Saturday, November 29, 2014

Arame



Que nunca se cale a ternura das palavras
e nunca se desfaçam os sonhos que trazes nas mãos
que das lágrimas que te escorrem se façam sementes
que ao cairem no chão possam ser fecundadas
pelas águas dos rios que te trespassam
e de novo possam surgir as árvores de verde folhagem
para abrigarem todos os pássaros quando chegar a primavera
não haverá mais gritos nem medos nem espadas
todas as crianças voltarão a brincar nas ruas
e a Natureza voltará em todo o seu esplendor
como se nunca tivesse havido um arame…

Sunday, November 16, 2014

O meu Amigo partiu...




Amigo

Amigo
É mais que uma palavra, é uma aragem de esperança

Amigo
É mais que um irmão, é um “sempre presente”

Amigo
É mais que o sol ou a lua, a chuva ou o vento

Amigo é terra, porque fecunda e dá fruto
É mãe, porque protege
É mar, porque é vida

Amigo é tanto!

Amigo é ar, porque respira
É fogo, porque aquece
É partilha, porque cúmplice

Amigo é abraço
Amigo é ternura
Amigo, sem cansaço
É a forma de amor mais pura

Amigo é tanto que nem cabe na palma da mão! 


O meu último abraço para ti, Zé. Do tamanho do Mundo!



Monday, November 10, 2014

UMA CHAMA NÃO SE PRENDE


Rodeado de paredes
rodeadas de muros altos
que foram já muralhas
um preso encarcerado
ao longo da terrível década de 50
ao longo desses anos que só agora
começavam
Não cedeu.
Levado a tribunal
em 2 de Maio de 1950
só então fica a saber que Militão e Sofia
presos com ele e torturados não “falaram”
não cederam E que esse grande patriota Militão
Ribeiro fazendo a greve da fome foi morto.
Perante o tribunal acusa os seus acusadores
Defende o seu Partido a sua acção e direcção
a sua orientação política
Responde ás calúnias rasteiras
que são os porcos argumentos do ódio
e do terror de estado Ponto a ponto
responde com o orgulho do homem livre
a coragem da clareza e o vigor da inteligência
Responde por si e pelos seus
como quem acusa e ameaça
Ameaça o inimigo que o tem preso
que o terá encarcerado 11 anos seguidos
14 meses incomunicável
E 8 anos em tenebroso
Isolamento
E não cedeu Nunca cedeu

Agora na humidade salina da cela
contra o eco do estrondo do mar
que não esquece/ e grita/ contra a fortaleza
contra a corrente contínua dos dias e das noites
contra a solidão dos homens já
meio submersos e
o piar dos corvos
este homem livre é uma chama
uma lâmpara marina
não cede e lê e desenha lê
e estuda e escreve este homem livre
que está preso e é uma chama
açoitada pelo vento e pelo silêncio
numa cela Não cede e escreve
A Questão Agrária,
As lutas de classes em Portugal nos fins da Idade Média
e escreve uma tradução do Rei Lear
e escreve Até amanhã, camaradas

Uma semana depois, a 9 de Maio
o homem livre encarcerado
excepcional e comum, o dirigente
Da gente comum, que se agiganta perante
aqueles esbirros sombrios,
aquele bando de tartufos, pálidos
representantes dos fazedores de
leis iníquas e injustas
e, subtraindo-lhes o tribunal e a ordem
do mundo que
p’ra ele tinham estabelecido
declara enfim
«no que me diz pessoalmente respeito
também alguma coisa fica provado:
É que como membro do PCP, como filho
Adoptivo do proletariado,
Cumpri os meu deveres
para com o meu partido e o meu povo.
É isto que interessa fique provado, porque é só
ante o meu partido
e o meu povo
que respondo pelos meus actos
Vamos ser julgados e certamente
Condenados. Para nossa alegria
Basta saber que o nosso povo pensa
que se alguém deve ser, julgado e condenado, por agir contra os
interesses do povo e do país, por querer arrastar Portugal a uma
guerra criminosa, por utilizar meios inconstitucionais e ilegais, por
empregar o terrorismo, esse alguém não somos nós, comunistas.
O nosso povo pensa que se alguém deve ser julgado por tais
crimes, então que se sentem os fascistas no banco dos réus, então
que se sentem no banco dos réus os actuais governantes da
nação e o seu chefe Salazar.
O homem livre encarcerado
Fugirá enfim
numa fuga colectiva
a 3 de Janeiro de 1960
e nunca mais
foi apanhado.

Manuel Gusmão

Wednesday, November 05, 2014

Sátira aos homens quando estão com gripe


Pachos na testa, terço na mão
Uma botija, chá de limão
Zaragatoas, vinho com mel
Três aspirinas, creme na pele
Grito de medo, chamo a mulher
Ai Lurdes, Lurdes, que vou morrer
Mede-me a febre, olha-me a goela
Cala os miúdos, fecha a janela
Não quero canja, nem a salada
Ai Lurdes, Lurdes, não vales nada
Se tu sonhasses, como me sinto
Já vejo a morte, nunca te minto
Já vejo o inferno, chamas diabos
Anjos estranhos, cornos e rabos
Vejo os demónios, nas suas danças
Tigres sem listras, bodes de tranças
Choros de coruja, risos de grilo
Ai Lurdes, Lurdes, que foi aquilo!
Não é a chuva, no meu postigo
Ai Lurdes, Lurdes, fica comigo
Não é o vento, a cirandar
Nem são as vozes, que vêm do mar
Não é o pingo de uma torneira
Põe-me a santinha, à cabeceira
Compõe-me a colcha, fala ao prior
Pousa o Jesus, no cobertor
Chama o doutor, passa a chamada
Ai Lurdes, Lurdes, nem dás por nada
Faz-me tisanas, e pão-de-ló
Não te levantes, que fico só
Aqui sozinho a apodrecer
Ai Lurdes, Lurdes que vou morrer.

(António Lobo Antunes)