Sei
que vou ser condenado. Sei que irei longos anos para a Cadeia de
Peniche, onde se condensam alguns dos aspectos mais negros do regime,
onde impera a coacção moral e física, a arbitrariedade e a prepotência,
os castigos corporais e a má alimentação, onde um director psicopata e
invertebrado passeia o seu sadismo.
É a 3.ª vez que estou preso.
É a 2.ª vez que sou julgado.
Revejo estes 20 anos.
Revejo
alguns dos melhores homens que conheci, uns mortos prematuramente,
outros assassinados, outros destruídos pela violência da própria luta.
Revejo
as centenas e centenas de militantes comunistas que pessoalmente
conheci e que de mim sabiam apenas o que é em mim fundamental: que sou
comunista.
Revejo os meus companheiros de clandestinidade, meus
camaradas e meus amigos, esses homens e essas mulheres que, no
sobressalto e no perigo, erguem a resistência no meu país.
Repito: sei que vou ser condenado.
Mas
digo e redigo: neste tribunal, o meu lugar é aqui. Os serventuários da
exploração e da tirania, esses é que são os criminosos.
Escrito
há 45 anos e lido em pleno tribunal plenário, este discurso do meu pai
ilustra a coragem de muitos, dizendo na cara dos carrascos aquilo que
pensava deles, sem medo.
Já atrasada nas comemorações dos 94 anos
anos do PCP, não podia deixar de partilhar este texto, que fala do que
foi o Partido e que critica o regime ditatorial - em tantas coisas tão
parecido com o de hoje.
--
1 – No início deste julgamento pus-me à disposição deste tribunal para responder a
quaisquer perguntas. Afirmei então que não negava nem reconhecia fosse o que
fosse, que era à acusação que competia apresentar provas.
A acusação nada provou e nada alegou.
2 – Chegou a altura de analisar o conjunto deste processo. Em resumo o caso é este:
em 25 de Maio de 1969 são presos dentro de uma casa, 4 homens e uma mulher.
A mulher é expulsa do país e acusada de ser um agente da subversão internacional;
o dono da casa é acusado de ser militante de muita confiança d P.C. Três outros
são acusados de serem funcionários. Duas mulheres destes são também acusadas
de serem funcionárias. No meu caso concreto, acusam-me NEM MENOS de ser
membro da direcção do P. de pertencer à D.O.R.L. de controlar o comité local
de Lisboa, de controlar o sector dos intelectuais, de controlar o sector dos
estudantes, de controlar o aparelho de imprensa, de controlar os Fundos.
E ainda de ser reincidente.
3 – Para o simples senso comum, esta acusação não é só exagerada, é disforme,
inconcebível. Mas não é só isso. Comparemo-la com a nota oficiosa, também
ela emanada da PIDE. Na nota oficiosa diz-se que em 1959 emigrei, na pronúncia,
diz-se que passei a viver à custa do Partido na clandestinidade, a nota oficiosa afirma
que era
agora membro do CC, a pronuncia afirma que o era desde 1964. A pronúncia
diz que estive no 6º Congresso em Kiev, a nota oficiosa diz que fiz diversas
permanências na União Soviética. Etc., etc.
4 – Para explicar estas contradições é preciso regressarmos a Maio-Junho de 1969. Por
um lado, estava-se em plena crise na Universidade de Coimbra, e, em Lisboa,
sobretudo no Técnico e em Direito, crescia a efervescência: a acção e a luta estudantil
ascendia em toda a universidade portuguesa.
Por outro lado, desenvolviam-se entre os democratas as acções preparatórias de
participação nas chamadas eleições para a Assembleia Nacional. Mas sobretudo o
amplo movimento grevista dos trabalhadores de Lisboa, Baixo Ribatejo e Margem Sul
trazia para primeiro plano a pujança política da classe operária e do seu Partido.
5 – A nota oficiosa responde a esta situação, reflecte necessidades políticas de procurar
travar o movimento popular, fazendo crer que se assestava um golpe irreparável no
Partido Comunista.
