Mísia
July 26, 2017 ·
CARTA A DEUS ( Mísia)
Querido Deus
Não sei se te lembras de mim e de um episódio passado há muito tempo, no Colégio Liverpool no Porto. Com treze anos e depois de ler "Porque não sou Cristão" (tu sabes qual o autor), com a frontalidade que ainda hoje conservo, fui direita bater à porta do gabinete da Madre Directora comunicar-lhe pessoalmente que já não acreditava em Ti.
A seguir deitei fora a minha coleção de santinhos de que tanto gostava , suas nuvens trespassadas por feixes de luz celestial.
Interna desde os seis anos, fiquei mais só a partir desse dia. Uma solidão cósmica, sem nenhuma luz ao fundo do corredor. Viisualizava-me como uma astronauta pendurada pelo cordão da cápsula espacial, com o negro infinito do espaço como edredon eterno.
Três anos mais tarde li "O Mito de Sísifo" e então aí é que ficou tudo estragado entre nós.
Hoje percebo que a função da ideia de Ti teria sido uma útil consolação para o vazio afectivo daqueles anos e dos seguintes. Mas nesse tempo eu ainda não possuia a sabedoria necessária para aceitar que a verdade não é o que mais interessa, e que a ideia de Ti não tem um valor fixo.
Não sabia que a tua morte pode ser um enorme vazio, sobretudo para uma agnóstica como eu.
Sou hoje uma agnóstica não praticante. Pago promessas na ilha japonesa de Enoshima, a BentenSan - ciumenta deusa das gueishas, dos artistas e jogadores - e trago sempre comigo um minusculo Stº António (versão homeopática )que faz tudo o que lhe peço: só milagres muito pequeninos e sempre possíveis.
De facto, nunca me refiz do luto de Ti .
Por isso a voz desta carta é ainda a daquela aluna que não quis mentir por omissão. Por isso, esta é uma carta íntima só entre tu e eu , um textinho sem grandeza ou sombra literária , sem pretensões deontológicas. Nada de Heidegger , Levinas , Nietzsche ou Coleridge e a sua suspensão da incredulidade.
Querido Deus, tenho tantas perguntas a fazer-te! Algumas desde os treze anos, outras desde ontem.
É verdade que depois de crear o mundo, te foste embora não vendo assim o que fizeste?
Nunca viste os tsunamis que nos engolem, os fogos que nos abrasam, os ventos que nos estrelam contra coisas duras, e os raios que nos partem?
Nem as crianças em fase terminal nos hospitais morrendo devagar , com olhos febris como lagos cintilantes?
Porquê tiveste tanta imaginação para células doentes e virus mutantes?
Não sabes nada da falta de compaixão da humanidade, da tortura , das violações, da crueldade entre nós ? Do nosso sofrimento físico e moral ? "Heavy furniture", querido Deus....
Talvez as minhas perguntas te pareçam impertinentemente ingénuas, mas - qual Lilith- fiquei para sempre cristalizada no estádio de estarrecimento primário que me provocou e provoca o tipo de lugar em que nos puseste.
Dirás que só te falo de grandes catástrofes e da barbárie mais extrema. Que as flores são lindas ,que as joaninhas têm design dos sixties, que os passarinhos cantam e que as crianças sorriem sem motivo. Sim, são excelentes argumentos aos quais sou sensível, mas não chegam para acalmar mil dúvidas (algumas bastante quotidianas), acumuladas desde o Colégio Liverpool.
És capaz de assitir a um documentário da National Geographic sem tapar os olhos quando o bebé antilope mais frágil, de pernas a tremelicar imenso, vai ser mesmo comido ?
E a calçada portuguesa, não podias fazer de maneira que continuasse a ser "tãaao linda! " mas menos letal de modo a não enviar para a traumatologia os idosos com osteoporose ? E já agora, que também se pudesse andar com sapatos de tacão sem o risco de partirmos a moleirinha?
Não achas que evitar a segunda parte de Bambi teria sido uma boa operação de marketing para a tua imagem?
Por favor Deus, diz que sim!Não podias inventar um nome mais poético para Ranholas?
Temos também o caso da estátua do Pessoa no Chiado - ele tão pouco sociável- numa exposição sem defesa, entregue aos turistas de Badajoz. Achas que ele merecia uma coisa assim?
E pela Tua Santa Saúde, nao podias aconselhar o João Braga a decidir de uma vez por todas em que tom quer cantar?
Desculpa a irrelevância e a provocação de algumas questões mas como muito bem sabes, fizeste-me irresistivelmente imperfeita. Poderia continuar a importunar-te com a minha curiosidade, mas com que sentido perguntar ad aeternum?
Não sei se algum dia e de que maneira me responderás. ...Nem sei se ainda quero as Tuas respostas. Era de facto mais fácil até aos treze anos quando estavas dentro de mim e não precisava de te escrever.
Lenta genuflexão,
Mísia
Ps: Ah, já me esquecia!
Obrigada pelos pinguins, cães salsichas, peixinhos da horta e tremoços .
Pela maravilhosa Celeste Rodrigues, Yoshitomo Nara e Mahler.
Obrigada pelas palavras" cogumelo e borboleta ".(Delete "fronha" please)
Obrigada pelo milagre das cerejeiras em flor e pelos barquinhos de papel.
Ten points por Veneza! Yess!
Sincera e eternamente agradecida pelo meu fantástico gato Virgula!