Monday, February 28, 2011

O limpa palavras


Limpo palavras.
Recolho-as à noite, por todo o lado:
a palavra bosque, a palavra casa, a palavra flor.
Trato delas durante o dia
enquanto sonho acordado.
A palavra solidão faz-me companhia.

Quase todas as palavras
precisam de ser limpas e acariciadas:
a palavra céu, a palavra nuvem, a palavra mar.
Algumas têm mesmo de ser lavadas,
é preciso raspar-lhes a sujidade dos dias
e do mau uso.
Muitas chegam doentes,
outras simplesmente gastas, estafadas,
dobradas pelo peso das coisas
que trazem às costas.

A palavra pedra pesa como uma pedra.
A palavra rosa espalha o perfume no ar.
A palavra árvore tem folhas, ramos altos.
Podes descansar à sombra dela.
A palavra gato espeta as unhas no tapete.
A palavra pássaro abre as asas para voar.
A palavra coração não pára de bater.
Ouve-se a palavra canção.
A palavra vento levanta os papéis no ar e
é preciso fechá-la na arrecadação.

No fim de tudo voltam os olhos para a luz
e vão para longe,
leves palavras voadoras
sem nada que as prenda à terra,
outra vez nascidas pela minha mão:
a palavra estrela, a palavra ilha, a palavra pão.

A palavra obrigado agradece-me.
As outras não.
A palavra adeus despede-se.
As outras já lá vão, belas palavras lisas
e lavadas como seixos do rio:
a palavra ciúme, a palavra raiva, a palavra frio.

Vão à procura de quem as queira dizer,
de mais palavras e de novos sentidos.
Basta estenderes a mão
para apanhares a palavra barco ou a palavra amor.

Limpo palavras.
A palavra búzio, a palavra lua, a palavra palavra.
Recolho-as à noite, trato delas durante o dia.
A palavra fogão cozinha o meu jantar.
A palavra brisa refresca-me.
A palavra solidão faz-me companhia.


Álvaro Magalhães

18 comments:

João P. said...

Maria:

Conhecia o texto noutros contextos.

Faz tanto sentido aqui.
Obrigado


João

Agulheta said...

Querida amiga. Obrigada pela partilha do texto magnífico e de palavras tão fortes,não conhecia e adorei ler.
Beijinho fica bem.

zmsantos said...

É lindo.

Rosa dos Ventos said...

Não conhecia!
Obrigada!

Abraço

Paula Barros said...

Maria, querida, ler algo assim, fica sempre uma vontade de ter escrito. O jogo com as palavras, e cuidar das palavras com este carinho e criatividade.

beijo

Fernando Samuel said...

A força das palavras...

Um beijo grande.

O Puma said...

Por vezes sós

mas nunca isolados

Bj

Fernando Santos (Chana) said...

Olá Maria, belo texto...Espectacular....
Cumprimentos

Nothingandall said...

Porque será que hoje a palavra amor me lembra facas?

mfc said...

E quem não gosta de palavras assim?!

Manuel Veiga said...

o poder da palavra poética - limpar as palavras gastas.

beijo, amiga

Luis Eme said...

a palavra chama a palavra e o poeta chama poemas...

beijinho Maria

Era uma vez um Girassol said...

Maria, não conhecia este poema e achei lindo!
Beijinho da flor

Anonymous said...

Este é um daqueles "textos" ou "poemas" que me dizem tanto...
onde me revejo.
As palavras são muito importantes, é preciso saber usá-las e não apenas dizê-las...
é urgente sentir o que se diz...
e eu sinto isso de tão poucas pessoas...

amei ler.
Obrigado Maria.
A_T

margusta said...

Lindo o poema Maria.
Obrigada por dares a conhecer.

Beijinhos e saudades.

Licínia Quitério said...

Gosto muito deste poema. Utilizo-o para exercícios de dicção e expressividade, na procura de palavras vivas.

Beijinho, Amiga.

svasconcelos said...

Lindíssimo, este poema, não conhecia. Um dia levo-o ali para o lado...:)
beijo,

AnaMar (pseudónimo) said...

Palvras com verbo.
Belas. Dum autor que desconhecia (entre tantos:-)

Quanto ao desligar do cérebro...ele desliga-se sem eu querer:-(
Beijos & saudades.