Tuesday, December 10, 2024

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Andámos a distribuir cigarros pelos soldados.
De guarda aos quartéis, espingardas mansas assentes no chão.
E os cravos [tão presentes em nós, ainda].
E a gente... tanta.
Tu aqui, e tu, e tu, também. Afinal...
Os cartazes alinhavados por mãos apaixonadas gritando todas as palavras só conhecidas em letra clandestina.
Todos os abraços, todas as presenças até então atrás de grades, de fronteiras, de casas escondidas.
Todas as lágrimas choradas de alegrias, agora.
- Como cresci, irmão. Como embranqueceram entretanto os teus cabelos.
Esquecer a dor. Soltá-la. Vê-la transformada num imenso rio a caminho do amanhã.
Em cada rosto, em cada olhar, lia-se uma só palavra - Liberdade.
E nas vozes um grito forte que continua ainda hoje a comandar os nossos passos.
Mesmo quando silenciosos, mesmo quando nasce o desencanto.
Nunca mais!
Maria Eugénia Cunhal

Saturday, December 07, 2024

Fado Lezíria

Mar Ribatejo, maré cheia
O meu cavalo deslumbrou se
E galopando pela areia
Bebeu o mar salgado e doce.
É na lezíria que nos cheira
A maré viva nos esteiros
Água chorada a vida inteira
De homens que foram pioneiros.
Luz numa praça de aventura
Luzes no traje de um toureiro
Garcia Lorca que procura
Ver numa arena o seu tinteiro.
Mundo de passes e faenas
E de lugares de sombra e sol
Os dois sectores que há nos poemas
Vivos na prosa do Redol.
Tira o barrete põe o colete
De homem p'ra homem enfrenta o toiro
Ensina o verde ao teu ginete
Que o verde é esperança
Que o verde é oiro.
Tira o barrete põe o colete
Pega de caras o teu destino
Tira do verde todo o verdete
Homem inteiro, verde campino.

Ary dos Santos

Friday, December 06, 2024

Voto de pesar pela morte de Celeste dos Cravos aprovado por unanimidade

Apresentada pelo PCP, a iniciativa recordou a mulher que um dia «levantou-se para ir trabalhar num restaurante situado em Lisboa, na Rua Braancamp» e acabou por dar cor à Revolução. Após a votação todos, à excepção do Chega e CDS, bateram palmas de pé.


Celeste Caeiro, também conhecida carinhosamente por Celeste dos Cravos, faleceu no passado dia 15 de Novembro, aos 91 anos. Nascida em Lisboa a 2 de Maio de 1933, «oriunda de uma família humilde, e viveu grande parte da sua vida em Lisboa», Celeste ficou na história por ter sido a pessoa que começou a distribuir cravos, batizando a Revolução e tornando-se numa cara de Abril.

«Enfrentou uma vida de dificuldades com perseverança. Mulher trabalhadora, de fortes convicções, e militante comunista até ao fim da sua vida, a sua generosidade e afabilidade ficará na memória de todos os que com ela conviveram», podia ler-se na iniciativa apresentada pelo PCP. 

O voto de pesar dos comunistas descreveu também o dia em que Celeste ficou na história, relembrando que o restaurante onde trabalhava fazia um ano a 25 de Abril de 1974 e por essa razão comprou flores para oferecer aos clientes. Com o alvoroço e incerteza, o restaurante acabou por não abrir nesse dia e os cravos foram distribuídos pelas trabalhadoras. Celeste não foi para casa, juntou-se aos populares no Chiado e tendo sido informada por um dos soldados de que estava em curso uma revolução, ofereceu-lhe um cravo que o militar colocou no cano da espingarda. 

Aprovado por unanimidade, de seguida as bancadas bateram palmas de pé aos familiares presentes nas galerias, à exceção do Chega e CDS-PP, cujos deputados permaneceram sentados. 

Sobre o Centenário do Nascimento de Mário Soares

https://youtu.be/zVzOXhpIWKw?si=ThH3FZamPB26rTIa

Thursday, November 28, 2024

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Chove por dentro do meu peito
O dilúvio enche as ruas da minha idade
Faz correr o rio da saudade
E perde-se no desejo por desaguar
Chove por dentro do meu peito
Sempre que me danço só para te encontrar
Chove no caos da minha mão
A semente da vida cobre o tanto de mim
Faz nascer um mundo em tons de jardim
Que, louco, se abre de fogo que não me pode queimar
Chove no caos da minha mão
Sempre que canto só para te encontrar
Chove na revolta do fundo da casa
O céu maior de uma lágrima em tom cinzento
Faz crescer o futuro do meu maior sustento
E desperta os vazios de ir e de ficar
Chove na revolta do fundo da casa
Sempre que choro só para te encontrar

