Friday, September 29, 2023

O olhar perto do chão

 


No seu mais recente livro, "Montevideu", que nos é apresentado como "uma ficção verdadeira", Enrique Villa-Matas descreve-nos um dos seus vários encontros com Tabucchi a quem muito admirava desde "Mulher de Porto Pim", esse livro que, assim o vê o catalão, trata "com leveza poética" questões "difíceis e complicadas". Os dois haveriam de tornar-se amigos, partilhando experiências em várias cidades, em conferências literárias ou movidos pelos fios invisíveis de um acaso feliz.
Certa vez, sentados numa esplanada nas margens do Arno, em Florença, Tabucchi contou a Villa-Matas que tinha chegado à fala com um tipo estranho, um vagabundo que muito impressionara o amigo, em Paris.
Villa-Matas guardava do vagabundo uma imagem vincada. Todos os dias, ele sentava-se no chão, à porta de uma livraria, no Boulevard Saint-German. Em frente, havia um quiosque de jornais. O que retivera a atenção de Villa-Matas, nesses longínquos dias parisienses? O modo elegante como o vagabundo se comportava, cumprimentando quem entrava e saía da livraria. Por vezes, levantava-se, fumando, com o olhar perdido no horizonte, um magnífico havano. Durante a maior parte do tempo, permanecia sentado no cartão de vagabundo, lendo um clássico. Durante algum tempo, enquanto viveu em Paris, o catalão viu com muita frequência o estranho vagabundo. Anos depois, em Florença, conversando com Tabucchi, este confidencia que, certa vez, chegara à fala com o homem. Estava sozinho em Paris, vagueou pelas ruas e deu com aquele homem sentado no chão lendo o seu clássico. O vagabundo convidou-o a que se sentasse a seu lado, no chão, apreciando o mundo desse patamar ao nível dos pés. Tabucchi não hesitou. Sentou-se ao lado do vagabundo, ficaram ambos durante algum tempo em silêncio, observando os que passavam por eles com total indiferença.
Na noite estival de Florença, Tabucchi contou a Villa-Matas o modo como o vagabundo quebrou o silêncio. Ele nunca mais esqueceria aquelas palavras. Disse-lhe o vagabundo: "Estás a ver, amigo? Daqui uma pessoa pode vê-lo muito bem. Os homens passam e não são felizes".
Partilho convosco esta passagem do magnífico livro que me ocupa por estes dias, na última crónica que assino nesta rádio. A meu modo, vou ocupar as horas, em grande medida, um pouco à maneira do vagabundo desta história. Não penso sentar-me no chão, à porta de uma livraria. Mas procurarei, muitas vezes, bancos de jardim, à sombra. E assim me deixarei ficar, absorto, tomando notas para uma improvável emissão futura, feita de silêncios e de palavras elementares, assim me pouse no ombro a ave clandestina. Ambição chã. Ficarei a ver passar os transeuntes com o seu ar triste, como só os vagabundos sabem detectá-lo. Até sempre.

Sunday, September 24, 2023

Foi há 50 anos

República da Guiné-Bissau celebra 50 anos de existência

A 24 de Se­tembro de 1973, nasceu a Re­pú­blica da Guiné-Bissau, pro­cla­mada ainda du­rante a luta ar­mada de li­ber­tação contra o co­lo­ni­a­lismo por­tu­guês. O PCP saudou na al­tura a his­tó­rica de­cisão do povo gui­ne­ense com di­men­sões e al­cance in­ter­na­ci­o­nais.

Nas­cida em plena luta ar­mada de li­ber­tação na­ci­onal contra o co­lo­ni­a­lismo por­tu­guês, a Re­pú­blica da Guiné-Bissau fes­teja 50 anos de exis­tência no pró­ximo do­mingo, 24.

Foi a 24 de Se­tembro de 1973, na re­gião li­ber­tada do Boé, no leste da Guiné, que a As­sem­bleia Na­ci­onal Po­pular – o par­la­mento gui­ne­ense, cujos de­pu­tados ti­nham sido eleitos an­te­ri­or­mente – pro­clamou o pri­meiro Es­tado e a in­de­pen­dência do país.

Como previu Amílcar Ca­bral, di­ri­gente da luta in­de­pen­den­tista en­ca­be­çada pelo PAIGC, «da si­tu­ação de co­lónia que dispõe de um mo­vi­mento de li­ber­tação e cujo povo já li­bertou em 10 anos de luta ar­mada a maior parte do seu ter­ri­tório na­ci­onal», a Guiné-Bissau passou «à si­tu­ação de um país que dispõe do seu Es­tado e que tem uma parte do seu ter­ri­tório na­ci­onal ocu­pado por forças ar­madas es­tran­geiras».

