Saturday, December 24, 2022

Falavam-me de Amor



Quando um ramo de doze badaladas
se espalhava nos móveis e tu vinhas
solstício de mel pelas escadas
de um sentimento com nozes e com pinhas,

menino eras de lenha e crepitavas
porque do fogo o nome antigo tinhas
e em sua eternidade colocavas
o que a infância pedia às andorinhas.

Depois nas folhas secas te envolvias
de trezentos e muitos lerdos dias
e eras um sol na sombra flagelado.

O fel que por nós bebes te liberta
e no manso natal que te conserta
só tu ficaste a ti acostumado.


Natália Correia
O Dilúvio e a Pomba

Monday, December 19, 2022

VIAGEM ATRAVÉS DE UMA FATIA DE BOLO-REI


Corria o ano de 1961.
Estávamos à porta do Natal.

Eram quase duas horas da manhã
e eu perguntei-lhe
se queria comer alguma coisa.
Disse que sim. Mas que
estava com muita pressa.

Enquanto vestia a gabardina, trouxe-lhe
uma sanduíche de fiambre
um copo de vinho
uma fatia de bolo-rei.
Estava de pé
comia como se fosse a primeira vez
desde a infância.

-Há quantos anos
deixa cá ver
há quantos anos é que eu não comia
bolo-rei?
Este é bom, sabe a erva-doce
e a ovos.
(Caíam-lhe migalhas
aparava-as com a outra mão
em concha)

- Comes outra fatia, camarada?

- Isso não.
Estou atrasado já.
Mas se ma embrulhasses...

Através da janela
do quarto às escuras
fico a vê-lo atravessar a Rua da Creche
seguir pela Rua dos Lusíadas.

Nenhum de nós sabia
que estava já erguida a pirâmide do silêncio
à espera dele
num breve prazo.

Quando talvez o gosto do bolo-rei
mais forte do que nunca
tivesse ainda na boca.

Mário Castrim

Sunday, December 18, 2022

Madrigal melancólico

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
 
O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito subtil,
Tão ágil, tão luminoso,
— Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
 
O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.
 
O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi,
Não é a irmã que já perdi, 
E meu pai.
 
O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti — lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.

Manoel Bandeira

Sunday, December 04, 2022

Louvor das Aves do Sul

 


"Este texto não é um prefácio

Disseram-me que era a minha vez de escrever sobre este livro e o seu autor. Tarefa difícil a que darei o meu melhor, sendo que não sou de grandes escritas. Mas...
- quando se nasce no centro do país mas se tem campos de searas no olhar;
- quando se cresce no meio da natureza e se ganham asas dos pássaros que voam ao longe;
- quando as lágrimas afloram o olhar com a mesma naturalidade com que o sorriso se rasga numa brincadeira de menino;
- quando se respira sensibilidade por todos os poros da pele;
- quando a amizade é forma de amor mais bonita e um amigo é tudo na vida,
tudo o que se possa dizer sobre o autor ou a sua obra fica aquém do merecido.

O António é antropólogo e a profissão levou-o a viver algum tempo ao sul, tendo daí resultado duas experiências riquíssimas que se traduziram em obras já publicadas sobre os Assalariados Agrícolas de Ervidel e os Mineiros de Aljustrel, livros que reproduzem histórias de vida de quem as contou. Escreveu ainda uma história para crianças (e para adultos, diria eu) a que chamou Sebastião Toupeira, e que aborda a vida dos mineiros de Aljustrel. Acresce a Casa das Glicínias e Os Confins da Infância, estes dois de poesia. E se os primeiros livros que escreveu nos prendem pelas histórias de vida que relatam, é na Poesia que o António (Lains de Ourém, às vezes Lains de lado nenhum) se despe completamente e nos mostra todos os sentimentos em carne viva.

Não tenho a certeza de quando conheci o António, porque já sabia que existia antes de o ver. Um Amigo comum juntou-nos, e éramos bastantes. Nesse dia em Ervidel eu tive a certeza que era uma amizade para a vida. Seguiram-se as outras apresentações dos outros livros que já referi, e com outros Amigos comuns. Mas eu já lia o António nas redes sociais. E às vezes tinha de parar para respirar. O que acontece ainda hoje. E fomo-nos descobrindo.

O António é um jovem nascido depois de Abril. Mas tem hoje, em seu poder, toda a História da nossa Revolução em autocolantes, cartazes, emblemas, crachás e outros materiais que o transportam a tempos em que ainda não existia, mas que sabe terem sido intensos e marcantes para quem os viveu. Depois o António é um curioso da vida, e encontrámos mais dois pontos em que os nossos interesses são idênticos: a música e as artes plásticas, dois mundos enormes sobre os quais temos ainda muito para conversar e descobrir.

Passemos ao Louvor das Aves ao Sul.

Nunca há palavras bastantes para descrever o belo. Profundamente conhecedor dos terrenos que pisa, cada poema é sempre um voltar ao passado e ao mesmo tempo ao futuro. Um passado experienciado quantas vezes ao som do chilrear das aves, um futuro a construir com todos os sonhos que agarra com as mãos. Um voltar à casa.

Este livro é uma viagem profunda (ou será um voo?) aos imensos campos do Alentejo e do Sul onde o autor se cruza com o canto das aves e com todas as emoções vividas e ainda por viver, mas que adivinha. Uma viagem solitária, que não em solidão, para melhor sentir o cheiro da terra, das árvores, das searas. Uma viagem solitária, que não em solidão, aos afectos, lugares e gentes com quem se cruzou. Uma viagem em que está sempre presente a Família como pilar de tudo. A Mãe! A Casa! A ternura...
E quem pega no livro para o ler inicia com o autor uma magnífica viagem ao interior de quem o escreve. Como disse atrás, todos os sentimentos estão em carne viva. Nada nos é indiferente neste livro de poemas. Nem as palavras, nem as ilustrações feitas por vários artistas plásticos.

Amaciem os vossos corações e leiam este livro em silêncio. Para que possam ouvir o bater de asas das aves."
 

Já fez um ano. O tempo voa...

Friday, November 25, 2022

Fidel

Soy pueblo
dirán exactamente de Fidel
gran conductor el que incendió la historia etcétera
pero el pueblo lo llama el caballo y es cierto
Fidel montó sobre Fidel un día
se lanzó de cabeza contra el dolor contra la muerte
pero más todavía contra el polvo del alma
la Historia parlará de sus hechos gloriosos
prefiero recordarlo en el rincón del día
en que miró su tierra y dijo soy la tierra
en que miró su pueblo y dijo soy el pueblo
y abolió sus dolores sus sombras sus olvidos
y solo contra el mundo levantó en una estaca
su propio corazón el único que tuvo
lo desplegó en el aire como una gran bandera
como un fuego encendido contra la noche oscura
como un golpe de amor en la cara del miedo
como un hombre que entra temblando en el amor
alzó su corazón lo agitaba en el aire
lo daba de comer de beber de encender.
Fidel es un país
yo lo vi con oleajes de rostros en su rostro
la Historia arreglará sus cuentas allá ella
pero lo vi cuando subía gente por sus hubiéramos
buenas noches Historia agranda tus portones
entramos con Fidel con el caballo.

Juan Gelman

Thursday, November 24, 2022

Não há vagas

O preço do feijão 
não cabe no poema. O preço
do arroz
não cabe no poema.
Não cabem no poema o gás
luz e telefone
a sonegação
do leite
da carne
do açucar
do pão

O funcionário público
não cabe no poema
com seu salário de fome
sua vida fechada
em arquivos.

Como não cabe no poema
o operário
que esmerila seu dia de aço
e carvão
nas oficinas escuras

- porque o poema, senhores,
está fechado:
"não há vagas"

So cabe no poema
o homem sem estômago
a mulher de nuvens
a fruta sem preço
O poema senhores,
não fede
nem cheira.

