Sunday, August 06, 2023

POEMA SEXAGÉSIMO QUARTO

O poema ama-se a si mesmo, ama
a terra, o indecente brilho dos animais, o cio
do inverno, o parto alegre do mês de março, o ciúme
que o basalto tem da esmeralda.
O poema veste-se com a luz das árvores, e é árvore,
é folha, é pena, é pássaro, é ovo que apetece à fala.
Diz-te, poema, a ti mesmo. Diz o que quero dizer
da liberdade que trago nas entranhas a namorar-me
o sangue. A tua dor não é dor nenhuma.
A tua dor é uma alegria poderosa,
como a dos pastores,
a das crias, a
dos raios,
a do triunfo da inveja.

Ah, meu poema, meu poema quase eu,
quase irmão, tão perto de ser uma criança, um adulto,
de ser um interminável preço a pagar pela vida.
Rasgo-me, rasgo a minha pele, a minha carne
para te oferecer a nostalgia dos cisnes, o
prazer bruto da armadilha
e a insuspeita alegria da primeira manhã.
Escrevo. Escrevo e
não sei fazer mais nada. Escrevo
e faço amor.
As palavras conhecem-me,
têm agora a cor melada dos meus olhos,
profundo âmbar que dormiu com as estrelas.

Há um mediterrâneo em mim
que espera pelo teu corpo, pela luz sombria
do teu sexo, e pelo teu próprio
nome. O desejo de ti é uma morte viva, exaltação
da vida do poeta, eternidade imensa, intensa, luz
repentina de uma constelação acomodada num verso,
precisamente esse que despreza o destino e não
te espera,
não aguarda pela revelação do teu amor,
mas que caminha em ti e se move nos teus passos
entre o deslumbramento e a simplicidade,
felicidade que aos versos mais inesperados
passa, sem razão,
despercebida.

Joaquim Pessoa
in 'Guardar o Fogo'

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