Na al­tura, o Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês, na clan­des­ti­ni­dade, saudou a de­cisão do povo gui­ne­ense, com «di­men­sões e al­cance in­ter­na­ci­o­nais». O Avante!, na sua edição de Ou­tubro de 1973, des­ta­cava na pri­meira pá­gina que «a pro­cla­mação da in­de­pen­dência não é, como os fas­cistas por­tu­gueses pro­pa­gan­de­aram al­guns dias de­pois, um acto formal e gra­tuito. Foi uma de­cisão ma­du­ra­mente pre­pa­rada e ba­seada nos êxitos mi­li­tares e po­lí­ticos do PAIGC».

In­for­mava o jornal que a As­sem­bleia Na­ci­onal Po­pular gui­ne­ense apro­vara «a cons­ti­tuição do novo Es­tado e os seus ór­gãos de so­be­rania» e que ele­gera Luís Ca­bral para pre­si­dente do Con­selho de Es­tado e Fran­cisco Mendes para li­derar o Con­selho dos Co­mis­sá­rios de Es­tado (go­verno), «mi­li­tantes des­ta­cados do PAIGC na frente de com­bate e na or­ga­ni­zação po­lí­tica e mi­litar».

Na mesma edição, o Avante! pu­bli­cava uma men­sagem do PCP, subs­crita por Álvaro Cu­nhal em nome do Co­mité Cen­tral do Par­tido, e en­viada a Aris­tides Pe­reira, Se­cre­tário-Geral do PAIGC, e aos di­ri­gentes eleitos à frente dos novos ór­gãos es­ta­tais.

«Por mo­tivo da pro­cla­mação da Re­pú­blica da Guiné-Bissau, en­viamo-vos as mais ca­lo­rosas fe­li­ci­ta­ções do Par­tido Co­mu­nista Por­tu­guês. Es­tamos certos de tra­duzir os sen­ti­mentos dos tra­ba­lha­dores e das forças pro­gres­sistas de Por­tugal, sau­dando este acto his­tó­rico que cons­titui um novo e im­por­tante passo no ca­minho da li­ber­tação com­pleta do vosso povo da ex­plo­ração e do do­mínio ca­pi­ta­lista», afir­mava a men­sagem.

Álvaro Cu­nhal es­crevia mais, an­te­ci­pando o fu­turo: «Ne­nhuns in­te­resses ou ob­jec­tivos se­param e muito menos opõem o povo por­tu­guês e o povo da Guiné-Bissau. As lutas dos dois povos são so­li­dá­rias e di­rigem-se contra os mesmos ini­migos. Es­tamos certos de que os laços de ami­zade hoje exis­tentes entre os nossos dois Par­tidos, os sen­ti­mentos de fra­ter­ni­dade exis­tentes entre os nossos dois povos, se tra­du­zirão um dia, quando o co­lo­ni­a­lismo por­tu­guês for fi­nal­mente der­ro­tado e quando Por­tugal for li­ber­tado do fas­cismo e da sub­missão ao im­pe­ri­a­lismo, numa co­o­pe­ração fra­ternal entre os nossos dois países li­vres e iguais».

E fi­na­li­zava a men­sagem do PCP: «Hoje, como sempre, po­deis contar com a nossa ac­tiva so­li­da­ri­e­dade. Es­tais certos de que não pou­pa­remos es­forços nem sa­cri­fí­cios para de­sen­volver em Por­tugal a luta contra a cri­mi­nosa guerra co­lo­nial, pelo re­co­nhe­ci­mento da in­de­pen­dência da vossa Pá­tria».

Avante nº 2599 de 21.9.2023

Saturday, September 23, 2023

A noite na Ilha


Dormi contigo toda a noite
junto ao mar, na ilha.
Eras doce e selvagem entre o prazer e o sono,
entre o fogo e a água.

Os nossos sonos uniram-se
talvez muito tarde
no alto ou no fundo,
em cima como ramos que um mesmo vento agita,
em baixo como vermelhas raízes que se tocam.

O teu sono separou-se
talvez do meu
e andava à minha procura
pelo mar escuro
como dantes,
quando ainda não existias,
quando sem te avistar
naveguei a teu lado
e os teus olhos buscavam
o que agora
- pão, vinho, amor e cólera -
te dou às mãos cheias,
porque tu és a taça
que esperava os dons da minha vida.

Dormi contigo
toda a noite enquanto
a terra escura gira
com os vivos e os mortos,
e ao acordar de repente
no meio da sombra
o meu braço cingia a tua cintura.
Nem a noite nem o sono
puderam separar-nos.

Dormi contigo
e, ao acordar, tua boca,
saída do teu sono,
trouxe-me o sabor da terra,
da água do mar, das algas,
do âmago da tua vida,
e recebi teu beijo,
molhado pela aurora,
como se me viesse
do mar que nos cerca.