Ferreira Gullar

Saturday, November 19, 2022

CANTAR DE VIVO PARA UM CAMARADA MORTO


(Em memória do meu amigo
José Mário Branco)

Nas mãos do vento uma guitarra arde.
É tarde. É tarde. E o meu poema pouco.
Que um deus qualquer a tua fúria guarde.
Que qualquer deus te ame. Ou qualquer louco.

No fundo do olhar morre a gaivota.
É cedo. É cedo. Vai gritando o vento.
E leva em cada asa uma derrota.
E põe no céu de abril o sofrimento.

É cedo. É tarde, amigo. Ai, é tão cedo!
É tão macia a noite. E negra a cama
coberta com lençóis do teu segredo.

Para ti não há loiros. Não há fama.
E enquanto um povo lavra o chão do medo
um homem rasga as veias sobre a lama.

Joaquim Pessoa

Thursday, November 17, 2022

Intervenção de JS no funeral de JC

Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral do PCP
no Funeral de José Casanova

16 Novembro 2014

Aqui estamos para prestar a justa e devida homenagem ao José Casanova. Para a Cândida, para os filhos Catarina e Miguel, a mais sentida palavra de pesar ainda que sabendo que palavras não há para preencher o vazio que o José Casanova lhes deixa, mas também a este imenso colectivo de camaradas e amigos que habituou à sua inesquecível presença.

Aqui viemos hoje, não para nos despedirmos de um camarada, mas para afirmar que embora partindo do convívio com os seus camaradas, os seus amigos e em particular com a sua família, o José Casanova estará presente em todos e em cada um dos muitos momentos que nos reunirão para continuar os combates e a luta que ele sempre abraçou. Deixou de estar entre nós um homem bom, um amigo solidário, um combatente antifascista e construtor de Abril, um Comunista. Mas o seu percurso de vida, de militante e dirigente do PCP perdurará em todos e em cada um de nós para prosseguirmos a luta de emancipação social que o animou.

Natural de uma terra de lutadores que inscreveram o Couço num dos mais emblemáticos locais de resistência contra a opressão e a iniquidade do regime fascista, Casanova que bem cedo aderiu ao PCP tem o seu percurso de vida ligado à luta pela liberdade e a democracia. Com 19 anos iniciou a sua participação na União da Juventude Portuguesa tendo integrado a sua Direcção.

Assumiu como jovem comunista, nas candidaturas de Arlindo Vicente e Humberto Delgado, papel destacado tendo desempenhado diversas tarefas partidárias no País nas décadas de 50 e 60 do Século passado. Preso pela PIDE em 1960, julgado e condenado a dois anos de prisão, Casanova permaneceu cerca de seis anos detido tendo passado pelas cadeias do Porto, Caxias e Peniche. Exilado na Bélgica no início da década de 70 aí prosseguiu a actividade partidária tendo sido presidente da Associação dos Portugueses Emigrados na Bélgica e mantendo contactos com os movimentos de libertação das ex-colónias.

Com o 25 de Abril José Casanova regressa a Portugal para prosseguir no nosso País a luta. Membro do Comité Central desde 1976 e da Comissão Política de 1979 a 2008, José Casanova foi, entre outras tarefas, responsável pelas Organizações Regionais de Lisboa (entre 1989 e 1996), de Santarém (em 1997 e 1998) tendo ainda, no início dos anos 2000 tido a responsabilidade pelo acompanhamento das regiões autónomas dos Açores e da Madeira. José Casanova foi director do «Avante!», órgão central do PCP entre 1997 e Fevereiro deste ano. Era actualmente responsável pela Comissão Nacional de Cultura.

Participante activo no exaltante processo de transformação social que a Revolução de Abril constituiu, José Casanova esteve associado às muitas batalhas, tarefas e luta que, primeiro no processo revolucionário, depois na resistência ao processo contra-revolucionário, mobilizaram o Partido, os trabalhadores e os democratas. Participante desde a primeira hora na Comissão Promotora das Comemorações Populares do 25 de Abril ainda na década de 70, Casanova integrou a Comissão Coordenadora da FEPU e da APU tendo desenvolvido um importante papel no trabalho unitário e de convergência com muitos outros democratas.

Homem de imensa cultura, aquela cultura que se ergue de uma vivência inseparável do pulsar do que de mais genuíno brota da incomparável sabedoria dos trabalhadores e do povo de onde vinha, José Casanova deixa-nos também a sua produção no campo literário com os romances “Aquela Noite de Natal”, “O Caminho das Aves” e “O Tempo das Giestas”, bem como outras obras, nomeadamente o livro sobre Catarina Eufémia, recentemente editado.

José Casanova honrou, pelo seu exemplo e dedicação, pelo seu espírito de militância e capacidade política, pela sua intervenção e entrega à luta, as melhores tradições da classe operária, dos trabalhadores e do povo português.

Uma opção que nestes tempos difíceis em que querem impor um futuro de declínio e retrocesso social ao País e a Portugal ganha redobrada importância.

Hoje, como em poucos outros momentos, a luta em que com o Casanova participámos em defesa dos valores de Abril, pela ruptura com a política de direita pela construção de uma alternativa e uma política patrióticas e de esquerda assume particular e decisiva importância.

Uma luta para afirmar direitos que com Abril conquistámos, para dar combate à exploração capitalista que lança para o empobrecimento e para a emigração centenas de milhares de portugueses, para devolver aos jovens o direito de poder ter futuro no seu País, para libertar Portugal da submissão e da dependência.

Essa luta sem tréguas que continuamos a travar para abrir caminho a um Portugal com futuro, para combater falsas alternativas, para ampliar a consciê ncia sobre os reais problemas e responsáveis pela situação a que o País foi conduzido, para alargar a convergência dos democratas e patriotas na afirmação de um Portugal desenvolvido e soberano, tendo o socialismo no horizonte. Muitos, entre outros objectivos de luta, que com o Casanova partilhámos e que saberemos estar a altura de lhe poder dizer, num futuro mais ou menos próximo, “conseguimos Zé”!

Aqui estamos, não para lhe dizer Adeus, mas até sempre, neste reencontro de todos os dias na luta que nos unirá. Com a profunda convicção de que a sua morte não apagará um percurso de vida marcada pela inteira dedicação à luta pela Liberdade, a Democracia, o Socialismo e o Comunismo.
Homens e comunistas assim não morrem.

O José Casanova sabia que o seu Partido de sempre, o seu projecto, o seu ideal, iria prosseguir para além das nossas vidas!

Perduram em cada um de nós neste combate que nos une, na luta que continua.

Até sempre, camarada José!

 

Thursday, November 03, 2022

O 'pão por deus'

Quando temos Amigos de há longa data (a Ilha presente) e a esses Amigos se juntam outros Amigos (a Festa presente) e ainda outros que passam a ser amigos, acontece uma enorme mesa (ou várias pequenas mesas que fazem uma enorme mesa) e a festa acontece.
Foi assim, mais uma vez, anteontem, dia 1, dia do Pão por Deus. Dia que me leva à infância, onde bem cedo os cheiros das broas e das batatas doces assadas se misturavam com o cheiro dos figos e castanhas assadas. E havia nozes e maçãs. E saquinhos de pano onde púnhamos o que nos davam. E era uma alegria.
Mas eu quero falar é de anteontem. Ainda estávamos a tomar o pequeno almoço e já havia voluntários a fazer o lume onde se iria assar um porco, e os fornos estavam acesos para a cozedura do pão. E ao meio dia as pessoas já iam chegando, cada um trazia um doce ou o que queria, que isto dividido por todos é mais fácil e faz parte da partilha e do convívio.
Dei-me conta que os dois anos de pandemia alteraram bastante a vida das pessoas. Desabituámo-nos (quase) do beijo e do abraço, mas em compensação havia muitas crianças a brincar no relvado onde antes se tinham jogado futebol. E havia um palhaço para as entreter e ao final da tarde música (onde o fado teve um lugar de destaque).
Isto tudo para dizer que os anfitriões foram, mais uma vez, exímios na preparação da festa, não pararam um segundo, e eu continuo a sentir-me ali como se estivesse em casa. Afinal já vi nascerem duas gerações...
Muito obrigada Ana Isabel  e Oscar pelo belo dia que me (nos) proporcionaram. É bom estar com Amigos.
Boas férias e bom descanso, rapidamente nos veremos e para o ano já me sinto aí. Esse pão quente com manteiga é a minha perdição.