Pedro Branco

Thursday, November 21, 2024

A25A

 
Caros Associados
Junto enviamos posição assumida pela Direcção da A25A, por unanimidade e concordância dos demais Órgãos Sociais, sobre o convite recebido do Senhor Presidente da Assembleia da República para a “Sessão Solene Evocativa do 49.º aniversário do 25 de Novembro de 1975”.
Com cordiais saudações de Abril
Vasco Lourenço
Comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril
Comemorar, o quê e porquê?
O 25 de Abril, como único e irrepetível processo de intervenção na definição do tipo de sociedade humana, não foi fácil de concretizar.
O processo que se seguiu também não foi fácil, mas caminhámos sempre no sentido de concretizar as promessas do Programa do MFA apresentado à sociedade portuguesa desde o início.
A liberdade proporcionou que cada cidadão fosse optando pela sua visão e pelo seu projecto, juntando-se ou não aos movimentos e partidos políticos que vinham da actividade clandestina do anterior ou que se foram constituindo.
Mas a liberdade também foi permitindo que os saudosos do passado se fossem aproveitando das oportunidades que o período revolucionário, o período de transição e o posterior período democrático e constitucional lhes foi proporcionando. Eles sempre estiveram e continuam a estar presentes entre nós e pretendem, senão regressar ao passado, pelo menos destruírem os valores do 25 de Abril e construírem uma sociedade limitada e controlada.
Isto vem a propósito das comemorações dos 50 Anos do 25 de Abril (que atingiram uma dimensão generalizada e mesmo surpreendente) e porque há quem queira elevar a comemoração do 25 de Novembro de 1975 à dimensão (pelo menos a título oficial) do 25 de Abril de 1974.
Ora nós consideramos que nenhum dos acontecimentos posteriores se pode comparar ao “dia Inicial, Inteiro e Limpo” ou ao dia da “Grândola Vila Morena”. O 25 de Abril é o dia da Liberdade, da reconstrução da Democracia e da Paz, conforme ficou bem evidente nas Comemorações Populares dos 50 Anos do 25 de Abril. Todos os acontecimentos posteriores, que se caracterizaram por tentativas de impedir o caminho traçado pelo Pograma do MFA e dos seus valores, acabaram por ser vitórias do MFA e do povo, apesar do juízo que hoje se possa fazer sobre o caminho que foi seguido.
É por isso que cabe no nosso conceito, e até no nosso desejo, que os momentos – chave desse percurso sejam recordados e evocados, como o “28 de Setembro de 1974”, o “11 de Março de 1975”, o “25 de Novembro de 1975” (não esquecendo outros, também importantes, mas de menos relevo como foi o “Golpe Palma Carlos”). Mas nunca admitiremos que qualquer deles se sobreponha ou pretenda igualar à comemoração do 25 de Abril de 1974.
A História não pode ser deturpada. Nós, os principais responsáveis pela consumação do 25 de Abril, com a aprovação da Constituição da República não o permitiremos!
Tendo presente que a A25A foi fundada pela quase totalidade dos Militares de Abril (95%), unidos à volta do essencial, sentimento que continua a prevalecer, extensivo aos muitos cidadãos não militares que, entretanto, a integraram, é pois clara a posição da A25A:
1. Comemorar o 25 de Abril e o percurso que a sociedade portuguesa, de facto efectuou nos anos posteriores;
2. Relembrar e evocar o 28 de Setembro, o 11 de Março e o 25 de Novembro, exigindo que, nessas evocações se não desvirtue o passado, se não deturpem os acontecimentos e se não procurem atingir, passados 50 anos, os objectivos que os inimigos do Programa do MFA e da Liberdade não conseguiram, na altura, alcançar.
Nesse sentido, não contestando o direito da Assembleia da República decidir livremente, direito derivado do 25 de Abril, sobre os actos que quer praticar, mas tendo em consideração que é nossa opinião que a sua decisão de comemorar apenas o 25 de Novembro, além do 25 de Abril, provoca uma enorme e clara deturpação dos acontecimentos vividos na caminhada para o cumprimento do Programa do MFA - A História é a História, não pode ser deturpada, ao sabor da vontade de qualquer conjuntural detentor do poder.
A Associação 25 de Abril decidiu não aceitar o convite do Senhor Presidente da Assembleia da República, não se fazendo representar na “Sessão Solene Evocativa do 49.º aniversário do 25 de Novembro de 1975”.
Lisboa, 14 de Novembro de 2024
Pela Direcção
Vasco Lourenço

