Thursday, August 31, 2023

Farol do Bugio

Forte de S. Lourenço da Cabeça Seca. Data de estabelecimento: 1658/1758. Latitude:  38º 39’,70 N, Longitude: 09º 17’,85 W.

  Na conceção e planeamento estratégico da defesa do litoral Português, em geral, e do porto de Lisboa, em particular, surgiu como imperativo claro em meados do século XVI, que a defesa marítima de Lisboa deveria avançar até à foz do Tejo, de modo a tirar partido das dificuldades naturais que a sua barra colocava à navegação.

A sequência dos ataques da pirataria francesa e turca, sobretudo em 1552 e 1556, veio demonstrar a necessidade de reforçar a defesa do litoral, julgando-se que a decisão de “fortificar” S. Julião da Barra tenha ocorrido em 1556, ainda no reinado de D. João III e, posteriormente retomada em 1559 por iniciativa de D.ª Catarina.

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A construção da fortaleza de S. Julião da Barra, veio confirmar a importância do extenso areal que lhe ficava fronteiro, dito da Cabeça Seca, julgando-se que os primeiros projetos para construção de um forte no baixio, terão sido da autoria de Francisco de Holanda, em 1571.

A consolidação da intenção, assim como os respetivos projetos e ensaios para a construção do Forte de S. Lourenço da Cabeça Seca, ter-se-ão iniciado por volta de 1590, sob a direção do frade servita João Vicenzo Casale, mandado vir de Nápoles por Filipe I.

Seguiu-se-lhe na conceção e direção das obras, Leonardo Turriano, igualmente de origem italiana, que foi arquiteto-geral do Reino, tendo como assistente o engenheiro António Simões.

A incandescência pelo vapor de petróleo substituiu o gás em 1946.

O Forte e Torre de S. Lourenço foi classificado como imóvel de interesse público pelo Decreto nº 41191, de 18 julho de 1957, sendo reconhecido o seu valor histórico e cultural.

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Em 1959 o farol foi eletrificado, com recurso à montagem de grupos eletrogéneos passando a utilizar uma lâmpada de 500W/110V e, em 1960 entrou em funcionamento um novo sinal sonoro (nautofone).

Enquadrado no plano de automatizações, substituiu-se em 1981 o aparelho ótico, por um pedestal rotativo de óticas seladas (PRB), sendo também montado um sistema de tele-sinalização e um detetor de nevoeiro, passando o farol a ser tele-controlado a partir da Central da Direção de Faróis.

Na sequência da automatização do farol e da implantação do sistema de telecontrolo, o Farol do Bugio deixou de estar guarnecido por pessoal faroleiro em 1982.

Em 1994, o farol sofreu nova remodelação, tendo sido retirado a ótica PRB 21 e montada uma lanterna ótica ML 300, a funcionar a energia solar.

No Inverno de 1993, a ação violenta do mar, fez derrubar uma parte significativa da plataforma inferior do forte, situação que se foi agudizando nos anos seguintes e exigindo urgentes ações profundas de reparação e restauro.

Finalmente, entre 1997 e 2001, sob a égide da Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, decorreram as obras de restauro, cobrindo o enrocamento do forte, as cantarias de pedra e alvenarias e as muralhas, tendo sido construído um robusto molhe circular e um novo cais de acostagem.

Em 16 de julho de 2008, foi retirada a lanterna ML 300 e substituída por uma Vega VLB44 8 Tiras Dupla Vm, controlador de carga 2 – PROSTAR, e 4 painéis solares BP380J, aumentando o alcance luminoso para 15 milhas.

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Foi contudo em 1643, por ordem de D. João IV, sob intervenção direta do Conde de Cantanhede, que foi definitivamente ordenada a construção do Forte de S. Lourenço da Cabeça Seca ou do Bugio.

Tendo sido iniciada a construção do Forte em 1643, assume-se que a mesma terá sido concluída em 1657 ou pouco depois.

Na pouca documentação existente sobre a atividade do Forte, o primeiro registo refere-se a 1658, referindo que o Capitão Jorge Barros, governador do forte, foi advertido pelo Conselho de Guerra, para se manter no seu posto pois a “ausencia que fizesse poderia ser de gravissimo damno ao serviço real”.

O segundo registo data de 1661, refere o estabelecimento da guarnição de serviço do forte como comando autónomo: quarenta soldados, doze artilheiros e um condestável, que “partiam para fazer guardas a metade de cada mês”.

