Sunday, May 31, 2020

Carpe Diem

 
Aproveita o dia,
Não deixes que termine sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz, sem teres alimentado teus sonhos.

Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue o direito de expressar-te, que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia de fazer de tua vida algo extraordinário.

Não deixes de crer que as palavras e as poesias sim podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar, nossa essência continuará intacta.

Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina, nos converte em protagonistas de nossa própria história.

Ainda que o vento sopre contra, a poderosa obra continua, tu podes trocar uma estrofe.

Não deixes nunca de sonhar, porque só nos sonhos pode ser livre o homem.

Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso. Não te resignes, e nem fujas.
Valoriza a beleza das coisas simples, se pode fazer poesia bela, sobre as pequenas coisas.

Não atraiçoes tuas crenças.

Todos necessitamos de aceitação, mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.

Desfruta o pânico que provoca ter a vida toda a diante.
Procura vivê-la intensamente sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro, e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprende com quem pode ensinar-te as experiências daqueles que nos precederam.

Não permitas que a vida se passe sem teres vivido…

Walt Whitman

Monday, May 25, 2020

Saudade

A saudade é uma segunda pele que vestimos. Que nos asfixia, por vezes. Que nos faz em rio, outras.
A saudade é um aperto que nos dói no coração. Que corre nas nossas veias. Que vive dentro de nós, sempre.
A saudade é um mar imenso que engulo para te tragar. Que eu devolvo em cada maré de ir, para te recolher na maré de vir.
E que vive em mim, como um abraço. Para sempre.

Tuesday, May 19, 2020

CATARINA EUFÉMIA FOI ASSASSINADA EM 19 DE MAIO DE 1954


Na fome verde das searas roxas
passava sorrindo Catarina.
Na fome verde das searas roxas
aí a papoila cresce na campina.


Na fome roxa das searas negras
que levas, Catarina, em tua fronte?
Na fome roxa das searas negras
aí devoravam corvos o horizonte!

Na fome negra das searas rubras
ai da papoila, ai da Catarina!
Na fome negra das searas rubras
trinta balas gritaram na campina.

Trinta balas
te mataram a fome, Catarina.