Monday, November 18, 2024

Balada das onze e meia

Onze e meia: meia hora
para acabar este dia.
Meia hora ainda é hoje.
Meia hora é amanhã.
Às onze e meia da noite
vai haver muita pancada
num bar da rua das Pretas.
Vai haver muita mudança
nos decretos aprovados.
Às Onze e meia da noite
no quarto não se ouve nada
mas no berço uma criança
dorme o sono dos poetas
que andam subalimentados.
Às onze e meia da noite
direi vinte e três e trinta.
Acordo o galo vermelho
com dois murros no pescoço.
Canta, canta, meu pelintra
o dia de hoje é tão velho
que amanhã já estamos mortos.
Às onze e meia da noite
os Ódios nunca estão fartos.
Às onze e meia da noite
a morte anda lá por fora
a pedir contas à vida
e os polícias têm medo
da própria sombra que pisam.
Onze e meia. Está na hora.
No relógio ainda é cedo.
Os ponteiros não deslizam.
Às onze horas e meia
esperamos por amanhã.
Chega a noite para a ceia
com dois pezinhos de lã.
Passam gatunos, canalhas
com seus múltiplos perfis.
Caem corpos e navalhas
no silêncio dos lancis.
Onze e meia. A meia hora
que falta, nunca mais passa.
Não passa. Nunca mais passa.
Eu sei lá quanta desgraça
se apodera em meia hora
das ruelas e dos becos
que apodrecem na cidade!
São onze e meia. É agora
que os olhos verdes dos cegos
pressentem a claridade.
Às onze e meia da noite
o vento não bate à porta
nem quer saber de mais nada.
Às onze e meia da noite
no bar da rua das Pretas
continua a haver pancada.
Às onze e meia da noite
os cães disputam a dente
uma cadela aluada.
Às onze e meia da noite
há travestis no Rossio
à pesca dos marinheiros
que deixaram o navio
e fazem ondas de cio
no sangue dos paneleiros.
Bateram as onze e meia.
Só faltam trinta minutos.
Acende-se a lua cheia
na rua dos Sapateiros.
São onze e meia da noite
e eu quero ficar contigo
entre lençóis de algodão.
Fincar no flanco uma espora.
Cavalgar por meia hora.
Dar rédeas ao coração.
Às onze e meia da noite
é tempo de solidão.
E nas entranhas do medo
fazem-se filhos diversos.
Como um padeiro faz versos
ou um poeta faz pão.
Às onze e meia da noite.
Às onze e meia da noite
recebem-se embaixadores
e à mesma hora os porteiros
afugentam os trapeiros
vestidos de malfeitores.
Às onze e meia da noite
a Primavera passou-se
para o lado do Outono.
E uma Maria qualquer
nas alamedas do sono
cansada de ser mulher
às onze e meia matou-se.
Em ponto. São onze e meia.
Esta noite os redimidos
hão-de fazer por esquecer.
Bem comidos e bebidos
não tardam a adormecer.
E um frasco de comprimidos
na mesa de cabeceira
vai ajudar os sentidos
a cozer a bebedeira.
Às onze e meia da noite.
Às onze e meia da noite
num gabinete privado
(como a irmã cotovia)
o tipo que está ao lado
cantou tudo o que sabia
para subir de ordenado.
Às onze e meia da noite
rastejam cobras na lama
onde afocinham as putas
Senhoras Donas da Cama.
Mas as putas que são putas.
Não as que têm a fama.
São onze e meia da noite.
Já só falta meia hora.
Apenas trinta minutos.
Às onze e meia da noite
ponho a tristeza de lado
e uma gravata de seda.
Quero ouvir cantar o fado.
Quero dar uma facada
no galo da consciência.
Quero menos paciência
e um pouco mais de loucura.
E enquanto são onze e meia
ainda dura a pancada
no bar da rua das pretas
os putos fazem punhetas
em jeito de habilidade
apenas com quatro dedos.
E descobrem os segredos
de nascerem portugueses
filhos de um povo adiado.
Feitos aqui e agora.
Quando falta meia hora
para acabar o passado.
Joaquim Pessoa
125 poemas, antologia poética
litexa, 1982

Saturday, November 16, 2024

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Do chão sabemos que se levantam as searas e as árvores,
levantam-se os animais que correm os campos
ou voam por cima deles,
levantam-se os homens e as suas esperanças.
Também do chão
pode levantar-se um livro,
como uma espiga de trigo
ou uma flor brava.
Ou uma ave.
Ou uma bandeira.
José Saramago

Friday, November 15, 2024

Celeste dos cravos

Faleceu a Celeste, que distribuiu os cravos que acabaram no cano das espingardas

Celeste Caeiro, que fez dos Cravos sinónimo de Abril, faleceu hoje, aos 91 anos. Mulher trabalhadora e militante comunista, teve uma vida marcada pelo seu compromisso com os valores de Abril.