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O terceiro registo, de 1680, reporta-se de novo à guarnição do forte, a qual é assim discriminada: um governador, um condestável, um tenente e dois sargentos, que compunham o comando, doze artilheiros, três cabos de esquadra, um atambor, e trinta soldados. Acrescia a componente logística: um almoxarife, um escrivão do almoxarifado, um barbeiro e dois capelães.

No que à artilharia dizia respeito, o forte dispunha de catorze peças de calibre 24, doze de calibre 12 e uma de calibre 6, todas em bronze.

A sobriedade construtiva do forte era apenas quebrada pela presença altiva da Torre do Farol, que se elevava bem acima do conjunto edificado. Esta torre permitia cumprir as funções de vigia, durante o dia, e a de farol, à noite.

A estrutura do farol era composta por uma lanterna de pedra, circular, com vãos verticalizados, envidraçados, pelos quais se coava a frágil luz produzida por candeeiros alimentados a azeite ou a gordura animal. Fechava a lanterna uma cúpula pétrea, do tipo campaniforme, pela qual se escoava o fumo dos candeeiros.

Em 1731, recortaram-se as primeiras notícias de ruína da estrutura primitiva.

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O terramoto de 1755 fez grandes estragos no forte, ficando a torre praticamente destruída. Foi reedificada e aí instalada novamente luz em 1775. Foi um dos seis faróis mandados edificar pelo alvará pombalino com força de lei de 1758.

Em 1789 procedeu-se à recuperação da sapata, por ordem de Sua Alteza Real, altura em que, provavelmente, a torre pétrea do farol terá sido substituída pela cúpula metálica.

Em 1812 registam-se queixas sobre a utilidade do farol como ajuda à navegação. O farol sofreu grandes reparações em 1829 e o aparelho foi substituído em 1836 por outro, este já com um sistema rotativo, produzido por um mecanismo de relojoaria.

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O farol era guarnecido por um faroleiro, contudo, nos finais do século XIX, a guarnição militar já estava circunscrita a seis soldados e um cabo, sendo já em número de três, os faroleiros afetos ao serviço do farol. O forte deixou de ter guarnição militar na segunda década do século XX.

Só em 1890 se regista o planeamento de obras de adaptação e reparação em quatro dependências, “tidas com habitações dos pharoleiros” no piso superior, encontrando-se os depósitos de azeite no piso térreo. Posteriormente, organizou-se o espaço destinado aos seis faroleiros, os quais residiam no Bugio durante todo o ano, alguns dos quais se fizeram acompanhar das respetivas famílias.

O isolamento dos faroleiros era quebrado uma vez por mês, quando se deslocavam a terra para adquirir mantimentos. Porém, entre finais do século XIX e inícios do século XX, o degredo dos faroleiros foi amenizado pelo fenómeno do assoreamento do cachopo sul da barra do Tejo, atingindo proporções gigantescas e permitindo, no período da baixa-mar, a comunicação pedestre com a praia da Trafaria, existindo relatos de peregrinações das povoações ribeirinhas entre Cacilhas e Trafaria, à capela do forte, a qual era mantida pelas mulheres dos faroleiros.

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A partir dos anos sessenta do século XX, o quadro de faroleiros é alargado, tendo sido introduzido o sistema de turnos, constituindo-se para esse efeito, duas equipas de três elementos que alternavam de quatro em quatro dias, sempre que as condições de tempo e mar o permitiam.

Em 1891 a luz do farol era branca e de rotação, com eclipses de 3 em 3 minutos e, com clarões de 10 segundos de duração, produzida por um aparelho iluminante de dezasseis candeeiros de Argand com refletores parabólicos e funcionando a azeite.

Entretanto, em 1896, o aparelho catóptrico foi substituído por um aparelho dióptrico de 3.ª ordem, sendo a fonte luminosa um candeeiro de 3 torcidas alimentado a petróleo, produzindo uma luz fixa branca, variada por clarões vermelhos.

O aparelho ótico foi substituído por outro, este dióptrico catadióptrico de 3ª ordem, grande modelo, em 1923.

LOCALIZAÇÃO: FORTE DE S. LOURENÇO DA CABEÇA SECA
FUNÇÃO: COSTEIRO
ESTABELECIMENTO: 1658/1758 (Alvará Pombalino)
LATITUDE: 38º 39’,70 N
LONGITUDE: 09º 17’,85 W
ALTURA: 14 M
ALTITUDE: 28 M
ALCANCE: 15 MILHAS
CARATERÍSTICA: Fl G 5s (Lt 1s;Ec 4s)​

https://www.amn.pt/DF/Paginas/FaroldoBugio.aspx

Tuesday, August 29, 2023

Popcorn

Das músicas que para mim são eternas. 1972.