Papiniano Carlos
Em “Caminhos Serenos”, Poemas

Sunday, May 17, 2020

Janita Salomé

17 maio 2007

Galeria da Música Portuguesa: Janita Salomé



João Eduardo Salomé Vieira nasceu na vila alentejana de Redondo, a 17 de Maio de 1947. Filho de José Vieira, ourives, relojoeiro e marceneiro, e de Sofia Salomé, doméstica, Janita, como ficará afectuosamente conhecido, é o mais novo de cinco irmãos todos eles herdeiros de uma forte tradição musical familiar. A mãe, excelente cantora, e o pai, que tocava bandolim e cantava o fado de Coimbra, incutiram nos filhos o gosto pela música, a tal ponto que todos eles passariam, amadora ou profissionalmente, por carreiras musicais (Vitorino será o que alcançará maior notoriedade).
Apesar de cantar desde os 9 anos de idade, a veia artística de Janita só é verdadeiramente assumida aos 16 anos ao ingressar, como baterista e vocalista, no conjunto Planície, um grupo de baile constituído pelos seus dois irmãos mais velhos Zezinho e Baíco (Manuel), e ainda Evaristo Carrajeta, Abílio Delca, Magalhães e Manuel Monarca.
Em 1965, aos 18 anos de idade, Janita ruma a Lisboa para trabalhar como funcionário judicial no Tribunal da Boa Hora e, passados dois anos, é recrutado para o serviço militar sendo mobilizado para a guerra colonial em Moçambique. «Na cidade de Tete havia serviços recreativos do exército que promoviam espectáculos e procuravam entre os militares quem mostrasse as suas artes, e eu participei num espectáculo desses. Cantei um poema de Manuel Alegre, "As Mãos", e logo a seguir mandaram-me prender». Mas acabou por não ficar detido: «Quem me safou foi um cabo enfermeiro que conhecia bem o comandante da região operacional...».
No regresso de África, em 1972, fixa-se no Redondo, para trabalhar como ajudante de notário e passa a integrar os Vagabundos do Ritmo, um grupo de baile que se dedica a tocar versões de êxitos românticos da altura e de nomes estrangeiros como Bee Gees e Beatles. Ainda sem um caminho musical definido, será depois do 25 de Abril de 1974 que Janita encontrará o seu rumo ao encontrar-se José Afonso que o inspira a investigar e a trabalhar a tradição musical popular. Durante dois anos participa como acompanhante do autor de "Grândola, Vila Morena" em numerosos espectáculos, comícios e sessões de esclarecimento. Em 1976, participa como cantador e alto em "Semear Salsa ao Reguinho", o primeiro álbum do irmão Vitorino com quem continuará sempre a colaborar quer em discos quer em actuações ao vivo.
Em 1977, funda com Vitorino e os outros irmãos um grupo que se dedica a perpetuar a tradição do cante alentejano, os Cantadores de Redondo, cuja actividade se mantém até aos dias de hoje. Gravam o disco etnográfico "O Cante da Terra", editado em 1978. Em 1980, dá-se nova revolução na vida de Janita: abandona o emprego na função pública e profissionaliza-se como músico. Motivo: um convite de José Afonso para integrar o grupo que o acompanhava em palco, substituindo Henri Tabot nas guitarras (Júlio Pereira e Guilherme Inês são os outros músicos de Zeca). No mesmo ano, grava o seu primeiro disco em nome próprio, "Melro", para a Orfeu, com a supervisão técnica de Moreno Pinto e Jorge Barata. Incluindo um tema da sua autoria ("Alvorada em Abril") e outro de Vitorino ("Homens do Largo"), o disco é composto de duas partes distintas: uma dedicada à música de matriz alentejana e outra, numa inesperada opção, a fados de Coimbra (de António Menano, Francisco Menano e António de Sousa), cujo gosto lhe fora incutido pelo pai na juventude. Realce também para o tema "Poema para Florbela", em que Janita musica e canta um poema de Manuel da Fonseca, também ele um alentejano de gema. Com direcção musical de José Afonso, Vitorino e Janita Salomé, o álbum tem a participação instrumental de Pedro Caldeira Cabral (guitarra portuguesa, campaniça e viola), Sílvio Pleno (clarinetes), Luís Caldeira Cabral (flautas), Vitorino, Carlos e Janita Salomé (adufes e trancanholas). Nos fados de Coimbra, os acompanhadores foram Octávio Sérgio (guitarra), Durval Moreirinhas e Fernando Alvim (violas). Lançado em plena explosão do rock português, o álbum passa relativamente despercebido: Janita ainda é olhado como «o irmão do Vitorino».
Faz digressões no estrangeiro com José Afonso, Pedro Caldeira Cabral e Vitorino, e participa, em 1981, nos álbuns "Cavaquinho" e "Fados de Coimbra e Outras Canções", respectivamente de Júlio Pereira e José Afonso. E será justamente nesse ano, em Paris, quando acompanhava José Afonso, que tudo se torna claro. Janita assiste, deslumbrado, a um concerto de um grupo de Marrocos e aí nasce a sua paixão pela música árabe. Encontra finalmente a estrela que norteará a sua música: a procura dos laços que unem a tradição popular alentejana com a música tradicional magrebina, numa meritória tentativa de trazer à tona os vestígios deixados na nossa música pelos Árabes durante os séculos em que permaneceram na Península Ibérica, mais concretamente no território que hoje constitui o sul de Portugal. Em Fevereiro de 1982, faz a primeira viagem ao Norte de Africa, a que se seguirão outras. Janita conta: «Em Marrocos descobri o ancestral do Alentejo, de alguma forma, na fisionomia daquela gente, na maneira de estar, na gastronomia e deixei-me envolver e trouxe comigo tudo isso, toda essa experiência – aprendi inclusive a tocar todos aqueles instrumentos, aprendi muitas técnicas com músicos, camponeses magrebinos». E assim nasce o LP "A Cantar ao Sol", gravado por António Pinheiro da Silva para a Valentim de Carvalho, nos Estúdios de Paço d’Arcos. Lançado em Dezembro de 1983, este segundo álbum de Janita tem uma repercussão bem superior à do disco de 1980. Com produção de João Gil (na altura, músico do grupo Trovante) e composições do próprio Janita Salomé, nos temas de autor, o trabalho conta com a participação instrumental de Júlio Pereira (violas acústicas, braguesas, ovation), Pedro Caldeira Cabral (alaúde, ghaita), Sérgio Mestre (flauta), José Manuel Marreiros (piano), Carlos Zíngaro (violino) e Janita Salomé (percussões). Era desejo de Janita associar ao trabalho músicos de Casablanca, que conhecera nas suas viagens, mas devido a questões orçamentais isso acabou por não se concretizar. Além dos temas tradicionais ("Extravagante", "Pavão", "S. João" e "Saias") fazem parte do alinhamento: "Tardes de Casablanca" (poema de Hipólito Clemente), "Cantar ao Sol" (poema de João Manuel Pinheiro), "Não É Fácil o Amor" (poema de Luís Andrade Pignatelli à vide em baixo), "Quando Chegou a Lua Cheia" (poema de Janita Salomé), e "Na Palestina" (instrumental com vocalizos). A apresentação do trabalho dá-se num espectáculo realizado na Aula Magna que esgota a lotação. O álbum é considerado um dos melhores trabalhos da música popular portuguesa do ano e vale a Janita Salomé três prémios: Se7e de Ouro (atribuído pelo Jornal Se7e) na categoria de música popular/tradicional e Prémio Revelação das revistas "Música & Som" e "Nova Gente".
