évora.
- Então e vieste sozinho?
O homem respirou fundo como se tentasse recompilar vários detalhes de uma resposta complexa.
-Vim. Vim na carreira até Setúbal e depois fui andando, andando…
-Vieste a pé desde Setúbal?
- Vim. - E do bornal mostrou um mapa que de tão dobrado parecia feito de guardanapo. Perdi-me aqui - e apontava toscamente - na Serra da Arrábida porque lá ninguém pára o carro.
O camarada da portaria não acreditava, claro.
- É pá. Grande esticão. Quanto tempo é que demoraste?
- Cinco dias, cinco noites. Fui dormindo onde calhava. Ia comendo e bebendo pelos cafés. E já cá estou. Posso-me sentar?
Está mais que provado que «Quem corre por gosto não cansa» é, entre todos os bordões do almanaque, o mais falso e o mais injusto. Tudo cansa, tudo se desfaz. Até as coisas que amamos, ou não fosse o mundo dialéctico e não estivessem até as pedras em perpétua erosão.
O camarada da portaria foi buscar a cadeira esventrada e disse-lhe para esperar. Marcou a extensão da Comissão de Campo, explicou a situação e, com todo o detalhe, descreveu o homem. Os camaradas da Comissão de Campo também não sabiam o que fazer e acharam melhor ligar para os camaradas da Direcção da festa. Os camaradas da Direcção da festa mostraram-se apreensivos: podia ser uma armadilha para denegrir a festa ou romper a disciplina sanitária. Decidiram por isso, ligar para o camarada responsável pela Boa Fé, que estava naturalmente na Festa, e que não acreditou no que estava a ouvir. Esse camarada é o Raul, explicou. Estava muito afastado há anos. Comprava o Avante!, é certo, mas pouco mais podia. Há uma semana, a mulher morreu de cancro: o camarada não está bem.
A Direcção acabou por decidir que o camarada poderia entrar e que lhe devia ser dada uma máscara. Um camarada ficou de tratar da tenda e outro ficou de pedir emprestado um saco-cama. Mas o camarada, que tem nome e efectivamente se chama mesmo Raul, não queria ir dormir nem ir ao posto médico. Queria ajudar.
Tanto insistiu que sentaram-no numa carrinha descapotada a cortes de rebarbadora e levaram-no para a Cidade da Juventude. Porquê para a Cidade da Juventude? Porque à meia noite o camarada fazia anos, explicaram os camaradas que deram a orientação. Não sei o que mais vos diga, foi o que a organização decidiu, camaradas; e eu também não perguntei porquê: às vezes os desígnios da organização são misteriosos.
Quem achar difícil acreditar que isto realmente se pudesse ter passado na Quinta da Atalaia, no dia 3 de Setembro de 2020, nem sonha o que veria se pudesse, do alto dos tempos medievais em que aqui havia mesmo uma torre de atalaia, ver o que esta quinta já viu. Imaginemos nós que tínhamos de explicar aos monges jerónimos que aqui plantaram vinha, que um dia a vinha seria de monges dominicanos, que daqui seriam corridos a pontapé por uma revolução republicana. Imaginemos se tivéssemos de explicar aos Condes de Atalaia, oriundos de outra Atalaia, a de Vila Nova da Barquinha, que ganharam estas terras como compensação por traírem a pátria ao serviço dos Filipes de Espanha, que um dia esta terra não voltaria nunca mais às mãos de mais nenhuma família aristocrática. Imaginemos que tínhamos de explicar aos trabalhadores do senhor Reynolds, patrão da Lisbon Fresh Water Suply, que daqui extraía a cristalina água mineral Águanave, que um dia toda esta terra seria da classe operária e dos comunistas? Pois: a descrença seria mútua.
O camarada da JCP que estava responsável pela implantação é que não achou tanta graça ao mistério. Mas que ajuda é que alguém assim poderia dar? Os camaradas decidem assim as coisas e depois os outros que se desenrasquem, não é? A 24 horas da abertura, a cidade estava atrasada e não havia tempo para estas brincadeiras do oxigénio em pó, do empalmo de 7 vias ou do nivelador de toldos. Mas a orientação é para cumprir, pá, e lá teve o camarada responsável da JCP, contrafeito, de dar uma tarefa ao bizarro camarada.