A Celeste dos Cravos, apesar da idade avançada, não recusava solicitações para partilhar a sua história, para participar em comemorações da Revolução de Abril. Foi assim até este ano, quando se celebram os 50 anos de Abril: esteve no mar de gente que desceu a Avenida da Liberdade, na sua cidade de Lisboa, mas também fez questão de estar na Festa do «Avante!», a realização anual do seu partido, o PCP.
Celeste Caeiro nasceu em Lisboa, em Maio de 1933, cidade onde trabalhou viveu grande parte da sua vida. De origens humildes, na manhã de 25 de Abril de 1974, com 40 anos, saiu de casa no Chiado, onde vivia, com a sua mãe e a filha ao seu cuidado, rumo ao restaurante onde trabalhava, no edifício Franjinhas, na Rua Braancamp. Nas palavras de Celeste, «a casa fazia um ano nesse dia, os patrões queriam fazer uma festa e o gerente comprou flores». Com as operações dos capitães de Abril em curso ali ao lado, o restaurante não chegou a abrir e Celeste levou os cravos no caminho de volta a casa.
Foi já no Chiado que se deparou com os veículos militares que rumavam ao Quartel do Carmo, para deter Marcelo Caetano. Foi isso que lhe explicou o jovem militar (que, para seu desgosto, Celeste nunca voltou a encontrar) a quem perguntou o que se passava. «Isto é uma Revolução!», acrescentou, no relato da própria Celeste, a que se seguiu o pedido de um cigarro. Celeste não fumava, a tabacaria estava fechada, mas a sua gratidão para com aqueles jovens que protagonizavam a libertação de 48 anos de fascismo levou a oferecer-lhes o que tinha: os cravos vermelhos que acabaram nos canos das espingardas. Com o seu gesto carregado de simbolismo, Celeste Caeiro deu expressão à adesão popular às acções do Movimento das Forças Armadas, naquele mesmo dia, e que viria a ser sintetizado na fórmula «Aliança Povo-MFA».
«Correu tudo muito bem. Tinha de correr, pois os cravos estavam nas espingardas e elas assim não podiam disparar...», contou sobre o dia em que o País se libertou da ditadura fascista. Celeste Caeiro faleceu hoje, aos 91 anos.
 
AbrilAbril

Tuesday, November 05, 2024

Auditoras externas – ludibriadas por Salgado ou cúmplices do BES?