Em 1985, e dando continuidade à exploração das raízes árabes, Janita grava o álbum "Lavrar em Teu Peito", para EMI-Valentim de Carvalho, sob a supervisão técnica de António Pinheiro da Silva. Novamente com produção de João Gil e composições de Janita Salomé, o disco conta ainda com as participações de José Peixoto (arranjos, viola, alaúde, caixa de arroz), Júlio Pereira (violas), Paulo Curado (flauta), Pedro Caldeira Cabral (charamela, lira e flauta indiana, viola campaniça), Rui Júnior (maraca e prato), Fernando Júdice (contrabaixo), José Manuel Marreiros (piano), e ainda os irmãos Vitorino e Carlos Salomé. Janita, por seu lado, toca diversos instrumentos árabes de percussão – bendir, taarija e darabuka. Os poemas são de Luís Andrade Pignatelli ("Como se fosses de linho doce...", "O que ficou no ar parado..."), Hipólito Clemente ("Árvores no Deserto"), José Bebiano ("O Poder"), António José Forte ("Poema") e Al-Mu’tamid ("A uma escrava que lhe ocultou o Sol"), insigne poeta do séc. XI, nascido em Beja, e considerado um dos maiores vultos culturais do Al-Andaluz. O poema de Al-Mu’tamid foi retirado do livro "Portugal na Espanha Árabe", do historiador António Borges Coelho, uma importante fonte de inspiração do cantor. O álbum integra também uma versão do tema "Mulher da Erva", de José Afonso, e ainda de "E Alegre se Fez Triste" (com poema de Manuel Alegre), primeiramente cantado por Adriano Correia de oliveira, prematuramente desaparecido em 1982. Do alinhamento fazem ainda parte dois temas populares alentejanos ("Moda da Lavoura" e "Saias") e "Conta-me contos, ama…", um belíssimo tema a capella sobre poema de Fernando Pessoa, composto para a peça "O Esfinge Gorda", de Mário Viegas. Curiosamente, o grande actor também participa no álbum recitando o poema "O Poder", de José Bebiano. Em entrevista a Fernando Sobral (Diário de Notícias, 15.10.1985), Janita chama a atenção para a importância do legado árabe na nossa tradição oral: «Há toda uma cultura de transmissão oral que vai ficando e que chega até nós. Na fúria da reconquista cristã tudo o que pertencesse aos Mouros era destruído e queimado. Eram os Infiéis. Mas alguma coisa ficou. Para além da cultura registada, fabricada, havia uma cultura anónima, popular, que foi ficando. E os árabes legaram-nos uma cultura muito rica que não tem sido reconhecida, mesmo ao nível do ensino. Espero que este meu álbum, "Lavrar em Teu Peito", contribua um pouco para que esta situação se inverta.»
Em 1985, Janita é um dos principais colaboradores, como cantor e instrumentista (darbuka e adufe), na gravação do álbum "Galinhas do Mato", de José Afonso, que devido à doença já não conseguiu cantar todos os temas. "Moda do Entrudo", "Tarkovsky" e "Alegria da Criação" são os temas a que Janita empresta a sua inconfundível voz.
Em 1987, grava "Olho de Fogo", o seu quarto álbum a solo, editado pela Transmédia. Com produção e direcção musical de José Mário Branco e a colaboração de José Peixoto e João Lucas nos arranjos, Janita canta poemas da sua autoria ("Azul Branco", "Quando a luz fechou os olhos"), de Luís Andrade Pignatelli ("Os Amantes", "Cantata"), José Bebiano ("Poema") e continua a resgatar a poesia do Al-Andaluz: Ibn Sara ("Estrela Cadente", "O Zéfiro e a Chuva") e Al-Mu’tamid ("Ao Passar Junto da Vide"). Integram também o alinhamento duas versões de temas tradicionais ("Senhora do Almortão" e "Saias do Freixo em Gibraltar"). Entre os instrumentistas, além de Janita Salomé (bendir, darbuka, adufe) e José Mário Branco (harpa sequenciada, sintetizador, timbalão) contam-se João Lucas (piano, sintetizadores), José Peixoto (guitarra acústica, baixo, harpa sequenciada, piano-marimba), Irene Lima (violoncelo), Carlos Zíngaro (violino), Fernando Flores (contrabaixo), António Serafim (oboé), Paulo Curado (flauta, sax soprano e tenor), Tomás Pimentel (trompete, flugelhorn), José Martins (percussões), entre outros. Nas vozes colaboraram os irmãos Vitorino e Carlos Salomé e as filhas de Janita, Marta e Catarina Salomé. De assinalar também o arranjo da compositora Constança Capdeville em "Senhora do Almortão", tema tradicional da Beira Baixa, a região de Portugal que, segundo os etnomusicólogos, melhor conseguiu conservar a influência árabe (adufes, por exemplo). A apresentação pública do disco terá lugar na Aula Magna (Lisboa) e no Teatro Carlos Alberto (Porto). O álbum vale ao cantor o Troféu Nova Gente para o melhor intérprete masculino de música ligeira. No tocante a actuações no estrangeiro, realce para a participação no Printemps de Bourges (França), numa noite ibérica, e ainda quatro concertos em Madrid.
A ruptura com a Valentim de Carvalho, por iniciativa do artista, tem como consequência um interregno de quatro anos na edição de discos. Durante esse período, de 1987 a 91, e embora continue a dar concertos a solo ou ao lado de Vitorino, Janita explorará uma nova modalidade artística, o teatro, quer compondo música para algumas produções, quer surgindo inclusive como actor do grupo A Barraca, desempenhando o papel do cigano Miguel, na peça "Margarida do Monte", de Marcelino Mesquita. Para esta encenação de Hélder da Costa, Janita musica também dois temas, "Cante Cigano" e "Margarida no Convento" (posteriormente incluídos no álbum "Lua Extravagante"). Uma experiência que, em boa verdade, revisitou depois de ter deixado a sua marca na banda sonora do filme "A Moura Encantada" (1985), com realização de Manuel Costa e Silva e argumento de António Borges Coelho, bem como no documentário "O Pão e o Vinho" (1981), realizado por Ricardo Costa, em que participou como actor.
Em 1991, Janita regressa aos estúdios para gravar "A Cantar à Lua", para a Edisom, um álbum exclusivamente dedicado ao fado de Coimbra. Após a exploração das pontes com a cultura árabe, um mergulho na memória pessoal através da canção coimbrã dos anos 20 e 30, que aprendera com o pai. Acompanhado nas guitarras por António Brojo e António Portugal, dois guitarristas históricos de Coimbra, e nas violas por Luís Filipe Ferreira e Humberto Matias, Janita Salomé interpreta clássicos como "Crucificado" (Fortunato Roma da Fonseca / Edmundo de Bettencourt), "Canção do Alentejo" (Popular / Edmundo de Bettencourt), "Fado dos Passarinhos" (Francisco Menano / António Menano), "Fado de Anto" (António Nobre / Francisco Menano), "Samaritana" (Álvaro Leal / Edmundo de Bettencourt) e "Fado das Fogueiras" (Augusto Gil / Francisco Menano).
No mesmo ano, sai o álbum "Lua Extravagante", onde Janita surge ao lado de Vitorino, Carlos Salomé e Filipa Pais, num projecto vocacionado para o cruzamento da música tradicional portuguesa com a urbana. Além dos temas "Cante Cigano" e "Margarida no Convento", inicialmente compostos para a peça "Margarida do Monte", Janita contribui para o disco com um inédito, "A Bela do Castelo Sem Portas", escrevendo a letra e a música. O grupo dará um concerto em Lovaina, Bélgica, que será transmitido pela rádio pública daquele país. Sobre este belo disco escreveu Fernando Magalhães (Público, 11.12.1991): «Música lunar. Da noite e das marés da voz, Vitorino, Janita e Carlos Salomé, e Filipa Pais cantam o lado nostálgico do ser português. É um disco de canto sofrido, de doridas harmonias. É também a prova de que é possível, em Portugal, fazer discos que voltam as costas à moda e ao efémero. Em "Lua Extravagante" não há canções que pisquem o olho à salada radiofónica. Há somente, e não é pouco, a dignidade do canto e da música vivida por dentro. A transmissão de experiências que dizem da maneira como costumávamos ser. Cruzam-se vivências da cidade (Lisboa, sempre presente, até nos antigos azulejos da cervejaria Trindade, que a capa, belíssima retrata) e do campo. As palavras do povo encontram-se com as do poeta Pessoa, no fado e na distância. Em frente, o escuro da noite e a ilusão do mar.»