Daí que era do CC e controlava este mundo e o outro. Daí que uma inofensiva
americana era um agente responsável da subversão. Daí que Picado Horta era
membro de confiança do P., daí que eramos todos funcionários, etc., etc.
6 – Quando fez publicar a nota oficiosa a PIDE provavelmente esperava arrancar de
alguns de nós as tais confirmações. Mas não o conseguiu. Mais: o escândalo
começa a surgir. C. Picado Horta é pessoalmente conhecido de pessoas altamente
afectas ao regime, todos sabem que ele não é comunista, ninguém ousa duvidar
que está a sofrer violentas torturas, que se lhe procuram arrancar a todo o custo
declarações falsas.
7 – A PIDE vê-se num beco sem saída. Por um lado o escândalo. Por outro lado não
pode voltar atrás, desdizer-se. Atira para o saco e à pressa um conjunto informe
de acusações, convencida talvez que de tanta coisa, o Tribunal alguma há-de reter.
O inspector Tinoco diz-me: não temos qualquer base para o acusar de ser da
Direcção do P. mas vamos fazê-lo porque talvez pegue e porque você nada
nos respondeu.
8 – Ao mesmo tempo toca a criar aos réus todas as dificuldades para a defesa.
Já foram referidas aqui. Só quero relatar a este tribunal este episódio concludente,
devidamente comprovado por uma carta minha junto aos autos com a censura de
Peniche. Quando se protesta junto do director de Peniche contra a apreensão das
minhas cartas em vésperas de julgamento, ele justifica-se com instruções expressas
da PIDE. E como se lhe faz notar que a cadeia é do Ministério da Justiça, impávido
o director responde que quem manda naquilo é a PIDE, que nada ali se faz sem o
conhecimento e autorização da PIDE.
9 – Pelo mesmo conjunto de razões, a Censura recebe ordens terminantes, contra o
que é habitual, para nada deixar publicar referente a este julgamento.
10 – Mas apesar de tudo, não é possível condenar os réus sem audiências públicas
e então assiste-se a isto:
A ACUSAÇÃO DEIXA CAIR O PROCESSO:
Vêm aqui 3 ou 4 declarantes dizer que eu morava na Bordalo Pinheiro, mas nem
se lembram do meu nome.
Testemunhas de acusação não aparecem.
O acusador não alega.
11 – Porquê? Porque então todos estes aspectos disformes do processo, todas as
irregularidades e ilegalidades cometidas teriam surgido ainda mais evidentes e
espantosas.
12 – Em suma: este processo não é só político pelos aspectos processuais e jurídicos.
É-o do topo a baixo. E só se pode compreender considerando os condicionalismos
e as vicissitudes políticas.
13 – O que quero declarar é o seguinte: é que tenho orgulho de ser militante do Partido
Comunista, que não tenho a honra de pertencer à Direcção do Partido, que a minha
mulher não era funcionária nem membro do Partido.
II
1 – Falou-se aqui muito do P. Comunista.
A acusação afirma que é uma associação secreta, ilícita e subversiva. As minhas
testemunhas, de todos os quadrantes do pensamento democrático, demonstraram
aqui três coisas:
1º que em Portugal todas as organizações ou partidos políticos são
automaticamente considerados associações ilícitas, secretas e
subversivas;
2º que os comunistas portugueses constituem uma corrente de amplo
significado e importância no conjunto das tendências políticas
nacionais;
3º que o PCP é apenas… um partido político. É apenas o único partido
que pode resistir às perseguições, à violência, à histeria anticomunista
da propaganda governamental.
2 – De facto o P.C.P. é o resultado inevitável do amadurecimento político da classe
operária portuguesa, no impacto da grande revolução socialista de Outubro. Surge
em 1921, fundado por militantes operários e intelectuais, anarquistas e sindicalistas,
experimentados nas lutas da CGT, mas conquistados pelas ideias marxistas.