Durante os trabalhos da Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão do BES e do Grupo Espírito Santo puderam apurar-se inúmeras práticas que consolidaram todas as teses do Partido Comunista Português sobre a incompatibilidade da banca privada e o interesse público, todas as teses sobre a farsa da regulação e da supervisão e todas as teses sobre a subordinação do poder político ao poder económico. Além disso, ficou ainda provado o entrelaçamento profundo entre a corrupção, as privatizações e a política de direita.
O julgamento do caso BES, que se inicia dez anos após o início dos trabalhos da Comissão de Inquérito, vem relembrar várias das questões levantadas ao longo dos trabalhos dessa comissão e algumas merecem uma reflexão também política, para lá da judicial.
Foi divulgado na comunicação social desta semana que uma das técnicas da auditora externa KPMG testemunhou sobre o caso BES apontando um largo conjunto de questões sobre os métodos da instituição bancária, nomeadamente sobre a falta de acesso a informação, sobre emissões de obrigações sem paralelo na banca, sobre recompra de obrigações, sobre o financiamento da componente não financeira do grupo monopolista – o GES –, sobre a falta de eficácia e «deficiências» no controlo interno do banco.
A técnica da KPMG – Inês Viegas – deixou claro que havia dificuldades em obter informações sobre todas as actividades do grupo e que comunicava todos esses problemas à sua chefia. Este ensaio, que constitui uma espécie de «fomos apanhados de surpresa» é uma confissão da cumplicidade das auditoras que não deixa ilesa a anterior auditora – a PWC. A PWC colocara questões já em 2001, denunciando a exposição extrema e de elevado risco do BES ao GES, num relatório que nunca viu a luz do dia e que aparentemente terá levado ao fim da contratação da PWC como auditora externa do BES, apesar de ter permanecido como auditora de algumas empresas do GES.
A forma como a KPMG tentou sempre ao longo da história do colapso do BES desresponsabilizar-se pela situação a que o banco chegou seria cómica, não fossem os quase 10 mil milhões de euros que a actuação combinada do conjunto de instituições (auditoras, governo, Banco de Portugal, BES) já fez aos portugueses desembolsar.
Para um breve, mas útil, exercício de memória, relembremos algumas conclusões a que o inquérito parlamentar nos permitiu chegar em 2015:
1. O Banco de Portugal tinha uma funcionária técnica em supervisão directa no BES, no interior da instituição, que nunca se apercebeu de absolutamente nada, nem tomou ou accionou qualquer medida preventiva perante a exposição desmedida do BES ao GES.
2. A KPMG Portugal era dirigida por Sikander Sattar, senior partner, e este tinha relativo conhecimento do dossier BES mas nunca se apercebeu – ao longo de vários anos de auditoria – dos problemas das contas do BES e do GES, sendo que nunca colocara ênfases ou reservas nas contas do banco. Sikander Sattar foi convocado em duas posições para o inquérito parlamentar: como presidente da KPMG Portugal e como presidente da KPMG Angola. O ridículo começa a tornar-se óbvio.
3. A KPMG Portugal não sabia nada sobre a exposição do BES ao BESA (BES Angola).
4. A KPMG Angola auditava o BESA e tinha perfeita noção dos valores transferidos (com autorização do Banco de Portugal) do BES para o BESA.
5. As contas de 2001 foram auditadas pela PWC, que levantou várias questões numa versão preliminar do relatório de auditoria, curiosamente, nunca tornado público. A versão final das contas surge expurgada dessas questões. Esse documento foi ocultado à comissão de inquérito até ter surgido na comunicação social, pese embora o PCP o tenha mencionado inúmeras vezes nas sessões de inquérito.
6. A PWC não transmitiu à KPMG quaisquer reservas sobre o comportamento do BES.
7. O Banco de Portugal limitava-se a aceitar os relatórios de auditoria das auditoras, sem ter qualquer forma para proceder à sua verificação.
Estes factos, que são também possíveis conclusões dos trabalhos da comissão de inquérito, demonstram o grau de envolvimento entre auditores externos e os auditados, bem como a incapacidade de fiscalização real por parte da autoridade bancária, no caso, o Banco de Portugal. A situação bizarra de o presidente da KPMG Portugal ser exactamente a mesma pessoa que o presidente da KPMG Portugal e o presidente da KPMG Angola saber de coisas que não podia, por sigilo, comunicar ao presidente da KPMG Portugal é só um ingrediente extra num enredo já de si escandaloso.
A existência de uma versão preliminar de um relatório de auditoria de 2001, da PWC, em que a exposição do BES ao GES já é referida como preocupante, bem como são expostas algumas outras práticas do BES e da sua administração, mostra bem que os problemas são conhecidos e existem pelo menos desde o início da década. O facto de o PCP ter mencionado vezes sem conta esse relatório em plenas sessões da comissão de inquérito e o facto de isso nunca ter sido sequer mencionado na comunicação social é também apenas mais um elemento deste processo, elemento que ilustra a forma como foi silenciado o trabalho do PCP, em prejuízo da qualidade do inquérito. É relevante relembrar que a comunicação social presente na sala aproveitava comummente o tempo de intervenção do PCP para fazer as suas pausas e retirar-se do espaço.
A existência desse relatório anunciada pelo PCP desde o início das audições parlamentares, ignorada pela comunicação social e negada pelos responsáveis do BES e pela própria KPMG até ao dia em que a RTP anuncia ser detentora de uma cópia, prova bem que os testemunhos de Inês Viegas só podem revelar três coisas, que podem ser simultâneas: a inexistência da comunicação entre auditoras no momento da passagem de pasta, prevista na lei; a cumplicidade da auditora externa com as práticas do BES; a incapacidade de obter informação correcta e de articular o trabalho da auditoria externa com o controlo interno da instituição.
Em qualquer dos casos, todas as possibilidades apontam para a evidência de que a arquitectura da supervisão bancária não é mais do que uma grande farsa, um grande fingimento com vista à tranquilização do público e dos depositantes. A KPMG, tal como a PWC, não falharam na auditoria externa, não se enganaram, não foram alvos de ocultação de informações relevantes (e se fossem, a denúncia a posteriori de pouco adianta), foram antes os cúmplices da administração do BES e do GES, contribuindo activamente para ocultar falsificações e contas marteladas, permitindo um desequilíbrio nas contas do Grupo que chegou a atingir 18 mil milhões de euros, 10 dos quais praticamente assumidos pelos trabalhadores portugueses através dos empréstimos ao fundo de resolução e das garantias dadas a activos tóxicos no balanço do Novo Banco aquando da sua entrega à Lone Star.
A promiscuidade entre governo e banca só é suplantada pela promiscuidade entre banca e auditoras externas: veja-se a naturalidade com que quadros das auditoras passam a integrar quadros da banca, quase como se isso constituísse o passo lógico e expectável da progressão na carreira. É quase como se a auditoria externa fosse o reservatório de recrutamento da banca para funções que visam, no interior do banco, assegurar a ocultação de práticas, martelar contas, contribuir para a aparente legalidade e estabilidade das instituições. Os auditores bem sucedidos na carreira passam rapidamente a consiglieris.
Inês Viegas pode agora em tribunal tentar disfarçar o papel que a KPMG teve ao longo do percurso do BES e isso será parte da história do processo. Mas o que é mesmo preocupante é não ter sido nada feito quanto à promiscuidade entre auditoras e banca e quanto à capacidade real do Banco de Portugal realizar as suas próprias auditorias, sem recurso às auditoras externas que trabalham para a banca. E tudo isso continua por resolver porque, desde 2015, a Assembleia da República rejeita sistematicamente as propostas do PCP em que se introduz um período de nojo de 4 anos para transferências de quadros das auditoras para a banca, por exemplo, ou em que se determina algo tão simples como a autonomia e independência da supervisão bancária, assegurando a existência de uma equipa de auditoria própria do Banco de Portugal.
A intervenção da KPMG no caso BES é também mais um elemento que comprova o papel das chamadas «quatro grandes» (Deloitte, E&Y, PWC e KPMG) como biombos que nos ocultam as práticas da banca privada, num contexto em que existe elevada rotatividade de quadros e interesses entre auditado e auditor, papel esse a que urge colocar um fim através de medidas de controlo público da banca.
O «currículo», ou talvez melhor cadastro, daquelas quatro multinacionais especializadas em auditorias, consultorias, e classificação dos «ratings» de Estados e empresas/grupos económicos, em particular na área financeira, evidencia a total fraude e mistificação que é a entrega ao capital privado, sujeito à lógica inexorável da maximização dos lucros, da monitorização e fiscalização da legalidade jurídica e cumprimento de normas administrativas e técnicas dos negócios do capitalismo internacional e nacional. A sua manutenção nessas funções de juízes da violação do ordenamento e regulamentação legais e constitucionais da actividade económica empresarial privada significa a total cumplicidade dos Estados das grandes potências. E torna irrecusável, perante os exemplos que se sucederam nas últimas décadas em Portugal e no mundo, a exigência de que tais competências e funções sejam realizados por entidades públicas, sujeitas ao escrutínio democrático dos cidadãos através dos órgãos legislativo, executivo e judicial de Estados soberanos. Eliminam-se assim radicalmente os riscos de corrupção, nepotismo e fraude? Não. Mas permitem que esses fenómenos sejam postos a nu, com outra prontidão e celeridade, avaliados e julgados através das instituições estatais sujeitas elas próprias à normatividade legal e constitucional do Estado de direito, mesmo no quadro, complexo e contraditório, dos interesses de classe que comandam o Estado capitalista.