US Open

"Struggle is a never-ending process. Freedom is never really won. You earn it and win it in every generation."

Coretta Scott King

Discurso de Billie Jean King, no Arthur Ashe Stadium, nos 50 anos da igualdade do prize money para homens e mulheres no US Open e nos 60 anos da Marcha sobre Washington, Martin Luther King.


Tuesday, August 22, 2023

Um adeus português

Nos teus olhos altamente perigosos
vigora agora o mais rigoroso amor
a luz de ombros puros e a sombra
de uma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensanguentada que vacila
quase medita
E avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor
Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver
Não podias ficar nesta cama comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual.
Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal
Não tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde mores ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal.
Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti.
Alexandre O’Neill

"Nem todas cartas de amor são ridículas.
De mulheres amadas que ficaram nas palavras dos poetas.
Nora Mitrani , musa amada de O`Neill, separados pelos esbirros monstruosos da PIDE . Ficou a memória e um dos maiores monumentos da poesia portuguesa.
"Estava ligada ao movimento surrealista de André Breton. Conheceu O'Neill em Lisboa, e, diz quem viu, que foi uma paixão imediata e recíproca. Entretanto ela parte para França, com a promessa de lá se encontrarem. Promessa quebrada pela P.I.D.E. que confiscou o passaporte ao Poeta. Restava-lhe uma arma: escrever. O poema " Um Adeus Português" é dedicado a este seu "amor dorido":
Nora suicidou-se em 1961."
Maria Freire

Monday, August 21, 2023

Nau dos Corvos


Nau parada de pedra que tanto navega
e há tanto está no mar sem nunca a porto algum chegar
nau só a ocidente e todo o mar em frente
condensada insolência intemerato desafio
a mundos devassados mas desconhecidos
corvos de água e de vento aves feitas de tempo
que tão completamente são dois olhos côncavos
e fitos só nas coisas que importam verdadeiramente
nave que sulca não as águas mas os dias
navio de carreira entre o tempo e a eternidade
num espaço onde um simples segundo tem a minha idade
pedra que só aqui se liquefaz
água que só aqui solidifica
cais quente coração de corvos
vistos por quem nunca antes vira a solidão caber
em tão poucos centímetros quadrados
do mínimo de corpo necessário para a vida se afirmar
ó nau navio corvos pedra água cais
aqui estou eu sozinho todos os demais ficaram para trás
Aqui nada decorre e nada permanece
aqui os corvos são a solidão multiplicada
consistente conglomerada mas estilhaçada
unificada mas feita em bocados
De todos estes bicos curvos extremo ósseo dos corvos
onde depois os corvos passam a ser pedra e depois água
sai uma voz vasto discurso cada vez
Os corvos são a pedra menos pétrea de cabo
é nos corvos que o mar deixa de ser marítimo
Nesta nau se efectua esse comércio secular
da terra feita pedra com a água mais doméstica do mar
A névoa envolve e como que enovela os corvos
a rocha é um buliçoso e anárquico aeroporto
donde em cada momento sai um corvo
aéreo ante cujo vulto que levanta eu me curvo
O moreira baptista decerto gostaria que os corvos
se não os palradores os que ganham prémios literários
pelo menos os rudes negros os incultos mas os verdadeiros corvos
poisassem sempre no mais alto do rochedo
mas quando no inverno sopra o vento norte
e sentem frio poisam nalguma parte baixa para o lado sul
e estão-se marimbando para a propaganda
de um país vendido que eles não compraram
eles humildes corvos aves e não peixes nunca tubarões
Só aqui podem ver-se às vezes coisas invisíveis
o infinito aqui começa a acabar
em nenhum outro sítio se ouve tanto o inaudível
nem assim se define o que não tem definição
Deste porto se parte para mais que transatlânticas viagens
e em tão poucos segundos é difícil ver tantas imagens
Ninguém é cidadão deste tão pétrea pátria
nem mesmo há quem mereça aqui poisar só por instantes a cabeça
até que a prostração mais funda no total desapareça
Permite ó nau petrificar aqui
a minha sensação mais passageira
ou o meu mais instável pensamento
Eu nunca até agora e já sou velho vi
quebrar assim o tempo como quebra em ti
Que aqui o sol escureça e a noite que amanheça
neste morrer da terra onde uma vida sem cessar começa
Que após ter visto a nau mais náutica de todas essas naus
que sulcaram os inumeráveis séculos oceânicos
feitos tanto de tempo como de água
finalmente me fosse lícito fechar
definitivamente os olhos que apesar de tanto olhar
não conseguem optar entre a pedra e o mar
E só agora findas as palavras eu pressinto
pela primeira vez haver algum poema
por detrás do poema pura coisa de palavras.

