Quando um ramo de doze badaladas
menino eras de lenha e crepitavas
Depois nas folhas secas te envolvias
"QUANDO EU MORRER VOLTAREI PARA BUSCAR OS INSTANTES QUE NÃO VIVI JUNTO DO MAR" (Sophia de Mello Breyner Andresen)
O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.
A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela de fragilidade e de incerteza.
O que eu adoro em ti
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito subtil,
Tão ágil, tão luminoso,
— Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem é a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.
O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.
O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi,
Não é a irmã que já perdi,
E meu pai.
O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti — lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.
"Este texto não é um prefácio
Disseram-me que era a minha vez de escrever sobre este livro e o seu autor. Tarefa difícil a que darei o meu melhor, sendo que não sou de grandes escritas. Mas...
- quando se nasce no centro do país mas se tem campos de searas no olhar;
- quando se cresce no meio da natureza e se ganham asas dos pássaros que voam ao longe;
- quando as lágrimas afloram o olhar com a mesma naturalidade com que o sorriso se rasga numa brincadeira de menino;
- quando se respira sensibilidade por todos os poros da pele;
- quando a amizade é forma de amor mais bonita e um amigo é tudo na vida,
tudo o que se possa dizer sobre o autor ou a sua obra fica aquém do merecido.
O António é antropólogo e a profissão levou-o a viver algum tempo ao sul, tendo daí resultado duas experiências riquíssimas que se traduziram em obras já publicadas sobre os Assalariados Agrícolas de Ervidel e os Mineiros de Aljustrel, livros que reproduzem histórias de vida de quem as contou. Escreveu ainda uma história para crianças (e para adultos, diria eu) a que chamou Sebastião Toupeira, e que aborda a vida dos mineiros de Aljustrel. Acresce a Casa das Glicínias e Os Confins da Infância, estes dois de poesia. E se os primeiros livros que escreveu nos prendem pelas histórias de vida que relatam, é na Poesia que o António (Lains de Ourém, às vezes Lains de lado nenhum) se despe completamente e nos mostra todos os sentimentos em carne viva.
Não tenho a certeza de quando conheci o António, porque já sabia que existia antes de o ver. Um Amigo comum juntou-nos, e éramos bastantes. Nesse dia em Ervidel eu tive a certeza que era uma amizade para a vida. Seguiram-se as outras apresentações dos outros livros que já referi, e com outros Amigos comuns. Mas eu já lia o António nas redes sociais. E às vezes tinha de parar para respirar. O que acontece ainda hoje. E fomo-nos descobrindo.
O António é um jovem nascido depois de Abril. Mas tem hoje, em seu poder, toda a História da nossa Revolução em autocolantes, cartazes, emblemas, crachás e outros materiais que o transportam a tempos em que ainda não existia, mas que sabe terem sido intensos e marcantes para quem os viveu. Depois o António é um curioso da vida, e encontrámos mais dois pontos em que os nossos interesses são idênticos: a música e as artes plásticas, dois mundos enormes sobre os quais temos ainda muito para conversar e descobrir.
Passemos ao Louvor das Aves ao Sul.
Nunca há palavras bastantes para descrever o belo. Profundamente conhecedor dos terrenos que pisa, cada poema é sempre um voltar ao passado e ao mesmo tempo ao futuro. Um passado experienciado quantas vezes ao som do chilrear das aves, um futuro a construir com todos os sonhos que agarra com as mãos. Um voltar à casa.
Este livro é uma viagem profunda (ou será um voo?) aos imensos campos do Alentejo e do Sul onde o autor se cruza com o canto das aves e com todas as emoções vividas e ainda por viver, mas que adivinha. Uma viagem solitária, que não em solidão, para melhor sentir o cheiro da terra, das árvores, das searas. Uma viagem solitária, que não em solidão, aos afectos, lugares e gentes com quem se cruzou. Uma viagem em que está sempre presente a Família como pilar de tudo. A Mãe! A Casa! A ternura...