3 – Desde então, apesar de todas as vicissitudes, apesar de todos os fluxos e refluxos
acidentais, o PCP não cessou de se desenvolver, tornando-se não só um grande
partido nacional como o mais forte agrupamento antifascista português. Apesar de
na clandestinidade, é público e até oficialmente reconhecido que o PC tem estado
na vanguarda de todas as grandes acções de massas desenvolvidas nestes últimos
40 anos, nas lutas económicas ou políticas, , nas acções sindicais ou culturais ou
associativas.
4 – Esta vitalidade e esta expansão explicam-se porque o PC é o partido da classe
operária portuguesa, sua criação e sua obra. O PCP reflecte a maturidade, a
experiência e o conteúdo revolucionário da própria classe operária. Tal como a
classe operária se tornou desde a década de 30-40, a principal classe antifascista,
assim o PC se transformou no mais forte partido político antifascista.
III
1 – Acusam o PCP de intentar mudar o regime e a forma de governo por meios não
consentidos ou violentos.
Os depoimentos das testemunhas provaram que esta acusação inverte os termos
da realidade. Provaram que não existem em Portugal, meios consentidos para a
expressão da vontade popular, provaram que o próprio regime empurra para uma
solução violenta dos problemas políticos nacionais.
Vejamos os factos.
2 – O Estado Novo implanta-se em Portugal por um golpe de Estado anticonstitucional e
logo se define a si mesmo como antidemocrático, antipopular e ditatorial. Copia, nos
termos e nos modelos, os regimes de Mussolini e de Hitler a quem incensa e apoia.
3 – Ao longo destes 44 anos, o regime depura, aperfeiçoa e avoluma todo o aparelho
de Estado.
Os quadros das forças armadas sofrem intensa e constante selecção política,
designadamente os altos comandos. A GNR, a PSP, a PVT e mesmo a G.F. tornam-se
corpos policiais, altamente treinados na repressão aos trabalhadores e aos
antifascistas, odiados e temidos pelo povo.
Cria-se uma polícia política de tipo hitleriano – a PVDE, depois PIDE, depois DGS que
se estende a todo o território nacional e mesmo às colónias. Esta polícia assume um
papel cada vez mais preponderante em todo o aparelho de estado, que coordena,
dirige e controla a todos os níveis.
Instituem-se tribunais políticos, altamente depurados.
Etc..
4 – É evidente que a criação e o reforço de um tal aparelho de estado é o resultado e
também é o agente de uma repressão totalitária, generalizada e incruenta. Uma
constante fundamental da política do regime tem sido a violência e o terror do
Estado contra os trabalhadores e contra os antifascistas, sejam comunistas ou
liberais, católicos ou socialistas.
Perseguições a todos os níveis, prisões,torturas, longas penas, assassinatos são factos
correntes neste país.
5 – Simultaneamente, anula-se toda a dependência entre os órgãos do poder e a vontade
nacional. Os poderes legislativo, judicial e executivo dependem exclusivamente do
próprio governo. Mantem-se é certo alguns sufrágios, apenas porque os portugueses
o exigem e é necessário à fachada do regime. Mas é público e vai sendo oficialmente
reconhecido que tais “eleições” são sistematicamente burladas.
Não há liberdade de imprensa, nem de expressão de pensamento, nem de associação,
nem sindical, nem de greve.
6 – Conhecem-se, aliás, declarações públicas de governantes que exprimem esta
situação. Salazar falava nos golpes de Estado anticonstitucionais e nos safanões
a tempo.
O actual Presidente do Conselho afirma que não permitirá a entrada na Assembleia
nacional de um grupo de contestação ao regime.
O actual M. do Interior afirma que o governo nunca aceitará subordinar-se à ditadura
de qualquer maioria (23.1.69).
Ao referir-se ao Pacto Ibérico, o Presidente do Conselho afirma que ele visa a luta
contra a subversão, isto é, contra os antifascistas.