Ruy Belo

Friday, August 18, 2023

no fundo


No fundo, são muito poucas as palavras
que nos doem de verdade, e muito poucas
as que conseguem alegrar a alma.
E são também muito poucas as pessoas
que nos comovem o coração, e menos
ainda as que o comovem muito tempo.
No fundo, são pouquíssimas as coisas
que importam de verdade na vida:
poder amar alguém e que nos amem,
nunca morrer depois dos nossos filhos.

amalia bautista

Thursday, August 17, 2023

CASA ARRUMADA


Casa arrumada é assim: Um lugar organizado, limpo, com espaço livre pra circulação e uma boa entrada de luz.
Mas casa, pra mim, tem que ser casa e não um centro cirúrgico, um cenário de novela.
Tem gente que gasta muito tempo limpando, esterilizando, ajeitando os móveis, afofando as almofadas...
Não, eu prefiro viver numa casa onde eu bato o olho e percebo logo: Aqui tem vida...
Casa com vida, pra mim, é aquela em que os livros saem das prateleiras e os enfeites brincam de trocar de lugar.
Casa com vida tem fogão gasto pelo uso, pelo abuso das refeições fartas, que chamam todo mundo p’rá mesa da cozinha.
- Sofá sem mancha?
- Tapete sem fio puxado?
- Mesa sem marca de copo?
- Tá na cara que é casa sem festa.
- E se o piso não tem arranhão, é porque ali ninguém dança.
Casa com vida, p’ra mim, tem banheiro com vapor perfumado no meio da tarde.
Tem gaveta de entulho, daquelas que a gente guarda barbante, passaporte e vela de aniversário, tudo junto...
Casa com vida é aquela em que a gente entra e se sente bem-vinda.
A que está sempre pronta p’ros amigos, filhos, netos, p’ros vizinhos...
E nos quartos, se possível, tem lençóis revirados por gente que brinca ou namora a qualquer hora do dia.
Casa com vida é aquela que a gente arruma p’ra ficar com a cara da gente.
Arrume a sua casa todos os dias...
Mas arrume de um jeito que lhe sobre tempo p’ra viver nela...
E reconhecer nela o seu lugar.

Carlos Drummond de Andrade
31.Outubro.1902 — 17.Agosto.1987

Monday, August 14, 2023

As Mãos do Meu Pai

As tuas mãos têm grossas veias como cordas azuis
sobre um fundo de manchas já cor de terra
— como são belas as tuas mãos —
pelo quanto lidaram, acariciaram ou fremiram
na nobre cólera dos justos...
Porque há nas tuas mãos, meu velho pai,
essa beleza que se chama simplesmente vida.
E, ao entardecer, quando elas repousam
nos braços da tua cadeira predileta,
uma luz parece vir de dentro delas...
Virá dessa chama que pouco a pouco, longamente,
vieste alimentando na terrível solidão do mundo,
como quem junta uns gravetos e tenta acendê-los contra o vento?
Ah, Como os fizeste arder, fulgir,
com o milagre das tuas mãos.
E é, ainda, a vida
que transfigura das tuas mãos nodosas...
essa chama de vida — que transcende a própria vida...
e que os Anjos, um dia, chamarão de alma...
Mário Quintana

Saturday, August 12, 2023

RENDIÇÃO

Vem, camarada, vem
render-me neste sonho de beleza!
Vem olhar doutro modo a natureza
e cantá-la também!
Ergue o teu coração como ninguém;
Fala doutro luar, doutra pureza;
Tens outra humanidade, outra certeza:
Leva a chama da vida mais além!
Até onde podia, caminhei.
Vi a lama da terra que pisei,
e cobri-a de versos e de espanto.
Mas, se o facho é maior na tua mão,
vem camarada irmão,
erguer sobre os meus versos o teu canto.
Miguel Torga

Tuesday, August 08, 2023

OS ESTIVADORES

Só eles suam mas só eles sabem
o preço de estar vivo sobre a terra
Só nessas mãos enormes é que cabem
as coisas mais reais que a vida encerra
Outros rirão e outros sonharão
podem outros roubar-lhes a alegria
mas a um deles é que chamo irmão
na vida que em seus gestos principia
Onde outrora houve o deus e houve a ninfa
eles são a moderna divindade
e o que antes era pura linfa
é o que sobra agora da cidade
Vede como alheios a tudo o resto
compram com o suor a claridade
e rasgam com a decisão do gesto
o muro oposto pela gravidade
Ode marítima é que chamo à ode
escrita ali sobre a pedra do cais
A natureza é certo muito pode
mas um homem de pé pode bem mais
Ruy Belo
(27 de fevereiro de 1933 – 8 de agosto de 1978)