E quem pega no livro para o ler inicia com o autor uma magnífica viagem ao interior de quem o escreve. Como disse atrás, todos os sentimentos estão em carne viva. Nada nos é indiferente neste livro de poemas. Nem as palavras, nem as ilustrações feitas por vários artistas plásticos.
Amaciem os vossos corações e leiam este livro em silêncio. Para que possam ouvir o bater de asas das aves."
Já fez um ano. O tempo voa...
Soy pueblo
dirán exactamente de Fidel
gran conductor el que incendió la historia etcétera
pero el pueblo lo llama el caballo y es cierto
Fidel montó sobre Fidel un día
se lanzó de cabeza contra el dolor contra la muerte
pero más todavía contra el polvo del alma
la Historia parlará de sus hechos gloriosos
prefiero recordarlo en el rincón del día
en que miró su tierra y dijo soy la tierra
en que miró su pueblo y dijo soy el pueblo
y abolió sus dolores sus sombras sus olvidos
y solo contra el mundo levantó en una estaca
su propio corazón el único que tuvo
lo desplegó en el aire como una gran bandera
como un fuego encendido contra la noche oscura
como un golpe de amor en la cara del miedo
como un hombre que entra temblando en el amor
alzó su corazón lo agitaba en el aire
lo daba de comer de beber de encender.
Fidel es un país
yo lo vi con oleajes de rostros en su rostro
la Historia arreglará sus cuentas allá ella
pero lo vi cuando subía gente por sus hubiéramos
buenas noches Historia agranda tus portones
entramos con Fidel con el caballo.
Juan Gelman
(Em memória do meu amigo
José Mário Branco)
Nas mãos do vento uma guitarra arde.
É tarde. É tarde. E o meu poema pouco.
Que um deus qualquer a tua fúria guarde.
Que qualquer deus te ame. Ou qualquer louco.
No fundo do olhar morre a gaivota.
É cedo. É cedo. Vai gritando o vento.
E leva em cada asa uma derrota.
E põe no céu de abril o sofrimento.
É cedo. É tarde, amigo. Ai, é tão cedo!
É tão macia a noite. E negra a cama
coberta com lençóis do teu segredo.
Para ti não há loiros. Não há fama.
E enquanto um povo lavra o chão do medo
um homem rasga as veias sobre a lama.
Joaquim Pessoa
Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-Geral do PCP
no Funeral de José Casanova
16 Novembro 2014
Aqui estamos para prestar a justa e devida homenagem ao José Casanova. Para a Cândida, para os filhos Catarina e Miguel, a mais sentida palavra de pesar ainda que sabendo que palavras não há para preencher o vazio que o José Casanova lhes deixa, mas também a este imenso colectivo de camaradas e amigos que habituou à sua inesquecível presença.
Aqui viemos hoje, não para nos despedirmos de um camarada, mas para afirmar que embora partindo do convívio com os seus camaradas, os seus amigos e em particular com a sua família, o José Casanova estará presente em todos e em cada um dos muitos momentos que nos reunirão para continuar os combates e a luta que ele sempre abraçou. Deixou de estar entre nós um homem bom, um amigo solidário, um combatente antifascista e construtor de Abril, um Comunista. Mas o seu percurso de vida, de militante e dirigente do PCP perdurará em todos e em cada um de nós para prosseguirmos a luta de emancipação social que o animou.
Natural de uma terra de lutadores que inscreveram o Couço num dos mais emblemáticos locais de resistência contra a opressão e a iniquidade do regime fascista, Casanova que bem cedo aderiu ao PCP tem o seu percurso de vida ligado à luta pela liberdade e a democracia. Com 19 anos iniciou a sua participação na União da Juventude Portuguesa tendo integrado a sua Direcção.
