Tuesday, June 14, 2011

Dia 37


Não tens de quê! Dei-te o cigarro, o adeus, a água para o deserto, mas não me agradeças, não digas o meu nome.
Quero apenas que me deixes adormecer, que me abandones, que deites aos corvos e aos cães as minhas recordações. Não faz sentido a curva dos teus lábios, a penumbra quente das tuas coxas, a taça de álibis que me serviste.
Não faz sentido nada que tenhas para dar-me. Tira-me.
Apenas isso. Leva o que ainda guardava para ti, sem nada perguntar, sem um lamento ou um sorriso. Depois, parte.
Ficarei apagado, molhado de tristeza, num silêncio hostil e enfermo, procurando merecer-me, tentando ressurgir para lá de ti.
Não deixes nada. Nem a tua sombra, nem o teu cheiro.
A um canto, desolado, como se tivesse frio, quero apenas amar a tua ausência.


Joaquim Pessoa
(Do livro a publicar, ANO COMUM)

19 comments:

Cristina Caetano said...

Até o adeus sabe ser bonito no amor.

Beijos, Maria

bettips said...

(Tinha saudades tuas)

De amigos comuns e histórias passadas comum-mente o (re)conheci. Foi-me (re)lembrado aqui, primeiro, o Poeta das coisas antigas (in)associadas. Um grato prazer que o tenha sido por ti, em gosto e poesia solta, dorida mas bela.
Beijo, Maria, boas noites das ilhas, pedras e mares
(nunca dantes navegados)

salvoconduto said...

Finalmente de volta. Pois então aqui fica outro pedaço do mesmo livro:

Obrigado, excelências.

Obrigado por nos destruírem o sonho

e a oportunidadede vivermos felizes e em paz.

Obrigado pelo exemplo que se esforçam em nos dar

de como é possível viver sem vergonha,

sem respeito e semdignidade.

Obrigado por nos roubarem.

Por não nos perguntarem nada.

Por não nos darem explicações.

Obrigado por se orgulharem de nos tirar

as coisas por que lutámos e às quais temos direito.

Obrigado por nos tirarem até o sono.

E a tranquilidade.

E a alegria.

Obrigado pelo cinzentismo, pela depressão, pelo desespero.

Obrigado pela vossa mediocridade.

E obrigado por aquilo que podem e não querem fazer.

Obrigado por tudo o que não sabem e fingem saber.

Obrigado por transformarem o nosso coração numa sala de espera.

Obrigado por fazerem de cada um dos nossos dias

um dia menos interessante que o anterior.

Obrigado por nos exigirem mais do que podemos dar.

Obrigado por nos darem em troca quase nada.

Obrigado por não disfarçarem a cobiça, a corrupção, a indignidade.

Pelo chocante imerecimento da vossa comodidade

e da vossa felicidade adquirida a qualquer preço.

E pelo vosso vergonhoso descaramento.

Obrigado por nos ensinarem tudo o que nunca deveremos querer,

o que nunca deveremos fazer, o que nunca deveremos aceitar.

Obrigado por serem o que são.

Obrigado por serem como são.

Para que não sejamos também assim.

E para que possamos reconhecer facilmente

quem temos de rejeitar.

Abreijos.

Pitanga Doce said...

Voltaste cheia de poesia. Também te acompanha a dor?

Boa noite, Maria.

A.S. said...

Maria,

Excelente texto de Joaquim pessoa que aqui nos deixas!

Beijos meus... e saudades!
AL

samuel said...

Sempre em grande forma.

Abreijo.

trepadeira said...

És mesmo uma ilha,um oásis no deserto.

Um abraço,
mário

© Piedade Araújo Sol (Pity) said...

excelente o texto do Joaquim.

gostei muito de ler.

um beijo

(Obrigada!)

Filoxera said...

O amor no pós-felicidade...
Lindo.
Beijos.

Fernando Samuel said...

Isto é mesmo muito bom!

Um beijo grande.

mfc said...

É triste demais!
Intensamente verdadeiro.
Tocou-me.

mundo azul said...

________________________________


Partir não é tão difícil... Difícil é conseguir não deixar nada...


Lindo e sofrido esse texto!

Obrigada, pela partilha... Beijos de luz e o meu carinho!


_____________________________

anamar said...

Obrigada, Maria.
Abracinho

Fernando Esteves said...

...
Deixam-nos (ou deixamos...) sempre qualquer coisa!
Uma vontade de expressar...
Um poema...
Uma lágrima...
Noutros casos um sorriso e uma lágrima...
Ou outra coisa qualquer...
Como por exemplo,

OUVIR O SILÊNCIO

Tenho algo para dizer
Não sei se é belo
Não sei se calo
Não sei se interessa
Tenho algo para escrever
Sei que tenho pressa
Sinto o embalo
Sinto que é belo

Mas não mais do que o silêncio...

Não sei se guardo
Sei que quero
Quero gritá-lo
Talvez o liberte
Talvez sem alardo
Esperar que desperte
Simplesmente dá-lo
É isso que eu quero

Mas não mais do que o silêncio...

Vou querer ignorar
Saber que nada sei
Não é original
Mas tenho que o dizer
Vou querer partilhar
Nem quero saber
Se está bem ou está mal
Quero dizer o que sei

Mas não mais do que em silêncio...

-

("Se o que tens a dizer não é mais belo do que o silêncio, então cala-te."
Pitágoras)

Anonymous said...

Maria:

É como beber a penumbra do deserto da ausência do ser amado.


Lindo!
Um beijo

Agulheta said...

Maria.

Simplesmente lindo e belo o contudo das palavras,no poema de Joaquim Pessoa.

Hoje consegui abrir o meu blog no painel e fazer comentários?

Beijinho

Maria said...

Estou ansiosa para comprar este livro do Joaquim Pessoa. Tem poemas lindíssimos.

Obrigada por terem passado aqui.

Beijos a todos.

Paula Barros said...

Amar a ausência...é ficar com o melhor das lembranças e não esquecer de nós mesmos. (é assim que me veio a mente)

beijo

Parapeito said...

sabe sempre bem ler Joaquim Pessoa.
Este é um livro que não vou deixar de comprar.
brisas doces***