Monday, September 11, 2023

Requiem por Salvador Allende

 

Foi de súbito no outono juro solenemente que o foi

mas as árvores fora tinham de novo folhas recentes

primavera no chile primavera no mundo

Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa

leio vagarosamente os jornais sei devagar que os leio

enfrento meu velho borges o muito meu destino sul-americano

Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água

sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo

o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia

talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado

ombro a ombro com gente analfabeta uma gente sensível e leal

mas que não pode ler e vive muito menos por o não saber

embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar

acabara um poema enchia o peito de ar junto da água

quando o irmão miguei veio pequeninamente pela areia

e convulsivamente me falou da situação no chile

veio pela praia e punha nas palavras mãos de solidão

mãos conviventes com outras palavras mãos que palavra a palavra

erguem um poema no silêncio só circundante

Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no

com eles via a vida com eles via os homens via homens

via problemas de homens e as coisas que via eram coisas de homens

hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por detrás

Nos finais de setembro nos princípios de novembro

tu meu amigo que não posso nomear sem te denunciar

dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente pessoais

já que projectos sociais projectos cívicos profissionais

ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos generais

mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda

mãos limpas já do sangue despojadas já das alianças

que caridosamente deram que assim conseguiram

solucionar os prementes problemas do país

Ouvi falar também desse cargueiro playa larga

praia comprida mas praia deserta e não só na palavra

pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos milhares das pessoas fuziladas

A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns passos pela areia

algum poema terminado alienado algum termo conquistado

tão inefável como por exemplo o de tancazo

atribuído ao golpe orientado por pablo rodriguez

homem que vai modelando palavras ao ritmo martelado pelo ódio

na tentativa vã de destruir frases hoje históricas

do grande cavalheiro que decerto foi allende

e já antes de o dizer com a vida dizia que por exemplo

mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou então

se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as direitas

País amável calorosa entrada em Santiago

e ver-me em frente desse homem sozinho relutante em recorrer às armas

e que depois de o ter visto e o ter ouvido

ao homem que for homem poderei chamar-lhe

seja qual for o nome salvador allende

Que nestas minhas minerais palavras de poeta

vibre um pouco o vigor da tua voz

bafejando de paz primeiro o bom povo do chile

depois o povo bom de todo o inundo

Que a ignomínia da história não demore em cobrir com o seu manto

os que têm a força mas não têm a razão

pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará

Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do mar

tu mandas-me no mar a ave branca do teu rosto

vento que vem do mar vento que vem do chile

Aqui neste dia de súbito cinzento

somente povoado pelo meu sofrimento

e pelo pensamento desse sofrimento

voo também vou também eu nesse lenço

que retiro do bolso aqui à beira-mar

e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma ave de paz

uma ave avezada a cada uma das derrotas existentes no mar

somente agora destruída trespassada pela bala que leva uma vida

ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal apenas diz

muito obrigada salvador allende

obrigada por essa tua vida de cabeça erguida

só agora tombada trespassada pela bala que leva uma vida

mas não pode levar de vencida a obra por allende começada

selada por essa promessa de lutar até ao fim até à hora de morrer

nesse importante posto onde te investiram a lei e o povo

Foi no ano de mil novecentos e setenta

ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país

que uma coligação do tipo frente popular tomou

pela via legal conta do poder no chile

legalidade sempre respeitada por ti allende

mas por fim desrespeitada pelos militares pelas direitas pela

cristã democracia partido bem pouco cristão e pouco democrático

Falavas tu dizias a verdade

falavas com palavras de verdade

uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco antes

saíam as palavras na verdade belas como balas

salvador allende guerrilheiro sem metralhadora e sem boina

de casaco e gravata para essas guerrilhas no parlamento

guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra quão favoráveis à paz

essa palavra alada como ave ave não só de georges braque

mas de nós todos aves verticais aves a última estação

árvores desfolhadas num definitivo inverno

allende do cansaço dos problemas da preocupação constante em jogares limpo

com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha com bombas em lugar das mãos