Assumiu como jovem comunista, nas candidaturas de Arlindo Vicente e Humberto Delgado, papel destacado tendo desempenhado diversas tarefas partidárias no País nas décadas de 50 e 60 do Século passado. Preso pela PIDE em 1960, julgado e condenado a dois anos de prisão, Casanova permaneceu cerca de seis anos detido tendo passado pelas cadeias do Porto, Caxias e Peniche. Exilado na Bélgica no início da década de 70 aí prosseguiu a actividade partidária tendo sido presidente da Associação dos Portugueses Emigrados na Bélgica e mantendo contactos com os movimentos de libertação das ex-colónias.
Com o 25 de Abril José Casanova regressa a Portugal para prosseguir no nosso País a luta. Membro do Comité Central desde 1976 e da Comissão Política de 1979 a 2008, José Casanova foi, entre outras tarefas, responsável pelas Organizações Regionais de Lisboa (entre 1989 e 1996), de Santarém (em 1997 e 1998) tendo ainda, no início dos anos 2000 tido a responsabilidade pelo acompanhamento das regiões autónomas dos Açores e da Madeira. José Casanova foi director do «Avante!», órgão central do PCP entre 1997 e Fevereiro deste ano. Era actualmente responsável pela Comissão Nacional de Cultura.
Participante activo no exaltante processo de transformação social que a Revolução de Abril constituiu, José Casanova esteve associado às muitas batalhas, tarefas e luta que, primeiro no processo revolucionário, depois na resistência ao processo contra-revolucionário, mobilizaram o Partido, os trabalhadores e os democratas. Participante desde a primeira hora na Comissão Promotora das Comemorações Populares do 25 de Abril ainda na década de 70, Casanova integrou a Comissão Coordenadora da FEPU e da APU tendo desenvolvido um importante papel no trabalho unitário e de convergência com muitos outros democratas.
Homem de imensa cultura, aquela cultura que se ergue de uma vivência inseparável do pulsar do que de mais genuíno brota da incomparável sabedoria dos trabalhadores e do povo de onde vinha, José Casanova deixa-nos também a sua produção no campo literário com os romances “Aquela Noite de Natal”, “O Caminho das Aves” e “O Tempo das Giestas”, bem como outras obras, nomeadamente o livro sobre Catarina Eufémia, recentemente editado.
José Casanova honrou, pelo seu exemplo e dedicação, pelo seu espírito de militância e capacidade política, pela sua intervenção e entrega à luta, as melhores tradições da classe operária, dos trabalhadores e do povo português.
Uma opção que nestes tempos difíceis em que querem impor um futuro de declínio e retrocesso social ao País e a Portugal ganha redobrada importância.
Hoje, como em poucos outros momentos, a luta em que com o Casanova participámos em defesa dos valores de Abril, pela ruptura com a política de direita pela construção de uma alternativa e uma política patrióticas e de esquerda assume particular e decisiva importância.
Uma luta para afirmar direitos que com Abril conquistámos, para dar combate à exploração capitalista que lança para o empobrecimento e para a emigração centenas de milhares de portugueses, para devolver aos jovens o direito de poder ter futuro no seu País, para libertar Portugal da submissão e da dependência.
Essa luta sem tréguas que continuamos a travar para abrir caminho a um Portugal com futuro, para combater falsas alternativas, para ampliar a consciê ncia sobre os reais problemas e responsáveis pela situação a que o País foi conduzido, para alargar a convergência dos democratas e patriotas na afirmação de um Portugal desenvolvido e soberano, tendo o socialismo no horizonte. Muitos, entre outros objectivos de luta, que com o Casanova partilhámos e que saberemos estar a altura de lhe poder dizer, num futuro mais ou menos próximo, “conseguimos Zé”!
Aqui estamos, não para lhe dizer Adeus, mas até sempre, neste reencontro de todos os dias na luta que nos unirá. Com a profunda convicção de que a sua morte não apagará um percurso de vida marcada pela inteira dedicação à luta pela Liberdade, a Democracia, o Socialismo e o Comunismo.