Sunday, October 23, 2022

NÃO POSSO ADIAR O AMOR


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora intensa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa

Monday, October 17, 2022

DAQUI DESTE DESERTO EM QUE PERSISTO


Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra

escrevo cavo e escavo a cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente uma pedra

busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo a corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras

Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto

Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto.

Aqui as minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito

Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco

sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total

Que tenho eu para dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada

António Ramos Rosa

(poema dedicado a Vasco Gonçalves)

Sunday, October 16, 2022

40 anos sem ti! E tanta saudade...

 

Adriano Correia de Oliveira

não sei cantar para ti como cantaste
numa noite coimbrã de fogo aceso
corações eles foram tantos que tocaste
tal o meu também voando estando preso

vens de um tempo das afrontas sufocadas
de grilhões prendendo mãos e pensamento
nesse tempo em que ao som de guitarradas
descobrimos ser tão livres como o vento

era um tempo de combate e duras pedras
já cantavam na tão velha escadaria
era negra-negra a noite e as capas negras
mas em cada olhar a esperança se fez dia

na denúncia do algoz soltando amarras
como arauto no combate à força bruta
a tua voz na plangência das guitarras
ia unindo a alma e o corpo à mesma luta

era de Maio essa cor que então cantavas
ou de Abril nesse Inverno descontente
e o calor de rubras flores onde voavas
era o azul de um novo céu de nova gente

eram cores e sons de Abril que já trazias
num assombro de poesias perturbadas
e cantavas naus giestas e alegrias
que fazias ser em nós gume de espadas

à razão deste voz que não se guarda
pressentindo um pulsar que se inquieta
foste o canto a arma e a mão que não se atarda
o percurso firme e tenso de uma seta

ao canto deste a vida e foste esperança
conjugaste em tom diverso o verbo dar
e adivinho o Adriano na criança
que ali corre vida fora junto ao mar

porque somos feitos só de terra e barro
já partiste irmão maior mas entretanto
se nas cinzas se amortalha aquele cigarro
fica em nós presente o grito do teu canto.

Jorge Castro

Wednesday, September 28, 2022

Pequena elegia de Setembro


Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.

Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos poisados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de Setembro.

Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?

Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.

Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?

Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.

Eugénio de Andrade


Tuesday, September 27, 2022

Filho


“Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem.

Isso mesmo!

Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é se expor a todo tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo corretamente e do medo de perder algo tão amado.

Perder? Como?

Não é nosso, recordam-se?

Foi apenas um empréstimo!"

(autor anónimo)

Sunday, September 18, 2022

Meu galope é em frente


Direis que não é poesia
e a mim que importa?
Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espetam
e aos braços que me chamam,
E porque, dia e noite, minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das linhas perdidas
e dos campos esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.
O meu grito e meu canto é a voz de milhões.
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.
Direis que não é poesia.
E a mim que importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?
Eu sigo e seguirei,
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos cantos mais ignotos
e nas linhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
- por terra, mar e ar.
Direis que não é poesia
E a mim que importa!
Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça, a outro mundo, a outra gente.
É andar, é andar!

Mário Dionísio


Thursday, August 25, 2022

53

 


Morrer é tão natural como nascer. E são talvez os dois únicos actos completamente solitários durante toda a vida. O que não é 'natural' é que se morra antes de tempo. Mas aí teríamos de definir o que é 'antes de tempo'... e talvez nunca fosse o tempo...
 

Friday, August 12, 2022

Estado Velho


Ah! Não há dúvida
Vocês existem, vocês persistem

Vocês existem com grémios e tribunais
Medidas de segurança e capitais
Plenários mercenários festivais
Grades torturas verbenas
Cativeiros de longas penas
Com vista para o mar
Para matar

Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço

Vocês existem bordados a ponto de cruz
Fazendo a guerra sugando o povo
Sorvendo a luz com Estoris, cocktails, recepções
Canastas e rallies
Whisky, cocktails, cherries
Trapeiras, esconsos, saguões
Discursos, salmão, lagostas
Pão duro, desespero e crostas
Sorrisos de hospedeiras
E assassínios de ceifeiras

Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço

Vocês existem, baionetas e chá com bolos
Cooperativas, clubes de mães
Concursos de gatos e cães
Cães de luxo para lamber
Cães polícias - polícias cães
Para morder
Barracas de lata para viver
Salários de fome para sofrer
Trapos, suor e lodo
Amáveis conversas de casaca
E sobre as nossas cabeças
A matraca

Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço

Ah! Não há dúvida
Vocês continuam a existir
Até ao raio que vos há-de partir

José Carlos Ary dos Santos

Saturday, August 06, 2022

Testamento

Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos

Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita

Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas

Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu

Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.

Ana Luísa Amaral

 

Thursday, June 30, 2022

Perguntas de um operário letrado


Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?

Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias
Quantas perguntas

Bertolt Brecht

Tuesday, May 31, 2022

Pavana para uma burguesa defunta

A cabeça de vaca da minha tia mais velha
repousa em guerra lenta no cemitério maior.
Rói-lhe o bicho das contas a fímbria da orelha.
Rói-lhe o rato da raiva as narinas sem cor.

Repousa em paz Raposa que na toca
fareja a galinhola e o fricassé.
Já não mija mas cheira já não vive mas ousa
ser a santa que foi  ser o estrume que é.

A cabeça de vaca de minha tia refoga
nas lágrimas burguesas da família enlatada
cozinha-lhe a memória um viúvo de toga
descasca-lhe a cebola uma filha frustrada.

A cabeça de vaca de minha tia meneia
o sim-sim o não-não dos outros semivivos
na família a razão de se morrer a meias
é a exalação dos suspiros cativos.

Se não fosse o desgosto  se não fosse a gordura
o retrato na sala  o buraco no ventre
se não fosse de força tinha feito a escritura
nem sequer houve tempo para o oiro dos dentes.

Minha tia mastiga  minha tia castiga
na saleta do inferno as almas dos criados:
– não me limpaste o pó  a campa tem urtigas
atrasaste o jantar dos condenados.

A cabeça de vaca de minha tia sem nome
coze no fogo brando do que é passar à história.
Dissolve-se na boca  resolve-se na fome 
Do senhor que a devora em sua santa glória.

Ary dos Santos

 

Sunday, May 01, 2022

ROMANCE DO HOMEM DE BOCA FECHADA


—Quem é esse homem sombrio

Duro rosto, claro olhar,

Que cerra os dentes e a boca

Como quem não quer falar?

— Esse é o Jaime Rebelo,

Pescador, homem do mar,

Se quisesse abrir a boca,

Tinha muito que contar.

 

Ora ouvireis, camaradas,

Uma história de pasmar.

 

Passava já de ano e dia

E outro vinha de passar,

E o Rebelo não cansava

De dar guerra ao Salazar.

De dia tinha o mar alto,

De noite, luta bravia,

Pois só ama a Liberdade,

Quem dá guerra à tirania.