Pablo Neruda
(que nos deixou há precisamente 50 anos)

Monday, September 11, 2023

Requiem por Salvador Allende

 

Foi de súbito no outono juro solenemente que o foi

mas as árvores fora tinham de novo folhas recentes

primavera no chile primavera no mundo

Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa

leio vagarosamente os jornais sei devagar que os leio

enfrento meu velho borges o muito meu destino sul-americano

Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água

sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo

o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia

talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado

ombro a ombro com gente analfabeta uma gente sensível e leal

mas que não pode ler e vive muito menos por o não saber

embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar

acabara um poema enchia o peito de ar junto da água

quando o irmão miguei veio pequeninamente pela areia

e convulsivamente me falou da situação no chile

veio pela praia e punha nas palavras mãos de solidão

mãos conviventes com outras palavras mãos que palavra a palavra

erguem um poema no silêncio só circundante

Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no

com eles via a vida com eles via os homens via homens

via problemas de homens e as coisas que via eram coisas de homens

hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por detrás

Nos finais de setembro nos princípios de novembro

tu meu amigo que não posso nomear sem te denunciar

dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente pessoais

já que projectos sociais projectos cívicos profissionais

ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos generais

mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda

mãos limpas já do sangue despojadas já das alianças

que caridosamente deram que assim conseguiram

solucionar os prementes problemas do país

Ouvi falar também desse cargueiro playa larga

praia comprida mas praia deserta e não só na palavra

pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos milhares das pessoas fuziladas

A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns passos pela areia

algum poema terminado alienado algum termo conquistado

tão inefável como por exemplo o de tancazo

atribuído ao golpe orientado por pablo rodriguez

homem que vai modelando palavras ao ritmo martelado pelo ódio

na tentativa vã de destruir frases hoje históricas

do grande cavalheiro que decerto foi allende

e já antes de o dizer com a vida dizia que por exemplo

mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou então

se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as direitas

País amável calorosa entrada em Santiago

e ver-me em frente desse homem sozinho relutante em recorrer às armas

e que depois de o ter visto e o ter ouvido

ao homem que for homem poderei chamar-lhe

seja qual for o nome salvador allende

Que nestas minhas minerais palavras de poeta

vibre um pouco o vigor da tua voz

bafejando de paz primeiro o bom povo do chile

depois o povo bom de todo o inundo

Que a ignomínia da história não demore em cobrir com o seu manto

os que têm a força mas não têm a razão

pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará

Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do mar

tu mandas-me no mar a ave branca do teu rosto

vento que vem do mar vento que vem do chile

Aqui neste dia de súbito cinzento

somente povoado pelo meu sofrimento

e pelo pensamento desse sofrimento

voo também vou também eu nesse lenço

que retiro do bolso aqui à beira-mar

e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma ave de paz

uma ave avezada a cada uma das derrotas existentes no mar

somente agora destruída trespassada pela bala que leva uma vida

ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal apenas diz

muito obrigada salvador allende

obrigada por essa tua vida de cabeça erguida

só agora tombada trespassada pela bala que leva uma vida

mas não pode levar de vencida a obra por allende começada

selada por essa promessa de lutar até ao fim até à hora de morrer

nesse importante posto onde te investiram a lei e o povo

Foi no ano de mil novecentos e setenta

ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país

que uma coligação do tipo frente popular tomou

pela via legal conta do poder no chile

legalidade sempre respeitada por ti allende

mas por fim desrespeitada pelos militares pelas direitas pela

cristã democracia partido bem pouco cristão e pouco democrático

Falavas tu dizias a verdade

falavas com palavras de verdade

uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco antes

saíam as palavras na verdade belas como balas

salvador allende guerrilheiro sem metralhadora e sem boina

de casaco e gravata para essas guerrilhas no parlamento

guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra quão favoráveis à paz

essa palavra alada como ave ave não só de georges braque

mas de nós todos aves verticais aves a última estação

árvores desfolhadas num definitivo inverno

allende do cansaço dos problemas da preocupação constante em jogares limpo

com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha com bombas em lugar das mãos

allende já há muito tempo sem uns olhos para olhares o mar

e sem poderes olhar as pedras preciosas de que fala

pablo neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo

em las piedras dei cielo esse livro puríssimo

e são pedras do céu mas mais do que céu pedras da terra

Sol que te pões e nascerás no chile

leva-me a um país que em criança conhecíamos apenas

dos sacos de serapilheira com o nome impresso de um nitrato

e não por dar o nome a uma pequena mas confusa praça de lisboa

nem por sair nas páginas diárias dos jornais

Do chile chegou-me não há muito a amizade do hernán

que em madrid conheci e não responde há muito às minhas cartas

e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes sérios quase portugueses