Homens e comunistas assim não morrem.
O José Casanova sabia que o seu Partido de sempre, o seu projecto, o seu ideal, iria prosseguir para além das nossas vidas!
Perduram em cada um de nós neste combate que nos une, na luta que continua.
Até sempre, camarada José!
Quando temos Amigos de há longa data (a Ilha presente) e a esses Amigos se juntam outros Amigos (a Festa presente) e ainda outros que passam a ser amigos, acontece uma enorme mesa (ou várias pequenas mesas que fazem uma enorme mesa) e a festa acontece.
Foi assim, mais uma vez, anteontem, dia 1, dia do Pão por Deus. Dia que me leva à infância, onde bem cedo os cheiros das broas e das batatas doces assadas se misturavam com o cheiro dos figos e castanhas assadas. E havia nozes e maçãs. E saquinhos de pano onde púnhamos o que nos davam. E era uma alegria.
Mas eu quero falar é de anteontem. Ainda estávamos a tomar o pequeno almoço e já havia voluntários a fazer o lume onde se iria assar um porco, e os fornos estavam acesos para a cozedura do pão. E ao meio dia as pessoas já iam chegando, cada um trazia um doce ou o que queria, que isto dividido por todos é mais fácil e faz parte da partilha e do convívio.
Dei-me conta que os dois anos de pandemia alteraram bastante a vida das pessoas. Desabituámo-nos (quase) do beijo e do abraço, mas em compensação havia muitas crianças a brincar no relvado onde antes se tinham jogado futebol. E havia um palhaço para as entreter e ao final da tarde música (onde o fado teve um lugar de destaque).
Isto tudo para dizer que os anfitriões foram, mais uma vez, exímios na preparação da festa, não pararam um segundo, e eu continuo a sentir-me ali como se estivesse em casa. Afinal já vi nascerem duas gerações...
Muito obrigada Ana Isabel e Oscar pelo belo dia que me (nos) proporcionaram. É bom estar com Amigos.
Boas férias e bom descanso, rapidamente nos veremos e para o ano já me sinto aí. Esse pão quente com manteiga é a minha perdição.
Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas
Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio
Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora intensa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação
Não posso adiar o coração
António Ramos Rosa
Nenhum ruído no branco.
Nesta mesa onde cavo e escavo
rodeado de sombras
sobre o branco
abismo
desta página
em busca de uma palavra
escrevo cavo e escavo a cave desta página
atiro o branco sobre o branco
em busca de um rosto
ou folha
ou de um corpo intacto
a figura de um grito
ou às vezes simplesmente uma pedra
busco no branco o nome do grito
o grito do nome
busco
com uma fúria sedenta
a palavra que seja
a água do corpo a corpo
intacto no silêncio do seu grito
ressurgindo do abismo da sede
com a boca de pedra
com os dentes das letras
com o furor dos punhos
nas pedras
Sou um trabalhador pobre
que escreve palavras pobres quase nulas
às vezes só em busca de uma pedra
uma palavra
violenta e fresca
um encontro talvez com o ínfimo
a orquestra ao rés da erva
um insecto estridente
o nome branco à beira da água
o instante da luz num espaço aberto
Pus de parte as palavras gloriosas
na esperança de encontrar um dia
o diadema no abismo
a transformação do grito
num corpo
descoberto na página do vento
que sopra deste buraco
desta cinzenta ferida
no deserto.