Em 1992, Janita participa num espectáculo na exposição mundial de Sevilha, a convite da comissão portuguesa, mas na sequência de sugestão dos organizadores espanhóis.
Em 1994, com o álbum "Raiano" (Farol Música), agora sob a produção de Fernando Júdice (viola baixo dos Trovante), Janita Salomé retoma o percurso de cruzamento das tradições populares portuguesas e andaluzas, tendo como pano de fundo a marcada influência árabe no sul peninsular. «As nossas raízes passam muito pela presença dos povos na Península Ibérica. Eles deixaram muitas marcas da sua cultura e eu, neste percurso, deixei-me fascinar pela história e tenho continuado a procurar as nossas origens através da cultura árabe». Exceptuando o tema tradicional "Extravagante", todas as músicas foram compostas por Janita Salomé que também assina a letra do tema "Do Outro Lado da Fronteira", nome que faz inteiramente jus ao título do disco. Nos restantes temas do alinhamento, Janita canta a poesia de Natália Correia ("Credo"), Carlos Mota de Oliveira ("Poema oferecido a meus amigos"), Herberto Hélder ("Ninguém tem mais peso que o seu canto"), Manuel Alegre ("Tão Pouco e Tanto", "Ciganos", "Utopia") e Manuel da Fonseca ("Poente"). Com a colaboração de Mário Delgado nos arranjos, no elenco de instrumentistas contam-se o próprio Janita Salomé (bendir, darabuka, taarija), Dudas (guitarra de 12 cordas, guitarra clássica, alaúde), Mário Delgado (guitarra de 12 cordas, guitarra clássica, guitarra eléctrica), José Peixoto (guitarra clássica), Paulo Jorge Santos (guitarra portuguesa), João Falcato (piano, sintetizador), Luís Branco (violino), Carlos Barreto (contrabaixo), Filipe Valentim (teclados), Paulo Jorge Ferreira (baixo eléctrico), Vasco Gil (acordeão, sintetizador), Filipa Pais (voz), Paulo Curado (flautas, saxofone soprano), Alexandre Frazão (bateria), José Salgueiro (percussões) e Carlos Guerreiro (ponteiras). Este disco valerá a Janita Salomé o Prémio Blitz 94 para Melhor Voz Masculina.
Em 1996, Janita junta a sua voz às de Pedro Barroso e Manuel Freire no tema "Cantos de Oxalá", incluído no álbum "Cantos d’Oxalá", de Pedro Barroso.
Em 1997, participa no duplo álbum "Voz & Guitarra" (Farol Música), com os temas "Os Homens do Largo" e "Não É Fácil o Amor", acompanhado à guitarra clássica, respectivamente por Pedro Jóia e Mário Delgado. Participa também no álbum de Miguel Medina, "Três Estórias à Lareira" (Farol Música, 1997), cantando dois temas: "Tema do Marinheiro" e "Tema de Fernão de Magalhães".
No ano seguinte, Janita é um dos convidados especiais do grupo Frei Fado d’El Rei, na gravação do álbum "Encanto da Lua": toca bendir e faz os vocalizos do tema "Perdido em Miragem".
Janita Salomé que cumpriu o serviço militar em Moçambique, é um dos participantes no disco "Canções Proibidas: o Cancioneiro do Niassa" (EMI-VC, 1999), com as canções de campo da guerra colonial, projecto idealizado por João Maria Pinto e onde pontificam também Rui Veloso, Carlos do Carmo e Paulo de Carvalho, entre outros. Janita dá voz a dois temas: "O Fado do Miliciano" e "Erva lá na Picada", este último em parceria com João Maria Pinto. Integra também o projecto colectivo "Músicas de Sol e Lua", ao lado de Sérgio Godinho, Vitorino, Filipa Pais e Rão Kyao, cuja apresentado pública tem lugar em Bona, no Festival da Lusofonia, a 11 de Julho de 1999. Também na Alemanha, Janita integra, juntamente com Vitorino, o espectáculo de coros alentejanos que inaugura a Exposição Mundial de Hanôver, em 2000.
No mesmo ano, e ao fim de seis anos sem lançar discos, Janita regressa com o álbum colectivo "Vozes do Sul", um trabalho de celebração do cante alentejano, nas suas diferentes formas, inteiramente composto por modas tradicionais tais como "Ao Romper da Bela Aurora", "Na Rama do Alecrim", "Menina Florentina", "Cavaleiro Real", "Eu Hei-de Amar uma Pedra" e "Meu Alentejo Querido". Concebido e produzido por Janita Salomé, o disco conta com as colaborações de grupos corais e etnográficos como Grupo da Casa do Povo de Serpa, Cantadores de Redondo, Os Camponeses de Pias e As Camponesas de Castro Verde. Participam também o tocador de viola campaniça Manuel Bento, Bárbara Lagido, Catarina e Marta Salomé (filhas de Janita), Patrícia Salomé (sobrinha), Filipa Pais e Vitorino, e ainda Carlos Guerreiro (sanfona), Jens Thomas (piano), Mário Delgado (guitarra acústica, viola), Carlos Bica (contrabaixo) e músicos dos Corvos, entre outros. O disco estava pronto desde 1998 mas só saiu em 2000 porque não foi fácil arranjar editora. A edição foi da Capella, uma etiqueta ligada aos estúdios Audiopro. O álbum é distinguido, no ano seguinte, com o Prémio José Afonso, atribuído ao melhor álbum de música de inspiração popular portuguesa, o que também serve para mostrar que a maioria das editoras em Portugal estão interessadas em tudo, menos em apostar na música de qualidade.
Em 2001, Janita participa no disco "Canções de Embalar" (MVM Records), organizado por Nuno Rodrigues, onde interpreta o tema "Matita" em parceria com Sara Tavares; e faz os vocalizos do tema "Mouro Amor", para o álbum "Feito à Mão", do brasileiro Rodrigo Lessa. Dois anos depois, e a convite de Sebastião Antunes, do grupo Quadrilha, participará também no tema "Mértola", incluído no CD "A Cor da Vontade" (Vachier & Associados, 2003).
Em Maio de 2003, Janita regressa finalmente aos discos em nome próprio, com um álbum soberbo intitulado "Tão Pouco e Tanto", editado pela Capella, onde inclui seis regravações ("Tardes de Casablanca", "A uma escrava que lhe ocultou o Sol", "Senhora do Almortão", "Cante Cigano", "O Zéfiro e a Chuva" e "Não É Fácil o Amor") e cinco temas inéditos. São eles: "Paisagem com Homem" (poema de Manuel Alegre), "União Europeia (Adeus cal)" (poema de Carlos Mota de Oliveira), "Cerejeira das Cerejas Pretas Miúdas" (poema de Carlos Mota de Oliveira), "Fala do Amor Alentejano" (poema de Hélia Correia) e "Sinal de Ti" (poema de Sophia de Mello Breyner Andresen). Todas as composições são da autoria de Janita Salomé e na prestação instrumental contam-se o próprio Janita Salomé (bendir, daadô, taarija), Pedro Jóia (guitarra acústica, alaúde), José Peixoto (guitarra acústica, guitarra clássica portuguesa), Mário Delgado (guitarra acústica), Ricardo Rocha (guitarra portuguesa), Paulo Jorge Ferreira (baixo eléctrico), Paulo Curado (flautas, saxofone soprano), Denys Stetsenko (violino), Lúcio Studer Ferreira (viola d’arco), Nelson Ferreira (violoncelo), João Luís Lobo e Vicky (percussões), entre outros. Nota ainda para a participação especial de José Mário Branco, no arranjo do tema "O Zéfiro e a Chuva", e de Dulce Pontes que faz dueto com Janita no tema "Senhora do Almortão". Das muitas versões que já se fizeram deste conhecido tema tradicional, incluindo as de José Afonso, esta é provavelmente a mais bem conseguida. Aliás, o disco é, no seu conjunto, uma verdadeira obra-prima, uma referência obrigatória da música portuguesa. Efectivamente, trata-se de um trabalho que, com maior depuração e aprimoramento, retoma o cruzamento das linguagens meridionais presentes nos seus discos mais emblemáticos e que estava suspenso desde o álbum "Raiano". «Fascina-me a história e a cultura mediterrânica, o cruzar e o sobrepor de civilizações, a riqueza cultural que se acumulou neste espaço singular, a maneira de ser e de estar dos povos mediterrânicos, que se expressa desde a música à gastronomia e ao vinho. Mantenho uma forte ligação ao cantar cigano, ao cante alentejano, ao flamenco, de certa forma também ao fado. Acredito que há um fio condutor que une todas essas formas de cantar e de sentir a música. É esse universo que me fascina e que julgo estar reproduzido neste trabalho.» (Diário de Notícias, 21.06.2003).
O CD é altamente elogiado pela crítica especializada e entra na lista dos melhores discos do ano. Em Março de 2004, Janita Salomé apresenta-o no Grande Auditório do Centro Cultural de Belém: uma noite inesquecível com convidados especiais como Jorge Palma, Vitorino e Pedro Jóia.
No âmbito das comemorações dos 30 anos da Revolução dos Cravos, em Abril de 2004, a EMI-VC lança o álbum "Utopia", integrando canções de José Afonso, cantadas por Janita Salomé e Vitorino, em dois concertos no Centro Cultural de Belém, dados seis anos antes, em Fevereiro de 1998. Neste tributo a Zeca Afonso, a par de temas mais conhecidos como "Canção de Embalar", "A Morte saiu à Rua" ou "Canto Moço" foram também incluídos, e propositadamente, temas menos divulgados como "Os Eunucos", "Carta a Miguel Djéjé" ou "Rio Largo de Profundis".
Em 2006, Janita Salomé é um dos convidados especiais da Brigada Victor Jara para participar no álbum "Ceia Louca": canta o "Romance de Dona Mariana", um dos mais belos romances tradicionais do Algarve.
Em Março de 2007, sai o CD "Vinho dos Amantes" (ed. Som Livre), novo trabalho de originais que concretiza uma ideia conceptual: celebrar o néctar dos deuses tendo como ponto de partida a grande poesia portuguesa e mundial. Janita explica esta sua opção temática: «A ode ao vinho tem sentido num país vinícola como Portugal, tendo nós o vinho com uma presença tão forte na nossa cultura. Não sou pioneiro, provavelmente outros músicos e outros compositores já o fizeram. Mas de outra maneira, porque as formas podem ser tão variadas como diversa é a poesia e a literatura sobre o vinho». Mas adverte: «A embriaguez que se exalta é a da amizade, do amor e dos prazeres da vida, mas com conhecimento e inteligência».
O universo musical de "Vinho dos amantes" extravasa os ambientes alentejanos e arábico-andaluzes: «Afastei-me, um pouco, da matriz mediterrânea. Mas resolvi percorrer outros caminhos, outras experimentações. Considero que é uma sonoridade mais explicitamente portuguesa. Por outro lado, procurei fazer melodias mais acessíveis, com uma estrutura de canção. Há algumas sonoridades que até a mim me surpreenderam, como o tema de abertura, "Maçãs de Zagora", com um ambiente de blues [arranjo de Mário Delgado]. Gosto imenso de blues e até considero que é do melhor que a América tem...». E acrescenta: «Experimentei também uma sonoridade pop, mas não rock, que está bem patente na parte final do último tema ["Caminho III"]. Foram muitos anos a ouvir os discos dos Pink Floyd.» (Jornal de Notícias, 13.03.2007).
Além de um poema da sua autoria ("Escadinhas do Alto"), Janita canta a poesia de Carlos Mota de Oliveira ("Maçãs de Zagora"), do chinês Li Bai ("A Estrela do Vinho"), de Charles Baudelaire ("Embriagai-vos", "O Vinho dos Amantes"), Anacreonte ("Fragmentos"), Hélia Correia ("No Banquete", "Ode ao Vinho"), António Aleixo, Francisco Hélder Pimenta e populares anónimos ("Quadras"), José Jorge Letria ("O Mapa Errante") e Camilo Pessanha ("Caminho III"). Todas as composições são da autoria de Janita Salomé que também toca guitarra clássica e percussões. No elenco de instrumentistas contam-se Mário Delgado (guitarra de 12 cordas, guitarra eléctrica, kalimba), Ni Ferreirinhas (guitarra clássica), Ruben Alves (piano, acordeão), João Paulo Esteves da Silva (piano), Ricardo Dias (guitarra portuguesa), Fernando Abreu (guitarra clássica), Amadeu Magalhães (viola braguesa), Luís Cunha (violino), Daniel Salomé (clarinete), Yuri Daniel (contrabaixo, baixo eléctrico), Jacinto Santos (tuba), Vicki (bateria, percussões), Vitorino (acordeão) e músicos da Brigada Victor Jara. Carlos Mota de Oliveira, um dos poetas que Janita mais tem cantado, também colabora activamente no disco recitando o poema de Baudelaire "Embriagai-vos". Referência ainda às participações especiais de Jorge Palma, Rui Veloso e José Carvalho que ao lado de Vitorino e Janita Salomé formam o coro dos amantes do vinho, que canta "No Banquete". Trata-se de um belo trabalho discográfico, mas infelizmente muito pouco divulgado na rádio, a qual sonega a nossa melhor música, aquela que se pode sorver como um bom vinho, e insiste em promover massivamente as zurrapas musicais, seja as vindas de fora seja as produzidas cá dentro. A este propósito diz-nos o próprio Janita: «Ouve-se muito mais a tendência anglo-americana, o pop-rock, ou então músicas cantadas em português, mas com essas mesmas raízes. Esta situação é profundamente injusta porque a música portuguesa tem qualidade e tem diversidade tal que lhe permite ser mais divulgada e dada a conhecer aos jovens.»
Compositor e intérprete de excepção, Janita Salomé é detentor de uma voz ímpar (potente, vibrante, melismática), que muitos consideram a melhor voz masculina portuguesa. Sem cedências à facilidade e a modas efémeras, a sua obra revela uma inegável coerência artística e, embora não sendo vasta, constitui um dos mais ricos e originais contributos para o património discográfico português. Diz o músico: «a minha obra não é extensa mas é intensa». E a somar a isso, a ele se deve igualmente o contributo pioneiro na exploração das raízes árabes da música portuguesa, que abriu caminho a outros, de que Eduardo Ramos talvez seja o melhor exemplo. Estas razões deviam ser mais do que suficientes para que o músico/cantor se encontrasse entre as figuras da nossa música mais estimadas e acarinhadas no seu próprio país. Todavia, e apesar de aclamado pela crítica avalizada, o artista conta-se entre os nomes que mais têm sofrido às mãos dos fazedores de playlists das principais rádios portuguesas, incluindo a estação pública. No caso concreto da Antena 1, a sua deliberada exclusão dos alinhamentos de continuidade e espaços musicais (já só passa no programa "Lugar ao Sul"), além de injusta e inadequada para um artista de mérito reconhecido e inquestionável, constitui acima de tudo um acto de incultura, que assume particular gravidade porque praticado numa entidade que vive de dinheiros públicos.