Passava já de ano e dia...

Mas um dia, por traição,

Caiu nas mãos dos esbirros

E foi levado à prisão.

 

Algemas de aço nos pulsos,

Vá de insultos ao entrar,

Palavra puxa palavra,

Começaram de falar

—Quanto sabes, seja a bem,

Seja a mal, hás de contá-lo,

— Não sou traidor, nem perjuro;

Sou homem de fé: não falo!

— Fala: ou terás o degredo,

Ou morte a fio de espada.

— Mais vale morrer com honra,

Do que vida deshonrada!

 

—A ver se falas ou não,

Quando posto na tortura.

—Que importam duros tormentos,

Quando a vontade é mais dura?!

 

Geme o peso atado ao potro

Já tinha o corpo a sangrar,

Já tinha os membros torcidos

E os tormentos a apertar,

Então o Jaime Rebelo,

Louco de dor, a arquejar,

Juntou as últimas forças

Para não ter que falar.

— Antes que fale emudeça! -

Pôs-se a gritar com voz rouca,

E, cerce, duma dentada,

Cortou a língua na boca.

 

A turba vil dos esbirros

Ficou na frente, assombrada,

Já da boca não saia

Mais que espuma ensanguentada!

 

Salazar, cuidas que o Povo

Te suporta, quando cala?

Ninguém te condena mais

Que aquela boca sem fala!

 

Fantasma da sua dor,

Ainda hoje custa a vê-lo;

A angústia daquelas horas

Não deixa o Jaime Rebelo.

Pescador que se fez homem

Ao vento livre do Mar,

Traz sempre aquela visão

Na sombra dura do olhar,

Sempre de boca apertada,

Como quem não quer falar.

 

Jaime Cortesão

Primeiro de Maio

A todos
Que saíram às ruas
De corpo-máquina cansado,
A todos
Que imploram feriado
Às costas que a terra extenua –
Primeiro de Maio!
O primeiro dos Maios!
Saudai-o enquanto harmonizamos voz em canto
Meu mundo, em primaveras,
Derrete a neve com sol gaio.
Sou operário –
Este é o meu maio!
Sou camponês – Este é o meu mês.
Sou ferro –
Eis o maio que eu quero!
Sou terra –
O maio é minha era!

Vladimir Maiakovski

Monday, April 25, 2022

Poema de Abril


A farda dos homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado,
do povo banido
que trouxe das trevas
pedaços de sol.
Foi este o prodígio
de um dia de Abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.
Ficou a herança
de erros e buracos
nas árduas ladeiras
a serem subidas
com os pés descalços,
mas no sofrimento
a farda dos homens
voltou a ser pele
e das baionetas
irromperam flores.
Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.

Sidónio Muralha


Sunday, April 24, 2022

Abandono

 

Retirado do mural do Museu do Fado


Friday, April 15, 2022

Ode à Paz


Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do Estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves Outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!

Natália Correia

Monday, March 21, 2022

Balofas carnes de balofas tetas

Balofas carnes de
balofas tetas
caem aos montões
em duas mamas pretas
chocalhos velhos a
bater na pança
e a puta dança.

Flácidas bimbas sem
expressão nem graça
restos mortais de uma
cusada escassa
a quem do cu só lhe
ficou cagança
e a puta dança.

A ver se caça com
disfarce um chato
coça na cona e vai
rompendo o fato
até que o chato
de morder se cansa
e a puta dança.

António Botto

Sunday, March 20, 2022

conversa de café

 
é um sinal dos tempos
que a todo o tempo se repita
que no passado é que era bom
que no meu tempo não era assim
disse-o meu bisavô
ai que a juventude está perdida
dirão os meus bisnetos
que a seu tempo que está perdida a juventude

só na terra plana há becos sem saída.

o sinal dos tempos
é vermelho.  

Miguel Tiago

Friday, March 18, 2022

de como as pessoas se amam

 
as pessoas amam-se logo ali de pés nus na relva húmida bem no início do verão, amam-se na cama, amam-se no chão. as pessoas amam-se num fio em que a intranquilidade é um nó.
as pessoas amam os amigos de peito à prova de bala. amam-se assim de coração, e sob as estrelas, nuas ou não.
as pessoas amam-se p'ra sempre apaixonadas ou até amanhã, camaradas.
as pessoas amam a poesia que lhes escrevem, principalmente se por analfabetos. um dedo, uma língua, ou toda uma praia ao pôr-do-sol na palma na mão. as pessoas amam a sagração da primavera ou todas as quatro estações. de quando em quando as pessoas até amam quem lhes diz não.
amam enquanto o amor as separa e talvez menos quando as une. são assim os humores que nos percorrem por dentro e não raras vezes no peito.
as pessoas amam-se sem intermediários mas precisam deles para receber a primeira carta e sorriem quando amam as letras, principalmente se forem à mão.
as pessoas amam as asas abertas no céu ou a membrana em chamas do inferno porque o purgatório é uma ave engaiolada. as pessoas amam, acima de tudo, existir em mais do que em si próprias e ser casa de alguém.

Miguel Tiago

Saturday, March 12, 2022

A cor da Liberdade

Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
Desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença 

E sempre a verdade vença,
Qual será ser livre aqui,
Não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
É quase um crime viver.

Mas embora escondam tudo
E me queiram cego e mudo,
Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.

Jorge de Sena

Tuesday, March 08, 2022

*****

Hoje é dia da Mulher.

Ontem foi dia da Mulher.

Amanhã será dia da Mulher.

Enquanto houver dias.

Enquanto houver Mulheres.

 

Joaquim Pessoa

Sunday, March 06, 2022

Ao meu Partido


Deste-me a fraternidade para com o que não conheço.
Acrescentaste à minha a força de todos os que vivem.
Deste-me outra vez a pátria como se nascesse de novo.
Deste-me a liberdade que o solitário não tem.
Ensinaste-me a acender a bondade, como um fogo.
Deste-me a rectidão de que a árvore necessita.
Ensinaste-me a ver a unidade e a diversidade dos homens.
Mostraste-me como a dor de um indivíduo morre com a vitória de todos.
Ensinaste-me a dormir na cama dura dos que são meus irmãos.
Fizeste-me construir sobre a realidade como sobre a rocha.
Tornaste-me adversário do malvado e muro contra o frenético.
Fizeste-me ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria.
Tornaste-me indestrutível pois contigo não termino em mim mesmo.

Pablo Neruda

Saturday, March 05, 2022

Intervenção de Ângelo Veloso no Tribunal Plenário - 1970


Sei que vou ser condenado. Sei que irei longos anos para a Cadeia de Peniche, onde se condensam alguns dos aspectos mais negros do regime, onde impera a coacção moral e física, a arbitrariedade e a prepotência, os castigos corporais e a má alimentação, onde um director psicopata e invertebrado passeia o seu sadismo.
É a 3.ª vez que estou preso.
É a 2.ª vez que sou julgado.
Revejo estes 20 anos.
Revejo alguns dos melhores homens que conheci, uns mortos prematuramente, outros assassinados, outros destruídos pela violência da própria luta.
Revejo as centenas e centenas de militantes comunistas que pessoalmente conheci e que de mim sabiam apenas o que é em mim fundamental: que sou comunista.
Revejo os meus companheiros de clandestinidade, meus camaradas e meus amigos, esses homens e essas mulheres que, no sobressalto e no perigo, erguem a resistência no meu país.
Repito: sei que vou ser condenado.
Mas digo e redigo: neste tribunal, o meu lugar é aqui. Os serventuários da exploração e da tirania, esses é que são os criminosos.