Miguel Tiago
AbrilAbril, 5.11.2024

Monday, November 04, 2024

POEMA QUINQUAGÉSIMO


Tanto é o amor de que a boca me alimenta
que eu amo as sílabas inchadas de ternura,
rebentos sanguíneos de uma fala breve e inquiridora
que quer saber de tudo, o poema, o livro, a noite e até
do fogo dentro das crianças, dos archotes que me guiam
pelas grutas do pensamento e pelas dunas claras
do teu corpo em repouso.
Nelas as minhas mãos aguardam o amanhecer
quando é mais doloroso chamar-te mulher ou mãe
ou fêmea. Ou roseira.
Na minha insónia a noite não é mais do que terra
sedenta e suplicante. A que, de bruços me pede amor
e me oferece amor, de rosto magoado pela paixão antiga
de uma vida cintilante mas cruel. Amo-te, amo-me
até aos ossos. E por este ofício de cantar-te eu daria
a minha vida, para encher, embriagado, a tua vida
de versos, de uma luz feliz.
Imagino-te tremendo nos antigos caminhos
enquanto a minha idade mergulha no mais fundo
das coisas que um dia me dirás.
Hoje, nada existe sem ti, sem a lucidez do dia,
tudo és tu, tudo é esta vontade de pertencer-te assim
como quem se entrega e se consome nesse fogo árduo
que os meus dedos acendem e a tua carne alimenta
quando a dor são palavras, nada mais que palavras,
e as palavras se imolam devagar.
Com uma fome ruiva, roubas da minha boca
os pães ainda quentes para dar aos versos
e a água prenhe e límpida para dar aos beijos.

Joaquim Pessoa

Friday, October 25, 2024

BES/GES: Quando o accionista assalta o banco, o Banco de Portugal guarda a porta e o Estado paga

 
Quando o PCP propôs, em 2014, a constituição da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) à gestão do Banco Espírito Santo e do Grupo Espírito Santo, com vista ao esclarecimento das condições em que foi aplicada a medida da resolução ao BES, e da gestão do banco e do grupo que conduziram à ruptura, fê-lo com a convicção de que constituiria uma oportunidade política relevante para conhecer em detalhe o modelo de governação dos monopólios e da sua relação com o poder político. A vida veio a dar-nos razão. 