Discografia:

- O Cante da Terra (LP, Orfeu, 1978) (com o Grupo de Cantadores do Redondo)
- Melro (LP, Orfeu, 1980; CD, Movieplay, 1993)
- A Cantar ao Sol (LP, EMI-VC, 1983; CD, EMI-VC, 1995)
- Lavrar em Teu Peito (LP, EMI-VC, 1985; CD, EMI-VC, 2001)
- Olho de Fogo (LP, Transmédia, 1987)
- A Cantar à Lua (CD, Edisom, 1991)
- Lua Extravagante (CD, EMI-VC, 1991) (com Vitorino, Carlos Salomé e Filipa Pais)
- Raiano (CD, Farol, 1994)
- Vozes do Sul (CD, Capella, 2000)
- Tão Pouco e Tanto (CD, Capella, 2003)
- Utopia (CD, EMI-VC, 2004) (com Vitorino, gravado ao vivo no CCB em Fevereiro de 1998)
- Vinho dos Amantes (CD, Som Livre, 2007)


Fontes:
- Site oficial de Janita Salomé (http://janita.salome.googlepages.com/)
- Blogue de Janita Salomé (http://janitasalome.blogspot.com/)
- Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa, dir. Luís Pinheiro de Almeida e João Pinheiro de Almeida, Círculo de Leitores, 1998
- Literatura inclusa na discografia de Janita Salomé


Propostas para a 'playlist' da RDP-Antena 1 (e Antena 3):
(por ordem alfabética)

- A Estrela do Vinho (in "Vinho dos Amantes")
- A uma escrava que lhe ocultou o Sol (in "Lavrar em Teu Peito"; Tão Pouco e Tanto)
- Alegria da Criação (in "Galinhas do Mato", de José Afonso)
- Ao Romper da Bela Aurora (in "Vozes do Sul")
- Árvores no Deserto (in "Lavrar em Teu Peito")
- Caminho III (in "Vinho dos Amantes")
- Cantar ao Sol (in "A Cantar ao Sol")
- Cante Cigano (in "Tão Pouco e Tanto")
- Cantiga dos camponeses (in "Vozes do Sul")
- Cerejeira das Cerejas Pretas Miúdas (in "Tão Pouco e Tanto")
- Ciganos (in "Raiano")
- Como se fosses de linho doce... (in "Lavrar em Teu Peito")
- Conta-me contos, ama… (in "Lavrar em Teu Peito")
- Credo (in "Raiano")
- E Alegre se Fez Triste (in "Lavrar em Teu Peito")
- Extravagante (in "A Cantar ao Sol"; "Raiano")
- Fala do Amor Alentejano (in "Tão Pouco e Tanto")
- Fragmentos (in "Vinho dos Amantes")
- Homens do Largo (in "Melro"; "Voz & Guitarra")
- Maçãs de Zagora (in "Vinho dos Amantes")
- Moda do Entrudo (in "Galinhas do Mato", de José Afonso)
- Mouro Amor (in "Feito à Mão", de Rodrigo Lessa)
- Mulher da Erva (in "Lavrar em Teu Peito")
- Não É Fácil o Amor (in "A Cantar ao Sol"; "Voz & Guitarra"; Tão Pouco e Tanto)
- Ninguém tem mais peso que o seu canto (in "Raiano")
- No Banquete (in "Vinho dos Amantes")
- O Poder (in "Lavrar em Teu Peito")
- O Zéfiro e a Chuva (in "Tão Pouco e Tanto")
- Pavão (in "A Cantar ao Sol")
- Perdido em Miragem (in "Encanto da Lua", de Frei Fado d’El Rei)
- Poema oferecido a meus amigos (in "Raiano")
- Poema para Florbela (in "Melro")
- Poente (in "Raiano")
- Quadras (in "Vinho dos Amantes")
- Saias (Alto Alentejo) (in "Lavrar em Teu Peito")
- Saias (Beira Baixa) (in "A Cantar ao Sol")
- Saias do Freixo (in "Melro")
- Senhora do Almortão (in "Tão Pouco e Tanto")
- Tardes de Casablanca (in "A Cantar ao Sol"; "Tão Pouco e Tanto")
- Tarkovsky (in "Galinhas do Mato", de José Afonso)
- União Europeia (Adeus cal) (in "Tão Pouco e Tanto")
- Utopia (in "Raiano")



Não É Fácil o Amor



Letra: Luís de Andrade (Pignatelli)
Música e voz: Janita Salomé


Não é fácil o amor, melhor seria
Arrancar um braço, fazê-lo voar,
Dar a volta ao mundo, abraçar
Todo o mundo, fazer da alegria

O pão nosso de cada dia, não copiar
Os gestos do amor, matar a melancolia
Que há no amor, querer a vontade fria
Ser cego, surdo, mudo, não sujeitar

O amor, o destino de cada um não ter
Destino nenhum, ser a própria imagem
Do amor, pôr o coração ao largo, não sofrer

Os males do amor, não vacilar, ter a coragem
De enfrentar a razão de ser da própria dor
Porque o amor é triste, não é fácil o amor


(in "Tão Pouco e Tanto", 2003)

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Outros artistas desta galeria:
Adriano Correia de Oliveira
Carlos Paredes
José Afonso
Luiz Goes
Pedro Barroso



Texto retirado daqui: http://nossaradio.blogspot.com/2007/05/galeria-da-msica-portuguesa-janita.html

Monday, May 04, 2020

Tempo para nada

Tempo para nada

"Altura para a entrevista com a ministra da Saúde, Marta Temido. Boa noite e bem-vinda a este jornal. Espero ter tempo porque são muitos assuntos que estes dois meses nos trouxeram..." 
Foi assim que o pivot Rodrigo Guedes de Carvalho (RGC), da cadeia SIC, inicou a entrevista no Jornal da Noite de sábado.

Mas depois, RGC ocupou onze (11!) minutos (transcrito em anexo) num interrogatório desnorteado e sem chá, cheio de si e na 1ª pessoa, enervado - "eu estou a falar de saúde pública", "estou-lhe a perguntar se...", "não foi isso que eu perguntei..", "Isto não é uma questão de concordar ou de deixar de concordar", "mas a celebração da UGT interessa pouco para uma ministra da Saúde", "Eu quando estou a falar de público no futebol..." -, marcado por preconceitos sobre o 1º de Maio da CGTP e os 73 anos de Jerónimo de Sousa, semelhantes aos do seu patrão Francisco Pinto Balsemão (e corroborados por Marques Mendes na edição de domingo na SIC). RGC fugiu de um tabuleiro onde caíra para procurar outro onde engasgasse a ministra, perdeu o controlo das emoções e perdeu até notícias - como aquela em que a ministra deu a entender que, se não há 13 de Maio em Fátima, é porque a igreja católica não quer, o que, aliás, veio a confirmar-se ontem, e ainda mais no acordo entre o governo e a igreja católica como se soube hoje. De tal forma foi, que RGC acabou por ouvir a ministra dizer: "O estado de calamidade não é uma emergência totalitária. É uma emergência sanitária".

Enfim, depois de um mau serviço jornalístico durante onze (11!) penosos minutos e de vergonha alheia, RGC rematou...:

"Muito bem, avancemos, senão não vamos ter tempo para nada"!! 