Escrito há 45 anos e lido em pleno tribunal plenário, este discurso do meu pai ilustra a coragem de muitos, dizendo na cara dos carrascos aquilo que pensava deles, sem medo.
Já atrasada nas comemorações dos 94 anos anos do PCP, não podia deixar de partilhar este texto, que fala do que foi o Partido e que critica o regime ditatorial - em tantas coisas tão parecido com o de hoje.

--
1 – No início deste julgamento pus-me à disposição deste tribunal para responder a
     quaisquer perguntas. Afirmei então que não negava nem reconhecia fosse o que
     fosse, que era à acusação que competia apresentar provas.
     A acusação nada provou e nada alegou.
2 – Chegou a altura de analisar o conjunto deste processo. Em resumo o caso é este:
      em 25 de Maio de 1969 são presos dentro de uma casa, 4 homens e uma mulher.
      A mulher é expulsa do país e acusada de ser um agente da subversão internacional;
      o dono da casa é acusado de ser militante de muita confiança d P.C. Três outros
      são acusados de serem funcionários. Duas mulheres destes são também acusadas
      de serem funcionárias. No meu caso concreto, acusam-me NEM MENOS de ser
      membro da direcção do P. de pertencer à D.O.R.L. de controlar o comité local
      de Lisboa, de controlar o sector dos intelectuais, de controlar o sector dos
      estudantes, de controlar o aparelho de imprensa, de controlar os Fundos.
      E ainda de ser reincidente.
3 – Para o simples senso comum, esta acusação não é só exagerada, é disforme,
      inconcebível. Mas não é só isso. Comparemo-la com a nota oficiosa, também
      ela emanada da PIDE. Na nota oficiosa diz-se que em 1959 emigrei, na pronúncia,
      diz-se que passei a viver à custa do Partido na clandestinidade, a nota oficiosa afirma
      que era agora membro do CC, a pronuncia afirma que o era desde 1964. A pronúncia
      diz que estive no 6º Congresso em Kiev, a nota oficiosa diz que fiz diversas
      permanências na União Soviética. Etc., etc.
4 – Para explicar estas contradições é preciso regressarmos a Maio-Junho de 1969. Por
     um lado, estava-se em plena crise na Universidade de Coimbra, e, em Lisboa,
     sobretudo no Técnico e em Direito, crescia a efervescência: a acção e a luta estudantil
     ascendia em toda a universidade portuguesa.
      Por outro lado, desenvolviam-se entre os democratas as acções preparatórias de
      participação nas chamadas eleições para a Assembleia Nacional. Mas sobretudo o
     amplo movimento grevista dos trabalhadores de Lisboa, Baixo Ribatejo e Margem Sul
     trazia para primeiro plano a pujança política da classe operária e do seu Partido.
5 – A nota oficiosa responde a esta situação, reflecte necessidades políticas de procurar
      travar o movimento popular, fazendo crer que se assestava um golpe irreparável no
      Partido Comunista.
      Daí que era do CC e controlava este mundo e o outro. Daí que uma inofensiva
     americana era um agente responsável da subversão. Daí que Picado Horta era
     membro de confiança do P., daí que eramos todos funcionários, etc., etc.
6 – Quando fez publicar a nota oficiosa a PIDE provavelmente esperava arrancar de
     alguns de nós as tais confirmações. Mas não o conseguiu. Mais: o escândalo
     começa a surgir. C. Picado Horta é pessoalmente conhecido de pessoas altamente
     afectas ao regime, todos sabem que ele não é comunista, ninguém ousa duvidar
      que está a sofrer violentas torturas, que se lhe procuram arrancar a todo o custo
     declarações falsas.
7 – A PIDE vê-se num beco sem saída. Por um lado o escândalo. Por outro lado não
     pode voltar atrás, desdizer-se. Atira para o saco e à pressa um conjunto informe
    de acusações, convencida talvez que de tanta coisa, o Tribunal alguma há-de reter.
     O inspector Tinoco diz-me: não temos qualquer base para o acusar de ser da
     Direcção do P. mas vamos fazê-lo porque talvez pegue e porque você nada
     nos respondeu.
8 – Ao mesmo tempo toca a criar aos réus todas as dificuldades para a defesa.
     Já foram referidas aqui. Só quero relatar a este tribunal este episódio concludente,
     devidamente comprovado por uma carta minha junto aos autos com a censura de
     Peniche. Quando se protesta junto do director de Peniche contra a apreensão das
     minhas cartas em vésperas de julgamento, ele justifica-se com instruções expressas
     da PIDE. E como se lhe faz notar que a cadeia é do Ministério da Justiça, impávido
     o director responde que quem manda naquilo é a PIDE, que nada ali se faz sem o
    conhecimento e autorização da PIDE.
9 – Pelo mesmo conjunto de razões, a Censura recebe ordens terminantes, contra o
     que é habitual, para nada deixar publicar referente a este julgamento.
10 – Mas apesar de tudo, não é possível condenar os réus sem audiências públicas
       e então assiste-se a isto:
                                   A ACUSAÇÃO DEIXA CAIR O PROCESSO:
       Vêm aqui 3 ou 4 declarantes dizer que eu morava na Bordalo Pinheiro, mas nem
       se lembram do meu nome.
       Testemunhas de acusação não aparecem.
       O acusador não alega.
11 – Porquê? Porque então todos estes aspectos disformes do processo, todas as
       irregularidades e ilegalidades cometidas teriam surgido ainda mais evidentes e
       espantosas.
12 – Em suma: este processo não é só político pelos aspectos processuais e jurídicos.
       É-o do topo a baixo. E só se pode compreender considerando os condicionalismos
       e as vicissitudes políticas.
13 – O que quero declarar é o seguinte: é que tenho orgulho de ser militante do Partido
       Comunista, que não tenho a honra de pertencer à Direcção do Partido, que a minha
        mulher não era funcionária nem membro do Partido.

II
1 – Falou-se aqui muito do P. Comunista.
     A acusação afirma que é uma associação secreta, ilícita e subversiva. As minhas
     testemunhas, de todos os quadrantes do pensamento democrático, demonstraram
     aqui três coisas:
              1º que em Portugal todas as organizações ou partidos políticos são
                  automaticamente considerados associações ilícitas, secretas e
                  subversivas;
              2º que os comunistas portugueses constituem uma corrente de amplo
                  significado e importância no conjunto das tendências políticas
                  nacionais;
              3º que o PCP é apenas… um partido político. É apenas o único partido
                  que pode resistir às perseguições, à violência, à histeria anticomunista
                  da propaganda governamental.
2 – De facto o P.C.P. é o resultado inevitável do amadurecimento político da classe
     operária portuguesa, no impacto da grande revolução socialista de Outubro. Surge
     em 1921, fundado por militantes operários e intelectuais, anarquistas e sindicalistas,
     experimentados nas lutas da CGT, mas conquistados pelas ideias marxistas.
3 – Desde então, apesar de todas as vicissitudes, apesar de todos os fluxos e refluxos
     acidentais, o PCP não cessou de se desenvolver, tornando-se não só um grande
     partido nacional como o mais forte agrupamento antifascista português. Apesar de
     na clandestinidade, é público e até oficialmente reconhecido que o PC tem estado
     na vanguarda de todas as grandes acções de massas desenvolvidas nestes últimos
     40 anos, nas lutas económicas ou políticas, , nas acções sindicais ou culturais ou
     associativas.
4 – Esta vitalidade e esta expansão explicam-se porque o PC é o partido da classe
      operária portuguesa, sua criação e sua obra. O PCP reflecte a maturidade, a
      experiência e o conteúdo revolucionário da própria classe operária. Tal como a
      classe operária se tornou desde a década de 30-40, a principal classe antifascista,
      assim o PC se transformou no mais forte partido político antifascista.