- Ó camarada, ficas aqui com esta malta. Ponham-no a trabalhar.
E ele, de facto, lá ia ajudando no que sabia. Segurava nas tábuas, passava parafusos, dava opiniões, nem sempre colhidas, ao enxame a fremir de jovens apressados que forravam com contraplacados as paletes do chão.
- Raul, não é? Então vieste a pé desde Setúbal? - era estranho, mesmo para os comunistas, tratá-lo por tu, mas depressa a distância se evaporou. O Raul era operário agrícola, mas até se safava com a madeira. Também tinha estado toda a vida precário. Às vezes sem contrato, sem descontos, sem nada. Entre os que estavam ali da jota a meter chão, havia mais quatro também assim, não operários agrícolas, mas a recibos verdes, com contratos de um ano ou sem contrato nenhum.
- É fodido, pá, se ficas doente, quando envelheces, como é que é? - A pergunta do jovem era retórica, claro está, mas o Raul deu-lhe razão.
Contou-lhes que, quando era puto, guardava os porcos dos senhores para os putos de hoje guardarem os porcos dos netos dos senhores. É a luta de classes. O resto é conversa. Depois tinha andado maltês, a trabalhar de braceiro por esse país fora, a dormir onde calhasse, a viver de côdeas, porra, a ser despedido por dá cá aquela palha e a malta concordou que ainda hoje é esse quero posso e mando. Só com o 25 de Abril é que isto melhorou e até isso nos querem tirar, protestou. E como nós não deixamos, eles, os patrões, detestam-nos. Se nos pudessem ilegalizar, ilegalizavam. Se tivessem de nos matar, matavam.
O discurso do Raul estava a dar cabo dos planos do camarada responsável para terminar a cidade a tempo. À sua volta tinha-se juntado um perigoso aglomerado anti-sanitário de irresponsáveis jovens, alguns sem máscara, todos tisnados de óleo, serradura, tinta e dulcíssimos suores de trabalho militante.
O Raul, disse-lhes, tinha andado a vida toda a combater o fascismo. Tinha estado preso com o Jaime Rebelo, que, tirando partido de ser analfabeto, cortou a própria língua para não poder denunciar os camaradas à PIDE. O Raul contou-lhes que, antes do 25 de Abril, os comunistas ficavam com a vida toda destruída: a carreira, a família, a casa, a liberdade. Tiravam-lhes tudo menos a dignidade. O Raul confessou-lhes que se não fosse a mulher, que ficou com os filhos quando ele esteve preso, e trabalhava de sol a sol para dar de comer às crianças, também não sabia se não teria de ter cortado a própria língua. Quem é que se oferece para explicar ao Raul que isto dos riscos da pandemia são um axioma absoluto e que mais nada importa a não ser ficar em casa?
- Quantos anos estiveste preso?
- Seis, mais qualquer coisa.
Mas foi na prisão que aprendeu a ler. Com os outros, com os camaradas. Haverá prenda mais bonita? Os presos faziam jornais lá dentro e ensinavam uns aos outros. Uma vez foi apanhado, isto no Forte de Peniche, com imprensa do Partido e levou tanta pancada, apontava para a zona dos rins, que achava que morria, mas não morreu. Então este ano teve de vir à festa. Era para não vir. Por causa da pandemia. Mas levou tanta pancada dos guardas que quando vê o Partido a levar pancada é como se fosse ele próprio outra vez naquela cela, a levar dos guardas, quase até à morte. Disse assim à mulher «Olha, agora é que vou mesmo» e a mulher, claro, mandou-o ter juízo. Ela, coitada, acabou por não poder vir mesmo.
É meia-noite. A malta da JCP poisou as ferramentas, parou de trabalhar, pôs-se toda de pé. Uma brisa do Norte lambe-lhes suavemente as frontes suadas, transcendendo a realidade. Cerraram-se agora muitos punhos contra o céu estrelado e a juventude canta ao Raul os «Parabéns a você», mas com a melodia da Internacional. O Raul achou graça àquilo e riu-se alto, com alegria verdadeira, como se não tivesse acabado de fazer 95 anos.