RGC pode não entender o papel constitucional que as organizações sindicais têm. Pode não perceber a teoria geral do papel das organizações na sociedade, a ponto de as comparar às pessoas que querem visitar a família. Pode não entender a necessidade que certas pessoas sentem desde o século XIX de celebrar o 1º de Maio, dê por onde der. Pode não perceber a densidade histórica da data, destilada por décadas de lutas, sacrifícios, vidas perdidas, dádivas humanas, contra a desigualdade, pelo direito a uma vida. Pode nem se lembrar do objectivo dessa luta lançada nos Estados Unidos no 1º de Maio de 1886, a que nem dá importância alguma - oito horas diárias de trabalho. E pode até nem relacionar que, por acaso, após 135 anos, essa reivindicação continua ser mais do que actual em Portugal, quando o trabalho extraordinário já é, em certos casos, mais barato do que em período normal de trabalho

Mas por tudo isso, deixo-lhe a circular oficial da Federação dos Sindicatos, de Novembro de 1885. Pode ser que ecoando estas frases com 135 anos, com a força que têm, pelo tempo e pelo tom, pela actualidade das suas palavras (apesar dos anacronismos) se aperceba das ridículas perguntas que fez sobre se era legal terem sido trazidos camionetas do Seixal para a Alameda... 

Camaradas trabalhadores,
Chegámos à época mais importante da história do trabalho. A questão é esta: entregamo-nos a um qualquer azar providencial para fixar a jornada de trabalho de oito horas ou contamos com as nossas forças, preparamo-nos para a luta e arrancaremos a jornada de oito horas àqueles que, por ignorância ou egoísmo, se opõem à sua adopção a 1 de Maio de 1886?
Se os assalariados estiverem unidos neste ponto e se se prepararem com fundos suficientes para aguentar a tempestade durante pelo menos um mês, eles trarão a vitória consigo. O trabalho agindo em unidade, tal como o capital, é todo poderoso. Ele pode impor reivindicações justas por meios pacifícos e legais. Unidade na acção e poupanças suficientes para manter o lobo em respeito durante um período curto, é tudo o que precisamos.
O movimento, para vencer, deverá abraçar todas as classes assalariados, de modo que os produtores não produzam senão quando as reivindicações forem aceites e os seus objectivos conseguidos. 
Trabalhadores:
O vosso dever junto de vós próprios, da vossa família, da prosperidade está claramente definido. Poupem uma determinada soma, metam dois dólares por semana, comprem mantimentos até 1 de Maio de 1886 e estarão em posição de ultrapassar a derrota. Eis o dever de cada um.
Mas qual é o dever das corporações e das sociedades? Que cada organização escolha um comité, para preparar os homens no seu ofício especial, envolvendo os sindicalizados e os não sindicalizados, no maior número possível para exigir as 8 horas em Maio de 1886.
Conseguir as vantagens de uma redução de trabalho quer dizer um trabalho mais regular e melhor remunerado, uma mais longa existência para os trabalhadores, façamos alguns sacrifícios. É tempo de agir.
Vinte anos de paz num país como o nosso, sem epidemias, sem exército permanente considerável, sem uma marinha dispendiosa, e sem que o pesado fardo do trabalho tenha sido aligeirado, mesmo quando por todo o lado a máquina poupa-trabalho é introduzida e que as ruas estejam pejadas de trabalhadores sem trabalho.
É aos trabalhadores e às sociedades que incumbe a tarefa de reduzir as horas de trabalho e de equilibrar o fardo da produção social.
Com a unidade na acção e 35 dólares de economia por cada trabalhador, poderemos levantarmo-nos e e vencer o capital. Tentemos a luta. Preparemo-nos!

ANEXO
Entrevista à ministra Marta Temido, na SIC:  