Em vésperas de eleições, o M. do Interior previne que não será possível encarar a
confrontação global das estruturas constitucionais e da política do governo e ameaça
com “a reacção indispensável” do governo.
7 – Em suma, pela natureza do aparelho de Estado, pela repressão sistemática da vontade
popular, pela supressão das liberdades fundamentais é o regime que impede sistemati-
camente qualquer solução do problema político nacional, que a si mesmo se institui
como o único regime constitucional.
8 – Os comunistas portugueses não defendem a violência e, em múltiplas oportunidades,
têm apontado a possibilidade e a importância de imprimir um novo curso à vida política
nacional que poupasse o país à guerra civil. São os fascistas que há 40 anos recorrem
à violência e ao terror para impor o seu regime. Perante isto, os comunistas não se
dobram nem se demitem e dizem abertamente à Nação que está nas suas mãos
conquistar a liberdade política e que é necessário e urgente instaurar um Governo
Provisório que assegure as liberdades fundamentais e realize eleições para uma
Assembleia Constituinte.
IV
1 – Pode-se levantar, e levanta-se de facto, a seguinte questão: Mas é necessário e
urgente a mudança de regime? Corresponde ou não a regime aos interesses e à
vontade nacional?
É evidente que este ponto é essencial na minha defesa.
2 – É hoje comumente aceite, em Portugal e no estrangeiro, que o golpe militar de 28
de Maio instaurou um regime fascista, isto é, a ditadura dos monopolistas e dos
latifundiários, aliados dos imperialistas.
Por um lado, o regime ditatorial a que me referi.
Por outro lado, os mais baixos níveis de desenvolvimento económico, de nível de
vida, de saúde, de instrução e de cultura,
associados a anormalmente altos ritmos
e níveis de concentração e centralização monopolista, a um sistema bancário
tentacular, ao latifúndio, à exploração colonial, à penetração do capital estrangeiro
e a correspondente subordinação ao imperialismo.
3 – Hoje começam já a ouvir-se algumas instâncias oficiais falar na crise industrial,
na crise da agricultura, nos vergonhosos índices de assistência à saúde, no desequi-
líbrio na distribuição da riqueza, na rotura do sistema de ensino, na emigração como
resultante de um conjunto de desequilíbrios e crises nacionais. Reconhece-se a
invasão do capital estrangeiro e o seu papel na espoliação do povo português e na
rapina das riquezas e do trabalho nacionais. Reconhece-se nas guerras coloniais
um cancro para a paz. Admite-se o isolamento e o descrédito internacionais.
4 – Crises na economia, no ensino, na assistência, na cultura. Crise demográfica. Baixo
nível de vida. Guerras. Subordinação ao imperialismo. Tais são alguns dos resultados
da política do regime em 40 anos de governação, seu fruto inevitável, lógico,
necessário.
5 – A esta situação respondem os oito pontos do Programa do PCP, cuja realização
conjunta é a garantia de arrancar de vez as raízes do fascismo e abrir ao país o
caminho de um desenvolvimento democrático, pacífico e independente.
6 – Hoje – e há quase dois anos – a questão mais controversa é esta:
Mantém-se em Portugal um regime fascista? Isto é, o governo do novo presidente do
Conselho é o governo de uma ditadura ao serviço dos monopolistas e dos latifundiários
aliados aos imperialistas?
Os comunistas portugueses respondem e demonstram: o regime fascista mantém-se.
V
1 – De facto as características do regime e da política governamental não se alteraram
com o novo Presidente do Conselho.
A demagogia “liberalizante” não instituiu um novo regime, é apenas uma nova táctica.
Esta táctica visa atrair novos apoios, fomentar ilusões, paralisar sectores oposicionistas,
isolar o P. C., criar expectativa nas mesmas. O que se intenta é salvar o regime
mascarando o prosseguimento da política tradicional de Salazar.