António Santos
Sentado numa cadeira de espuma esventrada, ao som do velho rádio a pilhas que só tosse Antena 2, o camarada aguentava a portaria com a inquebrantável disciplina da canção dos Inti-Illimani: Tun tun, quem é? Uma rosa e um cravo… Abra-se a muralha! Tun tun, quem é? O sabre do coronel.... Feche-se a muralha. E fechava mesmo. Quando era preciso, aquela portaria parecia Espanha em 36: «Não passarão!» Outro exagero, naturalmente, mas quem faz turnos de quatro horas militantes depois de oito horas assalariadas, aguenta-se melhor imaginando estas doces comparações desproporcionadas: «temos cabeça dura, os do corpo de engenheiros!». E a verdade é que a implantação da Festa do Avante! é muito assim como a reconstrução da catedral ardida de São Paulo em Londres: era o ano de 1671 e o arquitecto, de nome Christopher Wren, pergunta a um velho que varria o chão qual era a sua tarefa, ao que cantoneiro responde apocrifamente: «eu faço catedrais». O camarada da portaria, preservemos o seu anonimato, é um construtor de catedrais de tubo à face do sonho, um reconstrutor do mundo ardido, e alto lá, que aquilo com ele parece a ponte dos franceses, «mamita mia, que bem te guardam! Querem passar os fascistas? Não passa ninguém!». Com esse sentido de missão histórica ora se levantava ora se tombava a cancela «boa noite camarada!» como quem cantaria «Se me quiseres escrever, já sabes o meu paradeiro: terceira brigada mista, primeira linha de fogo». Que, por sua vez, é outra forma de dizer que, se fosse preciso, defendia-se aquela entrada com todos os meios disponíveis «mesmo que nos espere a dor e a morte, contra o inimigo nos chama o dever! O bem mais precioso é a liberdade: há que defendê-la com fé e com valor. Para as barricadas!» «Nada podem bombas onde sobra coração», mas nada, mesmo nada, poderia tê-lo preparado para o que aconteceu a seguir.
O camarada da portaria nunca tinha visto nada assim. Viu-o mal dobrou ali a esquina do Lidl: subia sozinho. Vinha tão devagar que houve tempo de pensar serenamente. Talvez seja por isso que os alentejanos são sempre mais calmos que, por exemplo e sem ofensa, os transmontanos, que vendados pelas montanhas, são desde tempos imemoriais mais facilmente surpreendidos pelo invasor. A genética dos povos pedinornitos dispensa esse estado de alerta permanente: ainda vai a centúria em Mérida e já a gente a topou do atalaião com a antecedência de construir albarradas e preparar o cerco.
Bem, mas de nada serviu a calma ao camarada da portaria. Quando o homem finalmente chegou ao portão, o camarada saudou-o como se fosse o Jerónimo em pessoa.
- Boa noite camarada, EP e cartão de serviço.
Sem uma palavra, o homem levantou a cabeça muito devagar. Tinha barba de dias por fazer. Uma grande ferida crostada abaixo do olho e, na cara suja, uns olhos esverdeados e baços, que pareciam de alumínio polido. Do alforge saiu uma EP muito amachucada e quase decapitada pelo domingo mas, ainda assim, válida.
- Precisas do cartão de serviço, camarada.
- O que é isso?
- O cartão de serviço é… é o cartão que têm os camaradas que vêm trabalhar. A festa para os visitantes só abre amanhã.
- Eu sei, camarada.
Tranquilizou-o ouvi-lo dizer assim a palavra camarada: os comunistas, para quem não sabe, reconhecem-se pela forma como só eles pronunciam a palavra camarada.
- Então... e eu venho para trabalhar.
Não tinha máscara. A camisa, ensebada e rasgada no ombro, caia-lhe sobre as calças demasiado largas. O camarada da portaria pensou que podia ser um louco. Não, era provavelmente um indigente.
- Ó camarada, desculpa lá… Isto não é assim. Qual é a tua organização?
- Boa Fé, Évora.
- Então e vieste sozinho?
O homem respirou fundo como se tentasse recompilar vários detalhes de uma resposta complexa.
-Vim. Vim na carreira até Setúbal e depois fui andando, andando…
-Vieste a pé desde Setúbal?