III
1 – Acusam o PCP de intentar mudar o regime e a forma de governo por meios não
      consentidos ou violentos.
      Os depoimentos das testemunhas provaram que esta acusação inverte os termos
      da realidade. Provaram que não existem em Portugal, meios consentidos para a
      expressão da vontade popular, provaram que o próprio regime empurra para uma
      solução violenta dos problemas políticos nacionais.
      Vejamos os factos.
2 – O Estado Novo implanta-se em Portugal por um golpe de Estado anticonstitucional e
     logo se define a si mesmo como antidemocrático, antipopular e ditatorial. Copia, nos
     termos e nos modelos, os regimes de Mussolini e de Hitler a quem incensa e apoia.
3 – Ao longo destes 44 anos, o regime depura, aperfeiçoa e avoluma todo o aparelho
     de Estado.
     Os quadros das forças armadas sofrem intensa e constante selecção política,
     designadamente os altos comandos. A GNR, a PSP, a PVT e mesmo a G.F. tornam-se
     corpos policiais, altamente treinados na repressão aos trabalhadores e aos
     antifascistas, odiados e temidos pelo povo.
     Cria-se uma polícia política de tipo hitleriano – a PVDE, depois PIDE, depois DGS que
     se estende a todo o território nacional e mesmo às colónias. Esta polícia assume um
     papel cada vez mais preponderante em todo o aparelho de estado, que coordena,
     dirige e controla a todos os níveis.
     Instituem-se tribunais políticos, altamente depurados.
     Etc..
4 – É evidente que a criação e o reforço de um tal aparelho de estado é o resultado e
     também é o agente de uma repressão totalitária, generalizada e incruenta. Uma
     constante fundamental da política do regime tem sido a violência e o terror do
     Estado contra os trabalhadores e contra os antifascistas, sejam comunistas ou
     liberais, católicos ou socialistas.
     Perseguições a todos os níveis, prisões,torturas, longas penas, assassinatos são factos
     correntes neste país.
5 – Simultaneamente, anula-se toda a dependência entre os órgãos do poder e a vontade
     nacional. Os poderes legislativo, judicial e executivo dependem exclusivamente do
     próprio governo. Mantem-se é certo alguns sufrágios, apenas porque os portugueses
     o exigem e é necessário à fachada do regime. Mas é público e vai sendo oficialmente
    reconhecido que tais “eleições” são sistematicamente burladas.
     Não há liberdade de imprensa, nem de expressão de pensamento, nem de associação,
     nem sindical, nem de greve.
6 – Conhecem-se, aliás, declarações públicas de governantes que exprimem esta
     situação. Salazar falava nos golpes de Estado anticonstitucionais e nos safanões
     a tempo.
     O actual Presidente do Conselho afirma que não permitirá a entrada na Assembleia
     nacional de um grupo de contestação ao regime.
     O actual M. do Interior afirma que o governo nunca aceitará subordinar-se à ditadura
     de qualquer maioria (23.1.69).
     Ao referir-se ao Pacto Ibérico, o Presidente do Conselho afirma que ele visa a luta
     contra a subversão, isto é, contra os antifascistas.
     Em vésperas de eleições, o M. do Interior previne que não será possível encarar a
     confrontação global das estruturas constitucionais e da política do governo e ameaça
     com “a reacção indispensável” do governo.
7 – Em suma, pela natureza do aparelho de Estado, pela repressão sistemática da vontade
     popular, pela supressão das liberdades fundamentais é o regime que impede sistemati-
     camente qualquer solução do problema político nacional, que a si mesmo se institui
     como o único regime constitucional.
8 – Os comunistas portugueses não defendem a violência e, em múltiplas oportunidades,
     têm apontado a possibilidade e a importância de imprimir um novo curso à vida política
     nacional que poupasse o país à guerra civil. São os fascistas que há 40 anos recorrem
     à violência e ao terror para impor o      seu regime. Perante isto, os comunistas não se
     dobram nem se demitem e dizem abertamente à Nação que está nas suas mãos
     conquistar a liberdade política e que é necessário e urgente instaurar um Governo
     Provisório que assegure as liberdades fundamentais e realize eleições para uma
     Assembleia Constituinte.

IV
1 – Pode-se levantar, e levanta-se de facto, a seguinte questão: Mas é necessário e
     urgente a mudança de regime? Corresponde ou não a regime aos interesses e à
     vontade nacional?
     É evidente que este ponto é essencial na minha defesa.
2 – É hoje comumente aceite, em Portugal e no estrangeiro, que o golpe militar de 28
      de Maio instaurou um regime fascista, isto é, a ditadura dos monopolistas e dos
      latifundiários, aliados dos imperialistas.
      Por um lado, o regime ditatorial a que me referi.
      Por outro lado, os mais baixos níveis de desenvolvimento económico, de nível de
      vida, de saúde, de instrução e de cultura, associados a anormalmente altos ritmos
      e níveis de concentração e centralização monopolista, a um sistema bancário 
      tentacular, ao latifúndio, à exploração colonial, à penetração do capital estrangeiro
      e a correspondente subordinação ao imperialismo.
3 – Hoje começam já a ouvir-se algumas instâncias oficiais falar na crise industrial,
      na crise da agricultura, nos vergonhosos índices de assistência à saúde, no desequi-
      líbrio na distribuição da riqueza, na rotura do sistema de ensino, na emigração como
      resultante de um conjunto de desequilíbrios e crises nacionais. Reconhece-se a
      invasão do capital estrangeiro e o seu papel na espoliação do povo português e na
      rapina das riquezas e do trabalho nacionais. Reconhece-se nas guerras coloniais
      um cancro para a paz. Admite-se o isolamento e o descrédito internacionais.
4 – Crises na economia, no ensino, na assistência, na cultura. Crise demográfica. Baixo
      nível de vida. Guerras. Subordinação ao imperialismo. Tais são alguns dos resultados
      da política do regime em 40 anos de governação, seu fruto inevitável, lógico,
      necessário.
5 – A esta situação respondem os oito pontos do Programa do PCP, cuja realização
     conjunta é a garantia de arrancar de vez as raízes do fascismo e abrir ao país o
     caminho de um desenvolvimento democrático, pacífico e independente.
6 – Hoje – e há quase dois anos – a questão mais controversa é esta:
     Mantém-se em Portugal um regime fascista? Isto é, o governo do novo presidente do
     Conselho é o governo de uma ditadura ao serviço dos monopolistas e dos latifundiários
     aliados aos imperialistas?
     Os comunistas portugueses respondem e demonstram: o regime fascista mantém-se.