Aqui as minhas palavras são frias
têm o frio da página
e da noite
de todas as sombras que me envolvem
são palavras
são palavras frágeis como insectos
como pulsos
e acumulo pedras sobre pedras
cavo e escavo a página deserta
para encontrar um corpo
entre a vida e a morte
entre o silêncio e o grito
Que tenho eu para dizer mais do que isto
sempre isto desta maneira ou doutra
que procuro eu senão falar
desta busca vã
de um espaço em que respira
a boca de mil bocas
do corpo único no abismo branco
sou um trabalhador pobre
nesta mina branca
onde todas as palavras estão ressequidas
pelo ardor do deserto
pelo frio do abismo total
Que tenho eu para dizer
neste país
se um homem levanta os braços
e grita com os braços
o que mais oculto havia
na secreta ternura de uma boca
que era a única boca do seu povo
Que posso eu fazer senão
daqui
deste deserto
em que persisto
chamar-lhe camarada
António Ramos Rosa
(poema dedicado a Vasco Gonçalves)
Adriano Correia de Oliveira
não sei cantar para ti como cantaste
numa noite coimbrã de fogo aceso
corações eles foram tantos que tocaste
tal o meu também voando estando preso
vens de um tempo das afrontas sufocadas
de grilhões prendendo mãos e pensamento
nesse tempo em que ao som de guitarradas
descobrimos ser tão livres como o vento
era um tempo de combate e duras pedras
já cantavam na tão velha escadaria
era negra-negra a noite e as capas negras
mas em cada olhar a esperança se fez dia
na denúncia do algoz soltando amarras
como arauto no combate à força bruta
a tua voz na plangência das guitarras
ia unindo a alma e o corpo à mesma luta
era de Maio essa cor que então cantavas
ou de Abril nesse Inverno descontente
e o calor de rubras flores onde voavas
era o azul de um novo céu de nova gente
eram cores e sons de Abril que já trazias
num assombro de poesias perturbadas
e cantavas naus giestas e alegrias
que fazias ser em nós gume de espadas
à razão deste voz que não se guarda
pressentindo um pulsar que se inquieta
foste o canto a arma e a mão que não se atarda
o percurso firme e tenso de uma seta
ao canto deste a vida e foste esperança
conjugaste em tom diverso o verbo dar
e adivinho o Adriano na criança
que ali corre vida fora junto ao mar
porque somos feitos só de terra e barro
já partiste irmão maior mas entretanto
se nas cinzas se amortalha aquele cigarro
fica em nós presente o grito do teu canto.
Jorge Castro
Não sei como vieste,
mas deve haver um caminho
para regressar da morte.
Estás sentada no jardim,
as mãos no regaço cheias de doçura,
os olhos poisados nas últimas rosas
dos grandes e calmos dias de Setembro.
Que música escutas tão atentamente
que não dás por mim?
Que bosque, ou rio, ou mar?
Ou é dentro de ti
que tudo canta ainda?
Queria falar contigo,
dizer-te apenas que estou aqui,
mas tenho medo,
medo que toda a música cesse
e tu não possas mais olhar as rosas.
Medo de quebrar o fio
com que teces os dias sem memória.
Com que palavras
ou beijos ou lágrimas
se acordam os mortos sem os ferir,
sem os trazer a esta espuma negra
onde corpos e corpos se repetem,
parcimoniosamente, no meio de sombras?
Deixa-te estar assim,
ó cheia de doçura,
sentada, olhando as rosas,
e tão alheia
que nem dás por mim.
Eugénio de Andrade
“Filho é um ser que nos emprestaram para um curso intensivo de como amar alguém além de nós mesmos, de como mudar nossos piores defeitos para darmos os melhores exemplos e de aprendermos a ter coragem.
Isso mesmo!
Ser pai ou mãe é o maior ato de coragem que alguém pode ter, porque é se expor a todo tipo de dor, principalmente da incerteza de estar agindo corretamente e do medo de perder algo tão amado.
Perder? Como?
Não é nosso, recordam-se?
Foi apenas um empréstimo!"
(autor anónimo)
Direis que não é poesia
e a mim que importa?
Eu canto porque a voz nasce e tem de libertar-se.