- Vim. - E do bornal mostrou um mapa que de tão dobrado parecia feito de guardanapo. Perdi-me aqui - e apontava toscamente - na Serra da Arrábida porque lá ninguém pára o carro.
O camarada da portaria não acreditava, claro.
- É pá. Grande esticão. Quanto tempo é que demoraste?
- Cinco dias, cinco noites. Fui dormindo onde calhava. Ia comendo e bebendo pelos cafés. E já cá estou. Posso-me sentar?
Está mais que provado que «Quem corre por gosto não cansa» é, entre todos os bordões do almanaque, o mais falso e o mais injusto. Tudo cansa, tudo se desfaz. Até as coisas que amamos, ou não fosse o mundo dialéctico e não estivessem até as pedras em perpétua erosão.
O camarada da portaria foi buscar a cadeira esventrada e disse-lhe para esperar. Marcou a extensão da Comissão de Campo, explicou a situação e, com todo o detalhe, descreveu o homem. Os camaradas da Comissão de Campo também não sabiam o que fazer e acharam melhor ligar para os camaradas da Direcção da festa. Os camaradas da Direcção da festa mostraram-se apreensivos: podia ser uma armadilha para denegrir a festa ou romper a disciplina sanitária. Decidiram por isso, ligar para o camarada responsável pela Boa Fé, que estava naturalmente na Festa, e que não acreditou no que estava a ouvir. Esse camarada é o Raul, explicou. Estava muito afastado há anos. Comprava o Avante!, é certo, mas pouco mais podia. Há uma semana, a mulher morreu de cancro: o camarada não está bem.
A Direcção acabou por decidir que o camarada poderia entrar e que lhe devia ser dada uma máscara. Um camarada ficou de tratar da tenda e outro ficou de pedir emprestado um saco-cama. Mas o camarada, que tem nome e efectivamente se chama mesmo Raul, não queria ir dormir nem ir ao posto médico. Queria ajudar.
Tanto insistiu que sentaram-no numa carrinha descapotada a cortes de rebarbadora e levaram-no para a Cidade da Juventude. Porquê para a Cidade da Juventude? Porque à meia noite o camarada fazia anos, explicaram os camaradas que deram a orientação. Não sei o que mais vos diga, foi o que a organização decidiu, camaradas; e eu também não perguntei porquê: às vezes os desígnios da organização são misteriosos.
Quem achar difícil acreditar que isto realmente se pudesse ter passado na Quinta da Atalaia, no dia 3 de Setembro de 2020, nem sonha o que veria se pudesse, do alto dos tempos medievais em que aqui havia mesmo uma torre de atalaia, ver o que esta quinta já viu. Imaginemos nós que tínhamos de explicar aos monges jerónimos que aqui plantaram vinha, que um dia a vinha seria de monges dominicanos, que daqui seriam corridos a pontapé por uma revolução republicana. Imaginemos se tivéssemos de explicar aos Condes de Atalaia, oriundos de outra Atalaia, a de Vila Nova da Barquinha, que ganharam estas terras como compensação por traírem a pátria ao serviço dos Filipes de Espanha, que um dia esta terra não voltaria nunca mais às mãos de mais nenhuma família aristocrática. Imaginemos que tínhamos de explicar aos trabalhadores do senhor Reynolds, patrão da Lisbon Fresh Water Suply, que daqui extraía a cristalina água mineral Águanave, que um dia toda esta terra seria da classe operária e dos comunistas? Pois: a descrença seria mútua.
O camarada da JCP que estava responsável pela implantação é que não achou tanta graça ao mistério. Mas que ajuda é que alguém assim poderia dar? Os camaradas decidem assim as coisas e depois os outros que se desenrasquem, não é? A 24 horas da abertura, a cidade estava atrasada e não havia tempo para estas brincadeiras do oxigénio em pó, do empalmo de 7 vias ou do nivelador de toldos. Mas a orientação é para cumprir, pá, e lá teve o camarada responsável da JCP, contrafeito, de dar uma tarefa ao bizarro camarada.
- Ó camarada, ficas aqui com esta malta. Ponham-no a trabalhar.
E ele, de facto, lá ia ajudando no que sabia. Segurava nas tábuas, passava parafusos, dava opiniões, nem sempre colhidas, ao enxame a fremir de jovens apressados que forravam com contraplacados as paletes do chão.