O caso BES/GES reforça a necessidade do controlo público do sistema financeiro

A intervenção do Partido nesta CPI foi determinante para denunciar as práticas do sistema financeiro e dos grupos monopolistas, o que aliás pode ser consultado no livro das Edições Avante! O dossier BES/GES, um retrato do capitalismo monopolista em Portugal, material de indispensável consulta quando agora assistimos ao arranque do julgamento de alguns dos seus responsáveis, dez anos após o colapso da instituição financeira. 
O caso da banca, em que ao BES se juntam os processos do BPN, BPP, BANIF e outros, mostram como estão entrelaçadas as privatizações, a corrupção, o poder dos grupos económico e o poder político, a política de direita. 
As práticas que levaram o BES ao seu colapso são internas e externas: o banco financiava as opções de todo o império Espírito Santo, o Banco de Portugal (BdP) fingia regular e supervisionar e os governos enlaçavam-se com o grupo. 
O Grupo e o Banco construíram uma miríade de off-shores, para todo o tipo de pagamentos a grandes accionistas. Recorde-se o exemplo do recurso ao BES Angola para desviar mais de 3 mil milhões de euros para financiar negócios e propriedades que nunca existiram. As grandes auditoras externas ocultavam – pelo menos desde 2001 – a situação de exposição grave que o banco tinha ao GES e tudo isso aconteceu e acontece no “cumprimento da lei”: é a lei que permite as transferências para off-shores; é a lei que dita que o BdP não tem auditoria própria e que os bancos são auditados por empresas  privadas; é a lei que permite que lucros gerados no País não paguem cá imposto. 
E foram as opções políticas que autorizaram o compromisso de milhares de milhões de euros com a resolução do banco e que determinaram que não seria nacionalizada a componente não financeira do Grupo, impedindo que se colmatassem as perdas públicas com o património do GES. E foi o governo PSD/CDS que determinou que o Estado pagaria a factura da corrupção dos grandes accionistas do BES que distribuíam créditos entre si, através do Fundo de Resolução. 
É importante frisar que hoje, como em 2014, ressurgem as ilusões sobre a natureza do fundo de resolução, seguindo Maria Luís Albuquerque, Passos e Portas. Hoje é claro para todos (incluindo para o Tribunal de Contas) que o FdR é uma entidade pública, financiada por dinheiro público. A ideia de que o FdR ressarcirá o Estado pelos empréstimos é falsa: em primeiro lugar, porque o dinheiro que alimenta o fundo é público, resultando de um imposto; em segundo lugar, porque nunca ultrapassou os 225 milhões de euros anuais (cobrados em 2023), o que pode significar que serão necessárias mais de quatro décadas para que o dinheiro seja totalmente devolvido. 
Este é o resultado das opções de PS, PSD e CDS e quanto ao regulador, supervisor e as grandes empresas de auditoria, estes não são polícias do sistema financeiro, antes os condutores do carro de fuga que, cúmplices, aguardam à porta disfarçado e tranquilizando os transeuntes. 
A realidade aí está a demonstrar que PS, PSD e seus sucedâneos pretendem continuar a farsa e a ocultação. As privatizações de que somos contemporâneos demonstram isso mesmo: esse compromisso dos governos com a grande burguesia nacional e transnacional ultrapassa qualquer medida de mero bom-senso e acautelamento do interesse público. 
Aqui chegados, o julgamento dos arguidos do caso BES não pode reduzir-se a uma espécie de expiação da culpa de um grupo circunscrito de malfeitores, antes tem de se constituir como um momento que ilustra as práticas e resultados das privatizações, da gestão privada da banca da farsa da supervisão, da subordinação do poder político ao poder económico, reafirmando a necessidade do controlo público do sistema financeiro.

Miguel Tiago
(Avante! 24.10.2024)     

Wednesday, October 23, 2024

Como é que se esquece alguém que se ama

Como é que se esquece alguém que se ama? Como é que se esquece alguém que nos faz falta e que nos custa mais lembrar que viver? Quando alguém se vai embora de repente como é que se faz para ficar? Quando alguém morre, quando alguém se separa - como é que se faz quando a pessoa de quem se precisa já lá não está?
As pessoas têm de morrer; os amores de acabar. As pessoas têm de partir, os sítios têm de ficar longe uns dos outros, os tempos têm de mudar Sim, mas como se faz? Como se esquece? Devagar. É preciso esquecer devagar. Se uma pessoa tenta esquecer-se de repente, a outra pode ficar-lhe para sempre. Podem pôr-se processos e acções de despejo a quem se tem no coração, fazer os maiores escarcéus, entrar nas maiores peixeiradas, mas não se podem despejar de repente. Elas não saem de lá. Estúpidas! É preciso aguentar. Já ninguém está para isso, mas é preciso aguentar. A primeira parte de qualquer cura é aceitar-se que se está doente. É preciso paciência. O pior é que vivemos tempos imediatos em que já ninguém aguenta nada. Ninguém aguenta a dor. De cabeça ou do coração. Ninguém aguenta estar triste. Ninguém aguenta estar sozinho. Tomam-se conselhos e comprimidos. Procuram-se escapes e alternativas. Mas a tristeza só há-de passar entristecendo-se. Não se pode esquecer alguém antes de terminar de lembrá-lo. Quem procura evitar o luto, prolonga-o no tempo e desonra-o na alma. A saudade é uma dor que pode passar depois de devidamente doída, devidamente honrada. É uma dor que é preciso aceitar, primeiro, aceitar. 