E grito porque respondo
às lanças que me espetam
e aos braços que me chamam,
E porque, dia e noite, minhas mãos e meus olhos,
por estranhas telegrafias,
dos cantos mais ignotos
e das linhas perdidas
e dos campos esquecidos
e dos lagos remotos,
e dos montes,
recebem longas mensagens e comunicações:
para que grite e cante.
O meu grito e meu canto é a voz de milhões.
Por isso que me importa?
Eu canto e cantarei o que tiver a cantar
e grito e gritarei o que tiver a gritar
e falo e falarei o que tiver a falar.
Direis que não é poesia.
E a mim que importa
se eu estou aqui apenas para escancarar a porta
e derrubar os muros?
E a mim que importa
se vós sois afinal o que hei-de ultrapassar
e esmigalhar
em nome
de todos os futuros?
Eu sigo e seguirei,
como um doido ou um anjo,
obstinado e heróico a caminho de nós
em palavras e acções
por todos os vendavais
e temporais
e multidões
nos cantos mais ignotos
e nas linhas perdidas
e nos campos esquecidos
e nos lagos remotos
e nos montes
- por terra, mar e ar.
Direis que não é poesia
E a mim que importa!
Convosco ou não, meu galope é em frente.
Pertenço a outra raça, a outro mundo, a outra gente.
É andar, é andar!
Mário Dionísio
Morrer é tão natural como nascer. E são talvez os dois únicos actos completamente solitários durante toda a vida. O que não é 'natural' é que se morra antes de tempo. Mas aí teríamos de definir o que é 'antes de tempo'... e talvez nunca fosse o tempo...
Ah! Não há dúvida
Vocês existem, vocês persistem
Vocês existem com grémios e tribunais
Medidas de segurança e capitais
Plenários mercenários festivais
Grades torturas verbenas
Cativeiros de longas penas
Com vista para o mar
Para matar
Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço
Vocês existem bordados a ponto de cruz
Fazendo a guerra sugando o povo
Sorvendo a luz com Estoris, cocktails, recepções
Canastas e rallies
Whisky, cocktails, cherries
Trapeiras, esconsos, saguões
Discursos, salmão, lagostas
Pão duro, desespero e crostas
Sorrisos de hospedeiras
E assassínios de ceifeiras
Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço
Vocês existem, baionetas e chá com bolos
Cooperativas, clubes de mães
Concursos de gatos e cães
Cães de luxo para lamber
Cães polícias - polícias cães
Para morder
Barracas de lata para viver
Salários de fome para sofrer
Trapos, suor e lodo
Amáveis conversas de casaca
E sobre as nossas cabeças
A matraca
Palhaço
Lacrimogénio
Capacete de aço
Ah! Não há dúvida
Vocês continuam a existir
Até ao raio que vos há-de partir
José Carlos Ary dos Santos
Vou partir de avião
E o medo das alturas misturado comigo
Faz-me tomar calmantes
E ter sonhos confusos
Se eu morrer
Quero que a minha filha não se esqueça de mim
Que alguém lhe cante mesmo com voz desafinada
E que lhe ofereçam fantasia
Mais que um horário certo
Ou uma cama bem feita
Dêem-lhe amor e ver
Dentro das coisas
Sonhar com sóis azuis e céus brilhantes
Em vez de lhe ensinarem contas de somar
E a descascar batatas
Preparem minha filha para a vida
Se eu morrer de avião
E ficar despegada do meu corpo
E for átomo livre lá no céu
Que se lembre de mim
A minha filha
E mais tarde que diga à sua filha
Que eu voei lá no céu
E fui contentamento deslumbrado
Ao ver na sua casa as contas de somar erradas
E as batatas no saco esquecidas
E íntegras.
Ana Luísa Amaral
Quem construiu Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis,
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída,
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima Dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos de triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.
O jovem Alexandre conquistou as Índias
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a guerra dos sete anos
Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?
