Naquela pequeníssima casa do Pragal, herdada de uns avós que tinham finalmente regressado ao seu Alentejo, uma casa pequena quase coberta pelo colorido das sardinheiras que alegravam as suas janelas, as mais floridas do Beco dos Pimentas... viviam Maria e José.
Maria, de apenas 23 anos, filha de pescadores da Trafaria, era cozinheira. A mais bonita do refeitório da Lisnave, dizia-se. Ele, mais velho, com 29, soldador na Parry & Son. Conheceram-se nos poucos intervalos do trabalho e por ali foram namorando, em passeios e conversas cada vez mais sérias, até um dia o Zé convencer a Maria a casar e ir viver para o seu Pragal, logo ali aos pés na novidade que era o Cristo-Rei.
A meio desse verão já não era possível esconder a gravidez da Maria. Em Dezembro estava linda, com a sua barriga muito redonda a fazer empinar cada vez mais as saias.
O Zé sentia um aperto no coração de cada vez que via a Maria ocupar-se de alguma tarefa mais pesada, fosse em casa fosse no emprego. A barriga da Maria ia ficando todos os dias maior e toda a gente sabia que não chegaria Janeiro sem que houvesse um novo, ou nova habitante no Beco dos Pimentas.
Quem tomava conta da casa, enquanto os dois jovens trabalhadores estavam lá longe, junto à água e à agitação dos grandes estaleiros navais de Cacilhas, era a mãe do Zé, Margarida, mulher de força nos seus cinquenta e poucos, que há muito tinha que ir fazendo de mãe e pai daquela família, porque o seu homem, o António, serralheiro mecânico naval, apesar de trabalhador e honesto até aos ossos, era já a terceira vez que estava preso. As duas primeiras vezes tinha sido coisa rápida, mas agora já lá iam uns anos no Forte de Peniche. Ninguém entre os vizinhos dizia abertamente porquê, embora não fosse segredo para ninguém quais os motivos que o tinham levado à prisão.
Voltando ao Zé e à Maria, ela iluminada de felicidade, ele cada dia mais apreensivo, só tinham olhos um para o outro.
Ela estava em paz. Contava que desde que num momento de descanso, na cozinha do refeitório, um raio de sol tinha entrado pelo vidro da grande janela e pousado na sua enorme barriga, parecia-lhe ter ouvido uma voz que lhe disse que tudo ia correr bem e que o seu filho – sim, um rapaz – ia nascer saudável. Dizia também que a voz a tinha convencido de que o futuro do seu filho iria ser muito diferente da vida dos pais... e ainda mais da vida do avô António.
Toda a miudagem do bairro sentia já os cheiros do Natal e o sabor das coisas boas que as avós e as mães sempre faziam. A excitação de, desta vez, poder ser mesmo verdade que apareceria na sala, junto à pequena árvore enfeitada com bolas brilhantes, aquele brinquedo igualzinho ao que tinham visto numa loja da Rua Capitão Leitão, que os mais velhos insistiam em chamar Rua Direita. Aquele carro de bombeiros de lata pintada, ou o soldadinho de chumbo, ou aquela boneca que abria e fechava os olhos, brinquedos para somar às horas de brincadeiras na rua, até a tarde cair, jogando à bola, ou à macaca, ou à cabra-cega, ou ao pião, ou correndo atrás de aros de bicicleta.
E nisto chegou o dia 24 de Dezembro. A avó Margarida tinha feito rabanadas, filhós, arroz doce... estava já a cozer o bacalhau com couves e batatas para a Maria e o Zé e o seu irmão mais velho, o Miguel que vinha do Barreiro, onde trabalhava nos comboios, trazendo a sua mulher Isabel e as duas filhas gémeas de cinco anos.
Quando se preparavam par ir para a mesa em que os esperava a consoada... aconteceu! A Maria estremeceu, abriu um grande sorriso, o Zé tremia muito e suava, a avó Margarida, como sempre, sabia exactamente o que devia fazer. Chamou a já prevenida vizinha parteira, que morava apenas duas portas ao lado... e ao som de risos e da algazarra dos vizinhos que regressavam da Missa do Galo, depois da meia-noite, nasceu o menino, nas primeiras horas do dia 25. Foi uma noite de alegria. A ceia ficou a arrefecer e quase ninguém comeu. Chegaram vizinhos com presentes. Cada um oferecendo o que podia.
O menino dormia sobre um pequeno colchão, sob o olhar atento do Matateu, um grande cão que, ironicamente, era totalmente branco, manso como um cordeiro e com um bafo fumegante que parecia querer aquecer o quarto e aquele humano pequenino que era novo para ele, mas que iria ser o seu melhor amigo.
Lá fora alguém cantava cantigas de Natal.
Poderiam ter-lhe chamado Jesus... mas não. Escolheram chamar-lhe António, como o seu avô, o único que não pôde estar na festa.
(Samuel – Novembro de 2016)
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