e desse país mais comprido do globo veio-me também

o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de amizade

Os camiões há muito já que não sulcavam as estradas do país

estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar por esse

oceano pacífico de um país ainda há pouco bem pacífico

O washington post falava já do golpe dias antes do golpe

ninguém falava delas mas elas encontravam-se ali mesmo

as autoridades militares as autoridades militares as autoridades americanas

vestiam mesmo as fardas do exército chileno

esses americanos gente do dinheiro e do veneno

de um veneno talvez chamado dinheiro

que terá pago em parte as modificações dos foguetes do tipo poseidon

montados já a bordo dos divinos submarinos nucleares americanos

assunto de política estrangeira americana

Hernán urrutia meu amigo austral

que em barajas vi olhar voltar

para mim a cabeça pela última vez

marcelo coddo professor em concepción

com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta cardenal

e sobre a jovem poesia nicaraguense

e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o nome

mas me deixaram alguma palavra a música da fala um certo sorriso

um certo olhar visível por detrás de uns óculos

talvez hoje quebrados por quem não considera

talvez suficiente o quebrar da vida na haste da vida

embora porventura tenha visto aquela sequência de fellini

e desconhece que afinal a vida reproduz a arte

Escreve este poema no jornal com as notícias frescas

após ter evitado ver as caras de triunfo desses locutores luzidios da televisão

e mesmo ter ouvido até a voz desse pedro moutinho

a voz das afluências ao nosso principal estádio o da cova da iria

e dos cortejos presidenciais o dessas tão espontâneas manifestações

voz afinal da cia e da itt e dos demais tentáculos

do imperialismo norte-americano

maneira americana de se estar no mundo

de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do terceiro mundo

terceiro mundo ou melhor último mundo

que pagarão agora o preço da cabeça dos trabalhadores chilenos

que marcham mas decerto em vão na direcção

do centro de santiago onde vingara

a rebelião dos marinheiros vindos de valparaiso

cabeça dos imensos deserdados deste mundo

Sabíamos decerto um pouco em que consistia

essa via chilena para o socialismo

e líamos talvez um livro acerca do programa da chamada unidade popular

e discursos de allende naquela cidade distante

embora houvesse muito mais notícias nos jornais

e a gente nos cafés falasse mais em futebol

livro por certo lido com a janela aberta sobre a noite do outono

sobre campos relvados de momento habitados pela escuridão

donde talvez se erguiam cantos pouco menos que religiosos

exaltadores de ideologias já e sem remédio ultrapassadas

Era uma vez um chileno chamado salvador allende que

fez um grande país de um país pequeno onde

talvez três anos nós houvéssemos depositado a esperança

quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade

todos nós fomos um pouco chilenos

Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós

que um homem se detenha quando a história caminha

em frente sempre altiva e serena

como mulher de muito tempo sabedora

Posso dizer por certo como há já muitos anos

acerca dos milicianos espanhóis dizia neruda

allende não morreste estás de pé no trigo


Ruy Belo

 

Friday, September 08, 2023

Dia 225.


Necessito de mim mais do que de ninguém. Mas mentiria se não confessasse o quanto preciso de ti. Tu és o meu vinho e a minha ressaca.  A minha árvore e a minha floresta.  O meu cavalo.  A minha casa, o meu mar, o meu coral.  A minha teimosia e a minha lucidez.  O meu pássaro de chuva e o meu pássaro de fogo. A minha distância, o meu abismo, a minha fuga. A minha sombra e o meu túnel. O atalho para o outro lado de mim.

Tu és a minha estrela e o meu guia.  A minha porta, o meu clarão, a minha injúria. O meu grão, o meu vento, o meu moinho.  O meu sortilégio.  O fim da festa e o meio-dia. O meu carnaval, o meu brinquedo, o meu dia santo. O meu pecado, a minha penitência.  O ouro, a ofensa, o desvario.  És o meu hábito e o meu monge.  A minha espiga e o meu pão.  A minha irmã branca, a minha irmã negra, a minha irmã de novas latitudes. A minha amante e a minha mãe, o meu abraço e as minhas margens. A minha prostituta, o meu combate, o meu sorriso. Tu és o meu cálice.  O meu elixir e o meu veneno. O vinho que dá coragem às medusas.

Necessito de ti mais do que de ninguém.  Mas mentiria se  não te confessasse o quanto preciso de mim. 

Joaquim Pessoa

Monday, September 04, 2023

Mar de Setembro



Tudo era claro:
céu, lábios, areias.
O mar estava perto,
fremente de espumas.
Corpos ou ondas:
iam, vinham, iam,
dóceis, leves - só
alma e brancura.
Felizes, cantam;
serenos, dormem;
despertos, amam,
exaltam o silêncio.
Tudo era claro,
jovem, alado.
O mar estava perto.
Puríssimo. Doirado.
Eugénio de Andrade