RGC: O que achou da forma da celebração da CGTP em Lisboa?
MT: Estava em linha com a excepcionalidade prevista no decreto presidencial que se referia ao estado de emergência e que contenmplava uma excepção para a celebração do Dia do Trabalhador. E que referia que deveriam ser respeitadas regras de distanciamento, sanitárias.
RGC: Na verdade, o decreto coloca nas suas mãos e na directora-geral da Saíde definir as regras. Diz apenas que essa comemoração deve ter em conta os limites de saúde pública, No limite, foi a senhora e a directora-geral da Saúde que acharam que aquela celebração se podia fazer assim. Mas são cerca de mil pessoas.
MT: Quem estabeleceu os limites, as condições em que a celebração foi efectuada foi a estrutura sindical que optou por esta forma de celebração. (...) Outras estruturas sindicais optaram por outra forma de celebração. Aquilo que o decreto presidencial referia era a possibilidade de, mesmo em estado de emergência, era assinalar o dia...
RGC: Violou  as regras.. .
MT: ... dentro das regras definidas pelas autoridades  de saúde competentes. E portanrto, as autoridades de saúde competentes avaliaram a situação e imposeram determinadas restrições que são conhecidas de todos: o distanciamento, a protecção, o evitar de multidões, de aglomerações de pessoas...
RGC: E acha que aquilo que se viu ali não foi uma multidão, uma aglomeração de pessoas?
MT: Foi um número significativo de pessoas, superior ao número regra, mas um número enquadrado naquilo que era uma sinalização de uma data. Sei que há quem gostasse que tivesse sido de outra maneira, sei que outras estruturas sindicais optaram  por fazer a celebração de uma outra maneira e provavelmente...
RGC: [interrompendo] Então porque é que não deixou as pessoas virem para a rua no 25 de Abril?
MT: ... há muitas opiniões contraditórias...
RGC : [interrompendo] Porque é que não deixou as pessoas virem para  a rua no 25 de Abril?
MT: O que me parece relevante é que a forma como foi assinalado do dia foi ordeira, foi pacifica, e o que eu gostaria de sinalizar é que não tivemos, por exemplo, eventos com distúrbios como aconteceu noutros paises europeus... 
RGC: [interrompendo] Sim, mas uma coisa não tem nada a ver com outra: eu estou a falar de saúde pública, não estou a falar de intervenções policiais. Falou-me do decreto de estado de emergência onde nada se refere a excepções de cidadãos nestes três dias passarem de concelhos para concelhos. E no entanto, à frente de toda a gente, vieram camionetas pelo menos do Seixal e outros locais. Não era possível a CGTP ter feito uma manifestação só com pessoas do concelho de Lisboa que é bastante grande?
MT: Isso é algo que tem de perguntar à CGTP. O Ministério da Saúde, as autoridades de saúde têm é de definir regras para a realização de determinadas iniciativas, nos termos em que os poderes democráticos as aprovem. O senhor Presidente da República [PR], o Governo, a Assembleia da República  entenderam que o Dia do Trabalhador devia ser sinalizado. Houve uma estrutura que entendeu ter pessoas na rua, dentro de determinadas regras que são as regras sanitárias que temos estabelecidas. Pode-se concordar mais, pode-se concordar menos, pode-se achar que poderia ter sido feita de outra maneira...
RGC: [interrompendo] Isto não é uma questão de concordar ou de deixar de concordar. Estou-lhe a perguntar se nestes três dias 1, 2 e 3 foi ou não proibido pelo PR que as pessoas se desloquem para fora dos seus concelhos.
MT: Não, foi pelo Governo.
RGC: Ou pelo Governo.
MT: Foi estabelecido que nestes 3 dias...
RGC: [interrompendo] E no entanto...
MT: que são dias que, num contexto normal, aproveitaríamos para visitar amigos, para visitar a familia, para passarmos à beira-mar...
RGC: [imterrompendo] E aquelas pessoas que não poderam fazer...
MT: Bom, o que estamos a falar é de indivíduos e dos seus gostos pessoais ou de uma entidade que para todos os efeitos é uma entidade representativa dos trabalhadores e que entende fazer uma sinalização do Dia do Trabalhador...
RGC: [interrompendo] Mas porque é que têm mais direitos que todos os portugueses?
MT: As instituições têm sempre uma forma de representação social que os indivíduos não têm. Poder-se-á dizer : "Por que é o Natal é mais importrante do que o aniversário de qualquer um de nós individualmente considerado?" Porque são momentos sociais...
RGC: [Interrompendo] E acha que a igreja católica é uma instituição?
MT: Naturalmente.
RGC: Por que é que a Fátima, que é um lugar muito maior do que a Alamada de Lisboa, não se pode aplicar estas regras das filas bem separadas e as pessoas ficarem bem separas umas das outras?
MT: Mas é possível que se possam aplicar essas regras se...
RGC: [interrompendo] Ai é possível?
MT: Se essa for a opção das celebrações que - tanto quanto é do conhecimentro daquilo que foi conversado - a opção este ano seria outra... 
RGC Mas vimos aqui o bispo de Leiria dar a coisa como perdida, dizer que infelizmente este ano não vai poder ser assim...
MT: Repare, a propósito do Dia do Trabalhador, para a mesma forma de expressão que o decreto presidencial tinha que era a celebração do Dia do Trabalhador, duas estruturas sindicais, optaram por fazer uma celebração de uma forma distinta. Portanto...
RGC: Mas a celebração da UGT interessa pouco para uma ministra da Saúde, estamos a falar de saúde pública. Estamos a falar de exemplos que vão sendo dados aos portugueses. E estamos a reparar que há algumas excepções. Mas não quero insistir neste ponto, mas num outro ponto que também tem a ver com o mesmo dia. Jerónimo de Sousa esteve presente, tem 73 anos e ele respondeu que "a idade não é critério absoluto para determionar o risco. A senhora ministra da Saúde concorda?
MT: Concordo, a idade não é... 
RGC [interrompendo] Ai não?
MT: ...um criteério absoluto para determinar  o risco. A idade é um critério de risco por si só. Mas não é absoluto. Nós sabemos...
RGC: [Interrompendo] Aqui estamos no campo da retórica, não é?
MT: Não é retórica: é uma realidade que está por detrás do factor 70 anos e do facto 70 anos com melhor saúde ou pior saúde.
RGC: A realidade é que, por causa do decreto do estado de emergência e do facto de o factor de risco dos 70 anos... [lê] "ficam sujeitos a dever especial de protecção, alinea a) os maiores de 70 anos". Isto foi o primeiro decreto do estado de emergência. E nós temos, eu já vi, agentes de segurança falarem com pessoas que eles percebem que eles têm mais de 70 anos e dizerem-lhes que eles têm o dever de regressar à sua casa.
MT: Vamos lá ver. As pessoas acima de uma certa faixa etária têm um risco por si só acrescido. A opção do nosso Estado foi sempre a de sugerir às pessoas que tinham um dever especial de se salvaguardarem. Mas não de as impedir de sair à rua. Parece-me que isso seria, por si só, desproporcional e eventualmente até ferido de outros problemas. Aquilo que temos de ter em presença é que, ainda hoje a OMS tem um documento especifico a propósito das pessoas de maior idade neste contexto de doença que sabemos que é potencialmente mais agressiva para elas. Mas nós temos de perceber que não é o único critério...
RGC: Muito bem. 
MT: ... E não podemos confinar as pessoas só porque têm mais...
RGC: [Interrompendo] Certo...
MT: ... de 70 anos, ficaram reclusas...
RGC: [Interrompendo] Então...
MT:... ao seu domicílio
RGC: [Interrompendo] Então podemos ter agora os portugueses com mais de 70 anos a dar a mesma resposta, que será aceite pelas autoridades e compreendida pela ministra da Saúde.
MT: No contexto actual, sabemos que o dever que impende sobre todos os portugueses é o dever civico...
RGC: [Interrompendo] Não foi isso que eu perguntei...
MT: ... de recolhimento. Mas esta é a resposta.
RGC: Pronto, pronto...
MT: Mas esta é a resposta.
RGC: Então avancemos. Falamos aqui de Fátima. A senhora ministra abriu aqui a porta, afinal, de uma peregrinação a Fátima...
MT: Não abri.
RGC: Não abriu?
MT. Não.
RGC: Então, formulo-lhe a pergunta: Por que é que em Fátima as pessoas, os peregrinos não podem estar lá presentes a ouvir a missa?
MT: Vamos lá ver: se essa for a opção de quem organiza as celebrações - de celebração do 13 de Maio - onde possam estar várias pessoas desde que sejam respeitadas as regras santárias - isso é uma possibilidade. Agora, cada organização de uma iniciativa tem de fazer um juízo de valor sobre aquilo que entende que são os riscos que vai correr. E pode haver entidades que entendam que aquilo que está em causa é compatível com determinadas regras e outras que não...
RGC: [Interrompendo] O mesmo que se aplica aos estádios de futebol?
MT: O estado de emergência, o estado de calamidade não é - como já disse - uma emergência totalitária. É uma emergência sanitária. E portanto as regras são sempre utilizadas com a proporcionalidade necessária à protecçãos sanitária. Mas não mais do que isso. 
RGC: Muito bem. Campos de futebol, são também terrenos abertos. Podem também ter público?
MT: Não.
RGC: Porquê?
MT: Porque a opção neste momento será eventualmente a de não ter público. Mais uma vez, vamos fazer uma construção de medidas ao longo do tempo, que garantam a maior normalidade possível, mas num contexto que não é o regular, o normal, aquele que desejaríamos. E também porque avaliamos, os peritos, os organizadores avaliam aquilo que são...
RGC: [interrompendo] Eu quando estou a falar de público no futebol não estou a falar obviamente do estádio cheio. Mas aquela proporção que não se sabe qual será - um terço, dois terços - e pessoas separadas. Por que não é possível?
MT: São aspectos que estão eventualmente a ser ponderados num contexto, não daquilo que está em cima da mesa, porque aquilo que está em cima da mesa eventualmente serão jogos à porta fechada.
RGC: Muito bem, avancemos, senão temos tempo para nada.