allende já há muito tempo sem uns olhos para olhares o mar

e sem poderes olhar as pedras preciosas de que fala

pablo neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo

em las piedras dei cielo esse livro puríssimo

e são pedras do céu mas mais do que céu pedras da terra

Sol que te pões e nascerás no chile

leva-me a um país que em criança conhecíamos apenas

dos sacos de serapilheira com o nome impresso de um nitrato

e não por dar o nome a uma pequena mas confusa praça de lisboa

nem por sair nas páginas diárias dos jornais

Do chile chegou-me não há muito a amizade do hernán

que em madrid conheci e não responde há muito às minhas cartas

e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes sérios quase portugueses

e desse país mais comprido do globo veio-me também

o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de amizade

Os camiões há muito já que não sulcavam as estradas do país

estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar por esse

oceano pacífico de um país ainda há pouco bem pacífico

O washington post falava já do golpe dias antes do golpe

ninguém falava delas mas elas encontravam-se ali mesmo

as autoridades militares as autoridades militares as autoridades americanas

vestiam mesmo as fardas do exército chileno

esses americanos gente do dinheiro e do veneno

de um veneno talvez chamado dinheiro

que terá pago em parte as modificações dos foguetes do tipo poseidon

montados já a bordo dos divinos submarinos nucleares americanos

assunto de política estrangeira americana

Hernán urrutia meu amigo austral

que em barajas vi olhar voltar

para mim a cabeça pela última vez

marcelo coddo professor em concepción

com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta cardenal

e sobre a jovem poesia nicaraguense

e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o nome

mas me deixaram alguma palavra a música da fala um certo sorriso

um certo olhar visível por detrás de uns óculos

talvez hoje quebrados por quem não considera

talvez suficiente o quebrar da vida na haste da vida

embora porventura tenha visto aquela sequência de fellini

e desconhece que afinal a vida reproduz a arte

Escreve este poema no jornal com as notícias frescas

após ter evitado ver as caras de triunfo desses locutores luzidios da televisão

e mesmo ter ouvido até a voz desse pedro moutinho

a voz das afluências ao nosso principal estádio o da cova da iria

e dos cortejos presidenciais o dessas tão espontâneas manifestações

voz afinal da cia e da itt e dos demais tentáculos

do imperialismo norte-americano

maneira americana de se estar no mundo

de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do terceiro mundo

terceiro mundo ou melhor último mundo

que pagarão agora o preço da cabeça dos trabalhadores chilenos

que marcham mas decerto em vão na direcção

do centro de santiago onde vingara

a rebelião dos marinheiros vindos de valparaiso

cabeça dos imensos deserdados deste mundo

Sabíamos decerto um pouco em que consistia

essa via chilena para o socialismo

e líamos talvez um livro acerca do programa da chamada unidade popular

e discursos de allende naquela cidade distante

embora houvesse muito mais notícias nos jornais

e a gente nos cafés falasse mais em futebol

livro por certo lido com a janela aberta sobre a noite do outono

sobre campos relvados de momento habitados pela escuridão

donde talvez se erguiam cantos pouco menos que religiosos

exaltadores de ideologias já e sem remédio ultrapassadas

Era uma vez um chileno chamado salvador allende que

fez um grande país de um país pequeno onde

talvez três anos nós houvéssemos depositado a esperança

quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade

todos nós fomos um pouco chilenos

Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós

que um homem se detenha quando a história caminha

em frente sempre altiva e serena

como mulher de muito tempo sabedora

Posso dizer por certo como há já muitos anos

acerca dos milicianos espanhóis dizia neruda

allende não morreste estás de pé no trigo


Ruy Belo

 

1 comment:

Parapeito said...

Não conhecia este poema.
E que certo estava Neruda, quando escreveu :Allende não morreste estás de pé no trigo.
Abraço e brisas doces *