V
1 – De facto as características do regime e da política governamental não se alteraram
      com o novo Presidente do Conselho.
      A demagogia “liberalizante” não instituiu um novo regime, é apenas uma nova táctica.
     Esta táctica visa atrair novos apoios, fomentar ilusões, paralisar sectores oposicionistas,
     isolar o P. C., criar expectativa nas mesmas. O que se intenta é salvar o regime
     mascarando o prosseguimento da política tradicional de Salazar.
2 – O actual governo é manifestamente um governo de união de vários grupos e correntes
      fascistas. Surgem, é certo, rivalidades, choques de ambições pessoais, conflitos de
     opinião dos processos a seguir para consolidar um regime num momento de grave
      crise. Mas o que caracteriza tal união é o acordo nos aspectos essenciais duma
      mesma política de tirania, de miséria, de explorações e guerras coloniais, de entrega
      ao imperialismo.
3 – No decurso de quase dois anos, a demagogia governamental cifrou-se em vagas de
      promessas, com muitas conversas de família, e em medidas insignificantes que refor-
      mando aparentemente certas estruturas e métodos do regime, ao fim e ao cabo
      intentam reforçá-lo.
      Continua a ser negado o direito de organização às forças políticas antifascistas. O
      regime do partido único prolonga-se numa União Nacional, com este ou com outro
      nome.
      Proclama-se a abolição da homologação pelo governo das direcções sindicais, mas
      passa a exigir-se a homologação prévia.
      Realizam-se eleições nas A. Estudantes encerradas ou com Comissões Adminis-
      trativas, mas logo se encerram outras A.E. e até as Faculdades e Academias.
      Anuncia-se o respeito pelas opiniões, mas continua a censura, continuam as
      prisões de antifascistas, de trabalhadores em greve, de estudantes em luta.
      Extingue-se o nome da PIDE, mas conserva-se e reforça-se (em número, em
      ordenados e estrutura) a polícia política. Realizam-se eleições para a Assembleia
      Nacional mas continuam as burlas eleitorais.
      Etc, etc.
4 – Este julgamento é um exemplo vivo da continuidade da política repressiva do regime.
      O Presidente do Conselho afirma que “não há em Portugal, presos políticos”, mas os
      presos continuam na cadeia e novas prisões atingem democratas de todas as
      tendências. Prosseguem as buscas, os stops, as rusgas, as intimidações. Continuam
      os espancamentos de manifestantes, de participantes em romagens ou reuniões. Por
      detrás da demagogia, rompe a realidade duma política de violência ou de terror.
5 – O regime continua a ser o fiel servidor dos monopólios e dos latifúndios. Chama-se ao
      Conselho Económico Interministerial os representantes directos dos Conselhos de
      Administração, funde-se ainda mais intimamente a gestão do Estado com a gestão do
      capital financeiro.
      A pretexto da concorrência estrangeira, acelera-se a concentração monopolista e a
      liquidação das pequenas empresas.
      A pretexto de medidas de emergência, intensifica-se a centralização nos têxteis, nas
      pescas, nas conservas, na siderurgia, nas metalomecânicas, etc. A coberto da
      necessidade de investimentos – que as guerras coloniais consomem
       – abre-se o país e as colónias à entrada de capital estrangeiro.
      De facto, colocam-se os recursos do Estado ainda mais amplamente ao serviço dos
      monopólios, facilita-se a especulação, facilita-se a apropriação das pequenas
      economias. A pretendida modernização não é mais do que a consolidação do 
      capitalismo monopolista de Estado.
6 – A política de baixo nível de vida das classes trabalhadoras, de doença e de miséria,
      mascara-se com novas palavras, mas na realidade prolonga-se. Pretende-se levar
      os trabalhadores a produzir cada vez mais, mas esconde-se que a produtividade
      tem aumentado muito mais depressa que os salários reais,esconde-se que é cada vez
      maior a parcela do rendimento nacional que cabe aos capitalistas. Ainda recentemente
      economistas do F.D.M.O. concluíram que 5% da população portuguesa recebia tanto
      de rendimento nacional quanto os restantes 95%.
      A inflação atira para cima dos trabalhadores com o peso de gigantescas despesas de
      guerra e de repressão, provocando ao mesmo tempo os chamados “lucros de 
      inflação”.
      Centenas de milhares de braços abandonam o país, continuando o decréscimo
      absoluto da população portuguesa.
7 – As guerras coloniais continuam a exigir à nação pesados sacrifícios em vidas e
     haveres. O governo fala em paz, acenando mesmo com a autonomia administra-
     tiva, mas na prática reforça o aparelho militar, prosseguem os actos de terrorismo
      e de diversão contra os movimentos de libertação dos povos de Angola, Guiné e
      Moçambique.
      Estreita-se a colaboração militar e política com os regimes da África do Sul e da
      Rodésia.
      O país é assim arrastado para aventuras desastrosas, de consequências
      imprevisíveis, que conduzem a um maior isolamento e descrédito do país.
8 - Na política internacional, o novo governo empreende um conjunto de iniciativas que
     nada mais fazem do que agravar o carácter belicista e reacionário da política
     tradicional do regime. Renovam-se as alianças com a nazi República Federal Alemã
     e o enfeudamento aos Estados Unidos, dentro e fora da NATO, a troco da
     indispensável ajuda às guerras coloniais.
     Estreita-se a aliança com o regime franquista, contra a luta pela libertação dos povos
     espanhol e português. Compra-se ao auxílio directo da África do Sul à guerra colonial
     com vultuosas concessões no Cunene e em Cabora Bassa.
      Intenta-se criar o Pacto do Atlântico Sul com o regime reacionário do Brasil a troco de
      facilidades em África.
      Tal política não pode deixar de conduzir a novos fracassos, a maior enfeudamento e
      ruína da Nação.
9 – O governo não conseguiu os seus objectivos. Criou ilusões, gerou expectativas,
     obteve mesmo certa complacência da imprensa burguesa internacional. Mas não
     conseguiu novos apoios, não dividiu os democratas, não isolou o Partido Comunista,
      foi impotente para impedir o agravamento da luta de classes.
      As lutas reivindicativas da classe operária, designadamente a vaga de greves de
      Janeiro-Março de 69, deitaram por terra as manobras do governo, dinamizaram todo
      o movimento antifascista, patentearam a força política da classe operária e do seu
      partido.
      O irreprimível movimento da juventude estudantil, sobretudo a crise coimbrã, puseram
      a nu a velha face do regime.
      A expansão do movimento democrático, antes e durante as eleições, demonstrou que
      o regime está isolado da Nação, que a demagogia é impotente para castrar a luta dos
       democratas, que a liberdade política é a reivindicação primeira do povo português.
      Mas mostraram também que o regime persiste em fechar todas as saídas legais
      e pacíficas para a solução dos problemas políticos nacionais que os fascistas
      continuam dispostos a recorrer às forças armadas e à intervenção estrangeira se
      sentirem o regime em perigo, se esse for o único caminho para vencer a vontade
      nacional.

VI
      Sei que vou ser condenado. Sei que irei longos anos para a Cadeia de Peniche,
      onde se condensam alguns dos aspectos mais negros do regime, onde impera a
      coacção moral e física, a arbitrariedade e a prepotência, os castigos e a má
      alimentação, onde um director psicopata e inverbrado passeia o seu sadismo.
      É a 3ª vez que estou preso.
      É a 2ª vez que sou julgado.
      Revejo estes 20 anos.
      Revejo alguns dos melhores homens que conheci, uns mortos prematuramente, outros
      assassinados, outros destruídos pela violência da própria luta.
      Revejo as centenas e centenas de militantes comunistas que pessoalmente conheci
      e que de mim sabiam apenas o que é em mim fundamental: que sou comunista.
      Revejo os meus companheiros de clandestinidade, meus camaradas e meus amigos,
      esses homens e essas mulheres que, no sobressalto e no perigo, erguem a resistência
      no meu país.
      Repito:sei que vou ser condenado.
      Mas digo e redigo: neste tribunal, o meu lugar é aqui. Os serventuários da exploração
      e da tirania, esses é que são os criminosos.
                                                                                      5 de Março de 1970
--

Transcrição integral cedida pelo camarada Vasco Paiva.
As imagens têm pouca qualidade, mas consegue ler-se na íntegra. 
Fonte das imagens: (1970), "Intervenção de Ângelo Veloso no Tribunal Plenário", CasaComum.org, Disponível HTTP: http://hdl.handle.net/11002/fms_dc_56192(2015-3-16) - Fundação Mário Soares


Thursday, March 03, 2022

Vandalismo na Guarda


Ligam-me aos Camaradas e à cidade da Guarda laços especiais de militância e de amizade.
Já disse por aqui várias vezes que trabalhar naquele distrito, conhecer as dificuldades existentes e saber da persistência dos Camaradas e Amigos nos faz enriquecer enquanto pessoas e nos dá ainda mais força para a Luta.
A primeira vez que estive a trabalhar na Guarda foi em 2001 e, desde então, de 4 em 4 anos anos era uma festa ir para lá. Um trabalho duro e exigente, com prazos, como toda a gente sabe que são as listas para as autárquicas. Já não tenho pernas que me permitam fazer o que fiz, já não vou para lá trabalhar, mas a Guarda ficou-me no coração.
Esta madrugada o Centro de Trabalho do PCP na Guarda foi vandalizado. Tenho a certeza que amanhã já não haverá sinais do vandalismo.
Falei com os Camaradas a dar-lhes a minha solidariedade e a lembrar outros tempos. Apetece-me ir lá. A vida continua e a Luta também.
Mas cada vez que olho a pintura por debaixo do que foi a minha janela o meu coração sangra...
 