- Raul, não é? Então vieste a pé desde Setúbal? - era estranho, mesmo para os comunistas, tratá-lo por tu, mas depressa a distância se evaporou. O Raul era operário agrícola, mas até se safava com a madeira. Também tinha estado toda a vida precário. Às vezes sem contrato, sem descontos, sem nada. Entre os que estavam ali da jota a meter chão, havia mais quatro também assim, não operários agrícolas, mas a recibos verdes, com contratos de um ano ou sem contrato nenhum.
- É fodido, pá, se ficas doente, quando envelheces, como é que é? - A pergunta do jovem era retórica, claro está, mas o Raul deu-lhe razão.
Contou-lhes que, quando era puto, guardava os porcos dos senhores para os putos de hoje guardarem os porcos dos netos dos senhores. É a luta de classes. O resto é conversa. Depois tinha andado maltês, a trabalhar de braceiro por esse país fora, a dormir onde calhasse, a viver de côdeas, porra, a ser despedido por dá cá aquela palha e a malta concordou que ainda hoje é esse quero posso e mando. Só com o 25 de Abril é que isto melhorou e até isso nos querem tirar, protestou. E como nós não deixamos, eles, os patrões, detestam-nos. Se nos pudessem ilegalizar, ilegalizavam. Se tivessem de nos matar, matavam.
O discurso do Raul estava a dar cabo dos planos do camarada responsável para terminar a cidade a tempo. À sua volta tinha-se juntado um perigoso aglomerado anti-sanitário de irresponsáveis jovens, alguns sem máscara, todos tisnados de óleo, serradura, tinta e dulcíssimos suores de trabalho militante.
O Raul, disse-lhes, tinha andado a vida toda a combater o fascismo. Tinha estado preso com o Jaime Rebelo, que, tirando partido de ser analfabeto, cortou a própria língua para não poder denunciar os camaradas à PIDE. O Raul contou-lhes que, antes do 25 de Abril, os comunistas ficavam com a vida toda destruída: a carreira, a família, a casa, a liberdade. Tiravam-lhes tudo menos a dignidade. O Raul confessou-lhes que se não fosse a mulher, que ficou com os filhos quando ele esteve preso, e trabalhava de sol a sol para dar de comer às crianças, também não sabia se não teria de ter cortado a própria língua. Quem é que se oferece para explicar ao Raul que isto dos riscos da pandemia são um axioma absoluto e que mais nada importa a não ser ficar em casa?
- Quantos anos estiveste preso?
- Seis, mais qualquer coisa.
Mas foi na prisão que aprendeu a ler. Com os outros, com os camaradas. Haverá prenda mais bonita? Os presos faziam jornais lá dentro e ensinavam uns aos outros. Uma vez foi apanhado, isto no Forte de Peniche, com imprensa do Partido e levou tanta pancada, apontava para a zona dos rins, que achava que morria, mas não morreu. Então este ano teve de vir à festa. Era para não vir. Por causa da pandemia. Mas levou tanta pancada dos guardas que quando vê o Partido a levar pancada é como se fosse ele próprio outra vez naquela cela, a levar dos guardas, quase até à morte. Disse assim à mulher «Olha, agora é que vou mesmo» e a mulher, claro, mandou-o ter juízo. Ela, coitada, acabou por não poder vir mesmo.
É meia-noite. A malta da JCP poisou as ferramentas, parou de trabalhar, pôs-se toda de pé. Uma brisa do Norte lambe-lhes suavemente as frontes suadas, transcendendo a realidade. Cerraram-se agora muitos punhos contra o céu estrelado e a juventude canta ao Raul os «Parabéns a você», mas com a melodia da Internacional. O Raul achou graça àquilo e riu-se alto, com alegria verdadeira, como se não tivesse acabado de fazer 95 anos.
António Santos
2 comments:
Um texto que me fez rir e me emocionou até às lágrimas. Muito bom!
Uma maravilha que só podia ter acontecido ali! Obg por a contares. A forma como se diz "O Partido", como que se engrandece a letra P (chamamava-se no meu tempo "letra grande"), diz tudo.
Abç
B
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