2 – O actual governo é manifestamente um governo de união de vários grupos e correntes
fascistas. Surgem, é certo, rivalidades, choques de ambições pessoais, conflitos de
opinião dos processos a seguir para consolidar um regime num momento de grave
crise. Mas o que caracteriza tal união é o acordo nos aspectos essenciais duma
mesma política de tirania, de miséria, de explorações e guerras coloniais, de entrega
ao imperialismo.
3 – No decurso de quase dois anos, a demagogia governamental cifrou-se em vagas de
promessas, com muitas conversas de família, e em medidas insignificantes que refor-
mando aparentemente certas estruturas e métodos do regime, ao fim e ao cabo
intentam reforçá-lo.
Continua a ser negado o direito de organização às forças políticas antifascistas. O
regime do partido único prolonga-se numa União Nacional, com este ou com outro
nome.
Proclama-se a abolição da homologação pelo governo das direcções sindicais, mas
passa a exigir-se a homologação prévia.
Realizam-se eleições nas A. Estudantes encerradas ou com Comissões Adminis-
trativas, mas logo se encerram outras A.E. e até as Faculdades e Academias.
Anuncia-se o respeito pelas opiniões, mas continua a censura, continuam as
prisões de antifascistas, de trabalhadores em greve, de estudantes em luta.
Extingue-se o nome da PIDE, mas conserva-se e reforça-se (em número, em
ordenados e estrutura) a polícia política. Realizam-se eleições para a Assembleia
Nacional mas continuam as burlas eleitorais.
Etc, etc.
4 – Este julgamento é um exemplo vivo da continuidade da política repressiva do regime.
O Presidente do Conselho afirma que “não há em Portugal, presos políticos”, mas os
presos continuam na cadeia e novas prisões atingem democratas de todas as
tendências. Prosseguem as buscas, os stops, as rusgas, as intimidações. Continuam
os espancamentos de manifestantes, de participantes em romagens ou reuniões. Por
detrás da demagogia, rompe a realidade duma política de violência ou de terror.
5 – O regime continua a ser o fiel servidor dos monopólios e dos latifúndios. Chama-se ao
Conselho Económico Interministerial os representantes directos dos Conselhos de
Administração, funde-se ainda mais intimamente a gestão do Estado com a gestão do
capital financeiro.
A pretexto da
concorrência estrangeira, acelera-se a concentração monopolista e a
liquidação das pequenas empresas.
A pretexto de medidas de
emergência, intensifica-se a centralização nos têxteis, nas
pescas, nas conservas, na siderurgia, nas metalomecânicas, etc. A coberto da
necessidade de
investimentos – que as guerras coloniais consomem
– abre-se o país e as colónias à entrada de capital estrangeiro.
De facto,
colocam-se os recursos do Estado ainda mais amplamente ao serviço dos
monopólios, facilita-se a especulação, facilita-se a apropriação das pequenas
economias.
A pretendida modernização não é mais do que a consolidação do
capitalismo monopolista de Estado.
6 – A política de baixo nível de vida das classes trabalhadoras, de doença e de miséria,
mascara-se com novas palavras, mas na realidade prolonga-se. Pretende-se levar
os trabalhadores a produzir cada vez mais, mas esconde-se que a produtividade
tem aumentado muito mais depressa que os salários reais,esconde-se que é cada vez
maior a parcela do rendimento nacional que cabe aos capitalistas. Ainda recentemente
economistas do F.D.M.O. concluíram que 5% da população portuguesa recebia tanto
de rendimento nacional quanto os restantes 95%.
A inflação atira para cima dos trabalhadores com o peso de gigantescas despesas de
guerra e de repressão,
provocando ao mesmo tempo os chamados “lucros de
inflação”.
Centenas de milhares de braços abandonam o país, continuando o decréscimo
absoluto da população portuguesa.
