Friday, February 24, 2023

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A menina apareceu grávida de um gavião.
Veio falou para a mãe: O gavião me desmoçou.
A mãe disse: Você vai parir uma árvore para
a gente comer goiaba nela.
E comeram goiaba.
Naquele tempo de dantes não havia limites
para ser.
Se a gente falasse a partir de um córrego
a gente pegava murmúrios.
Não havia comportamento de estar.
Urubus conversavam auroras.
Pessoas viraram árvore.
pedras viraram rouxinóis.
Depois veio a ordem das coisas e as pedras
têm que rolar seu destino de pedra para o resto
dos tempos.
Só as palavras não foram castigadas com
a ordem natural das coisas.
As palavras continuam com seus deslimites.
Manoel de Barros

Monday, February 13, 2023

- sem título -

Apetece-me gritar e não me sai nenhum som da garganta. Ouvir nas notícias os relatos (alguns, e em excertos) dos abusos sexuais na igreja católica provoca-me profunda náusea. Imagino a dor dos membros da comissão que trabalhou neste levantamento cujo relatório foi apresentado hoje. Não imagino a dor das crianças. É uma marca que os acompanhará para o resto das suas vidas.

Apetece-me escrever e não me saem mais palavras. Tudo o que eu pudesse escrever não traduziria o que sinto. Eu sei que os abusos de menores têm, maioritariamente, origem dentro da família, mas estes relatos a 'cru' parece que aumentam ainda mais a monstruosidade dos actos. Hoje não estou. Hoje sou apenas sombra. E sinto-me a explodir.

Saturday, February 11, 2023

As palavras

As palavras não me chegam à boca nem às mãos não as consigo dizer nem escrever e no entanto estão todas cá dentro sinto-as num turbilhão no estômago acotovelam-se gritam umas com as outras mas recusam-se a sair As palavras que tenho para vos dar são doces e amargas são fortes e fracas são paz e guerra mas não saem continuam cá dentro ouço-as rir parece que brincam comigo ou decidiram esperar que me canse e as vomite mas não As palavras que quero falar são azuis e brancas e vermelhas e verdes têm todas as cores de todas as flores às vezes penso que as palavras que tenho cá dentro são flores mas não sou terra apenas as sinto e não são raízes de mim As palavras que vou libertando aos poucos voam-me e não as seguro porque são pássaros de asas azuis pedaços meus e voam tão alto asas feitas de algodão e maresia de espuma e areia de fogo e vento de ar e de água é isso as minhas palavras asas são feitas de água. Onde desaguas o teu rio. Onde eu me desfaço. No mar de todos os afectos.

Wednesday, February 08, 2023

Discurso do Filho da Puta

I
O pequeno filho da puta
é sempre
um pequeno filho da puta;
mas não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não tenha
a sua própria
grandeza,
diz o pequeno filho da puta.
no entanto, há
filhos-da-puta que nascem
grandes e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o pequeno filho da puta.
de resto,
os filhos da puta
não se medem aos
palmos,diz ainda
o pequeno filho da puta.
o pequeno
filho da puta
tem uma pequena
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o pequeno
filho da puta.
no entanto,
o pequeno filho da puta
tem orgulho
em ser
o pequeno filho da puta.
todos os grandes
filhos da puta
são reproduções em
ponto grande
do pequeno
filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
dentro do
pequeno filho da puta
estão em ideia
todos os grandes filhos da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
tudo o que é mau
para o pequeno
é mau
para o grande filho da puta,
diz o pequeno filho da puta.
o pequeno filho da puta
foi concebido
pelo pequeno senhor
à sua imagem
e semelhança,
diz o pequeno filho da puta.
é o pequeno filho da puta
que dá ao grande
tudo aquilo de que
ele precisa
para ser o grande filho da puta,
diz o
pequeno filho da puta.
de resto,
o pequeno filho da puta vê
com bons olhos
o engrandecimento
do grande filho da puta:
o pequeno filho da puta
o pequeno senhor
Sujeito Serviçal
Simples Sobejo
ou seja,
o pequeno filho da puta.

II
o grande filho da puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho da puta,
e não há filho da puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.
no entanto,
há filhos da puta
que já nascem grandes
e filhos da puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho da puta.
de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos
palmos, diz ainda
o grande filho-da-puta.
o grande filho da puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho da puta.
por isso
o grande filho da puta
tem orgulho em ser
o grande filho da puta.
todos
os pequenos filhos da puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho da puta,
diz o grande filho da puta.
dentro do
grande filho da puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos da puta,
diz o
grande filho da puta.
tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos da puta,
diz
o grande filho da puta.
o grande filho da puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho da puta.
é o grande filho da puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa para ser
o pequeno filho da puta,
diz o
grande filho da puta.
de resto,
o grande filho da puta
vê com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho da puta:
o grande filho da puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja,
o grande filho da puta.
Alberto Pimenta

Wednesday, February 01, 2023

As Sete Virtudes Filosofais ou a Alquimia dos Poetas


1. O ORGULHO
Por vezes no poema
desperdiçamos tudo
e fica apenas
uma terrível faca de silêncio
um muro
uma sebe de sede que defende
a fome de ódio puro.
2. A AVAREZA
A palavra vã guardada
A esmola aliterante.
Eis a miséria doirada
da poesia altissonante.
3. A LUXÚRIA
Nós amamos a carne das palavras
sua humana e pastosa consistência
seu prepúcio sonoro sua erecta presença
Com elas violentamos
o cerne do silêncio.
4. A IRA
Uma rosa de cólera
o poema
Uma antena de raiva.
Uma espoleta
na serena gaveta do poeta.
5. A GULA
Comemos vegetais e animais
Bebemos vinho.
Respiramos fundo.
Somos normais. Apenas
devoramos o mundo.
6. A INVEJA
Não sermos nós a voz
o tacto
o texto.
Darmos cinco sentidos
Para termos o sexto.
7. A PREGUIÇA
Este
lento
talento
de vazarmos tristeza.

José Carlos Ary dos Santos
em "Obra Poética"