É preciso aceitar esta mágoa esta moinha, que nos despedaça o coração e que nos mói mesmo e que nos dá cabo do juízo. É preciso aceitar o amor e a morte, a separação e a tristeza, a falta de lógica, a falta de justiça, a falta de solução. Quantos problemas do mundo seriam menos pesados se tivessem apenas o peso que têm em si, isto é, se os livrássemos da carga que lhes damos, aceitando que não têm solução. 

Não adianta fugir com o rabo à seringa. Muitas vezes nem há seringa. Nem injecção. Nem remédio. Nem conhecimento certo da doença de que se padece. Muitas vezes só existe a agulha. 

Dizem-nos, para esquecer, para ocupar a cabeça, para trabalhar mais, para distrair a vista, para nos divertirmos mais, mas quanto mais conseguimos fugir, mais temos mais tarde de enfrentar. Fica tudo à nossa espera. Acumula-se-nos tudo na alma, fica tudo desarrumado. 

O esquecimento não tem arte. Os momentos de esquecimento, conseguidos com grande custo, com comprimidos e amigos e livros e copos, pagam-se depois em condoídas lembranças a dobrar. Para esquecer é preciso deixar correr o coração, de lembrança em lembrança, na esperança de ele se cansar. 

Miguel Esteves Cardoso, 
in 'Último Volume'

Tuesday, October 22, 2024

Das minhas memórias

 
Neste mesmo mês de Outubro, há 25 anos, fui pela primeira vez trabalhar nas autárquicas do distrito da Guarda. Aquele trabalho chato, mas muito gratificante, que é o de fazer listas com as candidaturas a 14 concelhos e 242 freguesias.
Hoje telefonei a uma Camarada (que quando sabia que eu ia ficar a trabalhar noite dentro, em todos os anos que lá trabalhei, me levava ao final da tarde pasteis de bacalhau) porque o filho fazia anos e queria dar-lhe os parabéns.
Acabei por falar com o aniversariante, que faz hoje 35 anos!!!! E não é que o jovem se mete comigo? Disse-me, a determinada altura da conversa, "pois é, quando eu te fui ajudar a primeira vez e te mostrei o trabalho disseste-me 'quem se mete a trabalhar com putos...', é que eu tinha agrafado as listas todas ao contrário..."
Rimos. O miúdo tinha 9 anos e queria ajudar. Agrafar papel não custa nada. Não sei que voltas ele deu às listas, depois foi só desagrafar e voltar a agrafar como a lei exige.
Ontem tinham-me perguntado o que me ligava à Guarda.
Para além de tudo o resto, é também esta cena, e outras, mais tarde, com 'camaradinhas' que hoje têm 18 ou 15 anos, e que também sempre queriam ajudar.
Está prometido, Daniel, um dia destes os km fazem-se pela A23.

Sunday, October 20, 2024

*

 
Podem as palavras um dia renascer? Pode o vento trazer de novo a ternura?
Pode a borboleta deixar ovos que implodem com o tempo e no final de todo o processo surgir a borboleta de asas azuis que se confunde com o céu?
Podes tu ainda voar no calor do meu abraço?

Thursday, October 17, 2024

Não posso adiar o amor



Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este abraço
que é uma arma de dois gumes
amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora intensa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração

António Ramos Rosa
(17.10.1924-23.9.2013)

Tuesday, October 15, 2024

Os olhos do poeta


O poeta tem olhos de água para reflectirem todas as cores do mundo,
e as formas e as proporções exactas, mesmo das coisas que os sábios desconhecem.
Em seu olhar estão as distâncias sem mistério que há entre as estrelas,
e estão as estrelas luzindo na penumbra dos bairros da miséria,
com as silhuetas escuras dos meninos vadios esguedelhados ao vento.
Em seu olhar estão as neves eternas dos Himalaias vencidos
e as rugas maceradas das mães que perderam os filhos na luta entre as pátrias
e o movimento ululante das cidades marítimas onde se falam todas as línguas da terra
e o gesto desolado dos homens que voltam ao lar com as mãos vazias e calejadas
e a luz do deserto incandescente e trémula, e os gestos dos polos, brancos, brancos,
e a sombra das pálpebras sobre o rosto das noivas que não noivaram
e os tesouros dos oceanos desvendados maravilhando com contos-de-fada à hora da infância
e os trapos negros das mulheres dos pescadores esvoaçando como bandeiras aflitas
e correndo pela costa de mãos jogadas pró mar amaldiçoando a tempestade:
- todas as cores, todas as formas do mundo se agitam e gritam nos olhos do poeta.
Do seu olhar, que é um farol erguido no alto de um promontório,
sai uma estrela voando nas trevas
tocando de esperança o coração dos homens de todas as latitudes.
E os dias claros, inundados de vida, perdem o brilho nos olhos do poeta
que escreve poemas de revolta com tinta de sol
na noite de angústia que pesa no mundo.

Manuel da Fonseca, “Rosa dos Ventos”