7 – As guerras coloniais continuam a exigir à nação pesados sacrifícios em vidas e
haveres. O governo fala em paz, acenando mesmo com a autonomia administra-
tiva, mas na prática reforça o aparelho militar, prosseguem os actos de terrorismo
e de diversão contra os movimentos de libertação dos povos de Angola, Guiné e
Moçambique.
Estreita-se a colaboração militar e política com os regimes da África do Sul e da
Rodésia.
O país é assim arrastado para aventuras desastrosas, de consequências
imprevisíveis, que conduzem a um maior isolamento e descrédito do país.
8 - Na política internacional, o novo governo empreende um conjunto de iniciativas que
nada mais fazem do que agravar o carácter belicista e reacionário da política
tradicional do regime. Renovam-se as alianças com a nazi República Federal Alemã
e o enfeudamento aos Estados Unidos, dentro e fora da NATO, a troco da
indispensável ajuda às guerras coloniais.
Estreita-se a aliança com o regime franquista, contra a luta pela libertação dos povos
espanhol e português. Compra-se ao auxílio directo da África do Sul à guerra colonial
com vultuosas concessões no Cunene e em Cabora Bassa.
Intenta-se criar o Pacto do Atlântico Sul com o regime reacionário do Brasil a troco de
facilidades em África.
Tal política não pode deixar de conduzir a novos fracassos, a maior enfeudamento e
ruína da Nação.
9 – O governo não conseguiu os seus objectivos. Criou ilusões, gerou expectativas,
obteve mesmo certa complacência da imprensa burguesa internacional. Mas não
conseguiu novos apoios, não dividiu os democratas, não isolou o Partido Comunista,
foi impotente para impedir o agravamento da luta de classes.
As lutas reivindicativas da classe operária, designadamente a vaga de greves de
Janeiro-Março de 69, deitaram por terra as manobras do governo, dinamizaram todo
o movimento antifascista, patentearam a força política da classe operária e do seu
partido.
O irreprimível movimento da juventude estudantil, sobretudo a crise coimbrã, puseram
a nu a velha face do regime.
A expansão do movimento democrático, antes e durante as eleições, demonstrou que
o regime está isolado da Nação, que a demagogia é impotente para castrar a luta dos
democratas, que a liberdade política é a reivindicação primeira do povo português.
Mas mostraram também que o regime persiste em fechar todas as saídas
legais
e pacíficas para a solução dos problemas políticos nacionais que os fascistas
continuam dispostos a recorrer às forças armadas e à intervenção estrangeira se
sentirem o regime em perigo, se esse for o único caminho para vencer a vontade
nacional.
VI
Sei que vou ser condenado. Sei que irei longos anos para a Cadeia de Peniche,
onde se condensam alguns dos aspectos mais negros do regime, onde impera a
coacção moral e física, a arbitrariedade e a prepotência, os castigos e a má
alimentação, onde um director psicopata e inverbrado passeia o seu sadismo.
É a 3ª vez que estou preso.
É a 2ª vez que sou julgado.
Revejo estes 20 anos.
Revejo alguns dos melhores homens que conheci, uns mortos prematuramente, outros
assassinados, outros destruídos pela violência da própria luta.
Revejo as centenas e centenas de militantes comunistas que pessoalmente conheci
e que de mim sabiam apenas o que é em mim fundamental: que sou comunista.
Revejo os meus companheiros de clandestinidade, meus camaradas e meus amigos,
esses homens e essas mulheres que, no sobressalto e no perigo, erguem a resistência
no meu país.
Repito:sei que vou ser condenado.
Mas digo e redigo: neste tribunal, o meu lugar é aqui. Os serventuários da exploração
e da tirania, esses é que são os criminosos.
5 de Março de 1970
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Transcrição integral cedida pelo camarada Vasco Paiva.
As imagens têm pouca qualidade, mas consegue ler-se na íntegra.
Fonte das imagens: (1970), "Intervenção de Ângelo Veloso no Tribunal Plenário",
CasaComum.org, Disponível HTTP:
http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_56192(2015-3-16) - Fundação Mário Soares