Saturday, February 05, 2022

Eu tenho um Anjo


Eu tenho um Anjo que não voa,
Forjado no sal e iodo das marés.
Derrotado pelo fragor das tempestades.
Renascido pelo embalar das bonanças.
 
Perdeu as asas em batalhas que não venceu.
Ganhou a força que ilumina o seu olhar
Com que me ensina a voar.
 
Não me promete o paraíso.
Diz-me: LUTA!
Porque a vida, mesmo sem asas, é bela demais para se perder!
 
Eu tenho um Anjo… Eu tenho o Mundo!

 Jose Santos

Saturday, January 22, 2022

Das minhas memórias


 Das minhas memórias

Tinha eu feito 13 anos ainda não há dois meses quando este assalto se deu. Na Escola, 1º tempo (8:30), aula de Religião e Moral. Oiço uma colega da fila detrás dizer 'faz qualquer coisa, não queremos ter aula'. E começámos a 'bichanar' a quatro (eram cadeiras de duas alunas) e a professora, a famosa D. Celeste, que também nos dava Culinária (que para sermos mulherzinhas tínhamos de saber cozinhar, bordar, coser, fazer renda, tratar dos filhos e do marido - para isso éramos educadas) a D. Celeste, dizia eu, mandava-me calar. E eu virava-me para a frente, sendo que logo a seguir me esticava para a fila detrás e respondia à minha colega mantendo uma conversa de nada, só para não termos aquela aula.
Às tantas a D. Celeste ouviu qualquer coisa que lhe pareceu ter a ver com o assalto ao Santa Maria (tínhamos ouvido na rádio mas não percebíamos peva do que se estava a passar) e disse, 'Morgadinha, aqui nesta aula só tratamos de assuntos sérios'. E eu, do alto dos meus 13 anos e meia dúzia de semanas, respondo-lhe: 'Mas quer algum assunto mais sério do que o assalto ao Santa Maria?'.
Ficou a D. Celeste pálida uns momentos e vai sentar-se na secretária, não sem antes ter dito, de braço esticado e indicando a porta da sala de aula 'Já prá rua!'....
E eu vim. Mais uma falta a vermelho, e acho que foi aqui e neste dia que comecei a tentar perceber porquê tamanho castigo...
Dizem que eu era fresca.....

Monumento a Vasco Gonçalves

 

Associação quer criar monumento a
Vasco Gonçalves em Lisboa
projetado por Álvaro Siza
 
Manuel Begonha afirmou que "face à atual ascensão das forças de extrema-direita, entende a
associação que as ideias de Vasco Gonçalves devem ser preservadas".
 
17 Janeiro 2022 — 16:12

A Associação Conquistas da Revolução quer criar um monumento para recordar a vida e obra do general Vasco Gonçalves (1921-2005), projeto cuja elaboração foi aceite pelo arquiteto Álvaro Siza e que vai ser apresentado à Câmara Municipal de Lisboa.
 
Contactado esta segunda-feira pela agência Lusa, Manuel Begonha, presidente da associação criada em 2012 para preservar a memória, vida e obra do militar e político que foi primeiro-ministro durante quatro governos provisórios a seguir à Revolução do 25 de Abril, indicou que na quinta-feira, em Lisboa, vai realizar-se uma reunião para preparar o processo a entregar ao presidente da autarquia, Carlos Moedas.
 
"As celebrações do centenário do nascimento já estão a decorrer desde 2021, com várias iniciativas, mas a criação do monumento ao pensamento relevante deste homem seria o ponto alto, e muito importante, para avivar a memória de um exemplo, sobretudo para os jovens", sublinhou o responsável da associação.
 
Sobre o convite feito ao arquiteto Álvaro Siza, Begonha disse: "Já falámos com ele e mostrou-se muito satisfeito por ter sido escolhido para desenhar o monumento, até porque ele era amigo de Vasco Gonçalves".
 
Da comissão de honra das comemorações, que tem como lema "a moral e a política vão de par e não se podem dissociar", fazem parte militares e civis que estiveram em lados diferentes da Revolução do Cravos.
 
A lista, composta por uma centena de pessoas, desde a área da cultura, militar e política, inclui, além de Álvaro Siza, Dinis de Almeida, Duran Clemente ou Mário Tomé, mas também militares do lado do "grupo dos nove", como Vasco Lourenço, presidente da Associação 25 de Abril.
 
O historiador António Borges Coelho, o arqueólogo Cláudio Torres, dirigentes políticos como Carlos Carvalhas e Jerónimo de Sousa, do PCP, Heloísa Apolónia (PEV), a atriz Maria do Céu Guerra, Manuela Cruzeiro e Pilar del Rio também integram esta comissão.
 
Questionado sobre as razões pelas quais a cidade deveria acolher um monumento a Vasco Gonçalves, o presidente da Associação Conquistas da Revolução apontou várias: "Foi do grupo dos que constituíram o MFA [Movimento das Forças Armadas, movimento militar responsável pela Revolução do 25 de Abril de 1974], era o oficial mais graduado, ocupou todas as funções públicas que na altura era possível ter, até chegar a primeiro-ministro de quatro governos provisórios".
 
Além disso, "deu cumprimento ao programa do MFA, teve projeção internacional, e com ele se fizeram as grandes transformações do país, parte das quais ainda estão na Constituição Portuguesa".
 
Manuel Begonha sustentou ainda que, "face à atual ascensão das forças de extrema-direita, entende a associação que as ideias de Vasco Gonçalves devem ser preservadas".
 
"A 'serpente' foi apenas queimada, não foi morta. Ela permanece, portanto. Nós não queremos voltar ao passado", comentou, referindo-se à "difusão de ideias de teor fascista".
 
Na sua opinião, "há um contributo relevante para a sociedade que ainda pode ser dado pela história" do general Vasco dos Santos Gonçalves, nascido em Lisboa, a 03 de maio de 1921, e que morreu em Almancil, a 11 de junho de 2005.
 
Vasco Gonçalves foi chefe dos Governos Provisórios entre 18 de julho de 1974 e 10 de setembro de 1975, e o seu nome era aclamado nas manifestações e comícios durante o PREC em 'slogans' como "força, força, companheiro Vasco, nós seremos a muralha de aço", de uma canção interpretada por Maria do Amparo e Carlos Alberto Moniz.
 
O período em que chefiou o governo ficou conhecido por "gonçalvismo" e ficou marcado principalmente pelo combate aos monopólios e aos latifúndios.
 
A nacionalização da banca e dos seguros, a par da aceleração da Reforma Agrária, foram decisões emblemáticas do "gonçalvismo", ainda hoje sinónimo de extremismo de esquerda para as forças de direita.
 
Na próxima quinta-feira, a associação vai reunir a sua comissão executiva criada para dar seguimento ao projeto do monumento, e eleger uma delegação que irá pedir audiência ao presidente da CML para entregar a proposta.
 
Questionado pela Lusa sobre quem irá custear a construção do monumento, o presidente da associação disse: "Não sabemos. Por isso estamos na expectativa desta reunião com a câmara de Lisboa".