Tantas histórias
Quantas perguntas
Bertolt Brecht
Ary dos Santos
—Quem é esse homem sombrio
Duro rosto, claro olhar,
Que cerra os dentes e a boca
Como quem não quer falar?
— Esse é o Jaime Rebelo,
Pescador, homem do mar,
Se quisesse abrir a boca,
Tinha muito que contar.
Ora ouvireis, camaradas,
Uma história de pasmar.
Passava já de ano e dia
E outro vinha de passar,
E o Rebelo não cansava
De dar guerra ao Salazar.
De dia tinha o mar alto,
De noite, luta bravia,
Pois só ama a Liberdade,
Quem dá guerra à tirania.
Passava já de ano e dia...
Mas um dia, por traição,
Caiu nas mãos dos esbirros
E foi levado à prisão.
Algemas de aço nos pulsos,
Vá de insultos ao entrar,
Palavra puxa palavra,
Começaram de falar
—Quanto sabes, seja a bem,
Seja a mal, hás de contá-lo,
— Não sou traidor, nem perjuro;
Sou homem de fé: não falo!
— Fala: ou terás o degredo,
Ou morte a fio de espada.
— Mais vale morrer com honra,
Do que vida deshonrada!
—A ver se falas ou não,
Quando posto na tortura.
—Que importam duros tormentos,
Quando a vontade é mais dura?!
Geme o peso atado ao potro
Já tinha o corpo a sangrar,
Já tinha os membros torcidos
E os tormentos a apertar,
Então o Jaime Rebelo,
Louco de dor, a arquejar,
Juntou as últimas forças
Para não ter que falar.
— Antes que fale emudeça! -
Pôs-se a gritar com voz rouca,
E, cerce, duma dentada,
Cortou a língua na boca.
A turba vil dos esbirros
Ficou na frente, assombrada,
Já da boca não saia
Mais que espuma ensanguentada!
Salazar, cuidas que o Povo
Te suporta, quando cala?
Ninguém te condena mais
Que aquela boca sem fala!
Fantasma da sua dor,
Ainda hoje custa a vê-lo;
A angústia daquelas horas
Não deixa o Jaime Rebelo.
Pescador que se fez homem
Ao vento livre do Mar,
Traz sempre aquela visão
Na sombra dura do olhar,
Sempre de boca apertada,
Como quem não quer falar.
Jaime Cortesão
A todos
Que saíram às ruas
De corpo-máquina cansado,
A todos
Que imploram feriado
Às costas que a terra extenua –
Primeiro de Maio!
O primeiro dos Maios!
Saudai-o enquanto harmonizamos voz em canto
Meu mundo, em primaveras,
Derrete a neve com sol gaio.
Sou operário –
Este é o meu maio!
Sou camponês – Este é o meu mês.
Sou ferro –
Eis o maio que eu quero!
Sou terra –
O maio é minha era!
Vladimir Maiakovski
A farda dos homens
voltou a ser pele
(porque a vocação
de tudo o que é vivo
é voltar às fontes).
Foi este o prodígio
do povo ultrajado,
do povo banido
que trouxe das trevas
pedaços de sol.
Foi este o prodígio
de um dia de Abril,
que fez das mordaças
bandeiras ao alto,
arrancou as grades,
libertou os pulsos,
e mostrou aos presos
que graças a eles
a farda dos homens
voltou a ser pele.
Ficou a herança
de erros e buracos
nas árduas ladeiras
a serem subidas
com os pés descalços,
mas no sofrimento
a farda dos homens
voltou a ser pele
e das baionetas
irromperam flores.
Minha pátria linda
de cabelos soltos
correndo no vento,
sinto um arrepio
de areia e de mar
ao ver-te feliz.
Com as mãos vazias
vamos trabalhar,
a farda dos homens
voltou a ser pele.