***

A cidade dormiu cedo.
A lua ilumina o céu, vem a voz de um negro do mar em frente.
Canta a amargura da sua vida desde que a amada se foi.
No trapiche as crianças já dormem.
A paz da noite envolve os esposos.
O amor é sempre doce e bom, mesmo quando a morte está próxima.
Os corpos não se balançam mais no ritmo do amor.
Mas no coração dos dois meninos não há nenhum medo.
Somente paz, a paz da noite da Bahia.
Então a luz da lua se estendeu sobre todos,
as estrelas brilharam ainda mais no céu,
o mar ficou de todo manso
(talvez que Iemanjá tivesse vindo também a ouvir música)
e a cidade era como que um grande carrossel
onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia.
Vestidos de farrapos, sujos, semi-esfomeados, agressivos,
soltando palavrões e fumando pontas de cigarro,
eram, em verdade, os donos da cidade,
os que a conheciam totalmente,
os que totalmente a amavam,
os seus poetas.
Jorge Amado
(do livro Capitães da Areia)

Monday, August 07, 2023

Turbilhão


Sombras.
Rolos de fumo.
A forja escancara a boca
A vomitar sem rumo
Incandescência louca.
O ferro a dilatar-se
Em contorsão
Sob o malho pesado a martelar
Toma forma.
Ritmo!
Vibração!
Estalidos secos das correias
Que se cruzam no ar
Vertigem!...
Feições endurecidas
A cismar
Constantemente.
Recolho-me
E deixo o pensamento
Rodopiar co' a máquina...
Depressa!
Rotação!
Em meu cérebro torneio
O veio
Da vida em combustão.

ANTÓNIO DIAS LOURENÇO
(25 de Março de 1915 – 07 de Agosto de 2010)

Sunday, August 06, 2023

POEMA SEXAGÉSIMO QUARTO

O poema ama-se a si mesmo, ama
a terra, o indecente brilho dos animais, o cio
do inverno, o parto alegre do mês de março, o ciúme
que o basalto tem da esmeralda.
O poema veste-se com a luz das árvores, e é árvore,
é folha, é pena, é pássaro, é ovo que apetece à fala.
Diz-te, poema, a ti mesmo. Diz o que quero dizer
da liberdade que trago nas entranhas a namorar-me
o sangue. A tua dor não é dor nenhuma.
A tua dor é uma alegria poderosa,
como a dos pastores,
a das crias, a
dos raios,
a do triunfo da inveja.

Ah, meu poema, meu poema quase eu,
quase irmão, tão perto de ser uma criança, um adulto,
de ser um interminável preço a pagar pela vida.
Rasgo-me, rasgo a minha pele, a minha carne
para te oferecer a nostalgia dos cisnes, o
prazer bruto da armadilha
e a insuspeita alegria da primeira manhã.
Escrevo. Escrevo e
não sei fazer mais nada. Escrevo
e faço amor.
As palavras conhecem-me,
têm agora a cor melada dos meus olhos,
profundo âmbar que dormiu com as estrelas.

Há um mediterrâneo em mim
que espera pelo teu corpo, pela luz sombria
do teu sexo, e pelo teu próprio
nome. O desejo de ti é uma morte viva, exaltação
da vida do poeta, eternidade imensa, intensa, luz
repentina de uma constelação acomodada num verso,
precisamente esse que despreza o destino e não
te espera,
não aguarda pela revelação do teu amor,
mas que caminha em ti e se move nos teus passos
entre o deslumbramento e a simplicidade,
felicidade que aos versos mais inesperados
passa, sem razão,
despercebida.

Joaquim Pessoa
in 'Guardar o Fogo'

Wednesday, August 02, 2023

Teresa Torga

No centro da Avenida
No cruzamento da rua
Às quatro em ponto perdida
Dançava uma mulher nua
A gente que via a cena
Correu para junto dela
No intuito de vesti-la
Mas surge António Capela
Que aproveitando a barbuda
Só pensa em fotografá-la
Mulher na democracia
Não é biombo de sala
Dizem que se chama Teresa
Seu nome e Teresa Torga
Muda o pick-up em Benfica
Atura a malta da borga
Aluga quartos de casa
Mas já foi primeira estrela
Agora é modelo à força
Que a diga António Capela
T'resa Torga T'resa Torga
Vencida numa fornalha
Não há bandeira sem luta
Não há luta sem batalha
José Afonso