Sidónio Muralha
Pela verdade, pelo riso, pela luz, pela beleza,
Pelas aves que voam no olhar de uma criança,
Pela limpeza do vento, pelos actos de pureza,
Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,
Pela branda melodia do rumor dos regatos,
Pelo fulgor do Estio, pelo azul do claro dia,
Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego dos pastos,
Pela exactidão das rosas, pela Sabedoria,
Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,
Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,
Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,
Pelos aromas maduros de suaves Outonos,
Pela futura manhã dos grandes transparentes,
Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,
Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas
Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,
Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna,
Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz.
Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,
Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,
Abre as portas da História,
deixa passar a Vida!
Natália Correia
Balofas carnes de
balofas tetas
caem aos montões
em duas mamas pretas
chocalhos velhos a
bater na pança
e a puta dança.
Flácidas bimbas sem
expressão nem graça
restos mortais de uma
cusada escassa
a quem do cu só lhe
ficou cagança
e a puta dança.
A ver se caça com
disfarce um chato
coça na cona e vai
rompendo o fato
até que o chato
de morder se cansa
e a puta dança.
António Botto
Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.
Eu não posso senão ser
Desta terra em que nasci.
Embora ao mundo pertença
E sempre a verdade vença,
Qual será ser livre aqui,
Não hei-de morrer sem saber.
Trocaram tudo em maldade,
É quase um crime viver.
Mas embora escondam tudo
E me queiram cego e mudo,
Não hei-de morrer sem saber
Qual a cor da liberdade.
Hoje é dia da Mulher.
Ontem foi dia da Mulher.
Amanhã será dia da Mulher.
Enquanto houver dias.
Enquanto houver Mulheres.
Joaquim Pessoa
Deste-me a fraternidade para com o que não conheço.
Acrescentaste à minha a força de todos os que vivem.
Deste-me outra vez a pátria como se nascesse de novo.
Deste-me a liberdade que o solitário não tem.
Ensinaste-me a acender a bondade, como um fogo.
Deste-me a rectidão de que a árvore necessita.
Ensinaste-me a ver a unidade e a diversidade dos homens.
Mostraste-me como a dor de um indivíduo morre com a vitória de todos.
Ensinaste-me a dormir na cama dura dos que são meus irmãos.
Fizeste-me construir sobre a realidade como sobre a rocha.
Tornaste-me adversário do malvado e muro contra o frenético.
Fizeste-me ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria.
Tornaste-me indestrutível pois contigo não termino em mim mesmo.
Pablo Neruda
Sei que vou ser condenado. Sei que irei longos anos para a Cadeia de Peniche, onde se condensam alguns dos aspectos mais negros do regime, onde impera a coacção moral e física, a arbitrariedade e a prepotência, os castigos corporais e a má alimentação, onde um director psicopata e invertebrado passeia o seu sadismo.
É a 3.ª vez que estou preso.
É a 2.ª vez que sou julgado.
Revejo estes 20 anos.
Revejo alguns dos melhores homens que conheci, uns mortos prematuramente, outros assassinados, outros destruídos pela violência da própria luta.
Revejo as centenas e centenas de militantes comunistas que pessoalmente conheci e que de mim sabiam apenas o que é em mim fundamental: que sou comunista.
Revejo os meus companheiros de clandestinidade, meus camaradas e meus amigos, esses homens e essas mulheres que, no sobressalto e no perigo, erguem a resistência no meu país.
Repito: sei que vou ser condenado.
Mas digo e redigo: neste tribunal, o meu lugar é aqui. Os serventuários da exploração e da tirania, esses é que são os criminosos.
Eu tenho um Anjo que não voa,
Forjado no sal e iodo das marés.
Derrotado pelo fragor das tempestades.
Renascido pelo embalar das bonanças.
Perdeu as asas em batalhas que não venceu.
Ganhou a força que ilumina o seu olhar
Com que me ensina a voar.
Não me promete o paraíso.
Diz-me: LUTA!
Porque a vida, mesmo sem asas, é bela demais para se perder!
Eu tenho um Anjo… Eu tenho o Mundo!
Jose Santos