Sunday, December 31, 2023

POEMA CXIV


Abri a porta e não havia espaço.
Alguém tinha posto ali uma montanha. Não
em frente, mas ali mesmo. A três, quatro metros
iniciava-se uma encosta e só saindo a porta se podia
ver o cume. Quer isto dizer que agora vejo a vida
de outra forma? Que apenas depois de sair de mim
poderei sobreviver ou resgatar-me?
Ou quer dizer que me sinto sem saída e que terei
de transpor uma montanha para atingir a liberdade
que só pode alcançar-se do outro lado? Não sei.
Gostava de chegar a tempo de conhecer a resposta.
Nem poderei dizer "não me interessa" ou "para quê
pensar nisso", ou ainda "tudo não passou de um sonho,
agora acordaste, Joaquim, pára com essa conversa
outra vez."
Se te dói alguma coisa, não pares, continua
porque tudo é doloroso a começar pela dúvida. Tens
expectativas, todos os palermas têm expectativas,
alguma coisa tens de fazer mesmo que nada tenha
resultado nas últimas cinco vezes. Respira, se quiseres
respirar, com a coragem de quem assina um papel
em branco e cuida da tua alma como um enfermeiro
ou um técnico de manutenção.
Eu também sei que não temos de fechar os olhos
e partir, porque nos podemos escolher a nós mesmos,
o que pode ser doloroso mas não é difícil, e temos
de tentar, temos sempre de tentar agarrar a felicidade
porque ela não chega quando nós menos a esperamos,
mas quando nos esforçamos e queremos muito que
ela chegue. Quando não estás pronto, nada resulta.
Até o amor é como um sapo sempre de um lado da noite
para o outro, carregando o que de mais sujo e feio
existe em nós. Procura então com coragem uma forma
de não estares na vida à socapa e ficares a assistir.
O truque está em saber ver a diferença.
Não queiras permanecer no mesmo sítio
a cantar a mesma canção, sem ir a lado algum.
Desse modo nada importará, porque o que realmente
importa já nem sequer te apetece procurar. E se
investires muito nas perguntas e pouco nas respostas,
serás um mendigo que tudo tem e nada possui.
Não dobres a medo o cabo dos trabalhos, porque
a tua memória é líquida mas não se lembra daquela luz
que se esconde na água nem sabe de que lado fica
a nascente dos pássaros que poisam nos sentidos
das coisas que regressam.
Se quiseres falar, eu estou aqui.
No território onde podes contar coisas
em que ninguém acredita e onde eu posso deixar
os meus versos até àqueles que não gostam de poesia.
Não continues especialista em envergonhar-te
perante ti mesmo. Precisas de uma vida nova,
de uma mudança séria que não deixe tudo outra vez
como estava vinte e quatro horas antes.
Como é que isto soa na tua cabeça?
Enquanto fores vivo podes aprender, mas
não exijas perfeição em nada. O que é fabuloso
continuará a sê-lo enquanto pensares que o é. Tudo
está em ti sempre prestes a partir, mas a tua
pequena galinha poderá ser muito maior
e mais gorda que a dos teus vizinhos.
Uma família é um abraço.
Estende o pensamento para os teus.
Para a tua aldeia. Para o teu mundo. És uma criança,
não podes lutar contra outras. Se o fizeres,
não vais querer parar. E a seguir não vais poder
respirar. Continua a ser o teu braço direito e lembra-te
de que há coisas que não podemos deixar de discutir.
E há outras de que nunca queremos saber.
Desejamos firmemente um tratamento especial
mas por vezes a vida dá passos muito grandes,
demasiado grandes para que possamos acreditar,
e o normal nunca será normal se te sentires
anormal.
A culpa é como uma mãe
autêntica, sempre a querer colar-se a nós
e a lembrar-nos o que não deveríamos ter feito,
como se todos os dias fossem véspera de Natal. E
se Jesus ressuscitou, por que não ter, ao menos, expectativas?
Como te disse, todos os palermas têm
expectativas, mas deixa lá, pode até acontecer
que abras a porta e não vejas a montanha ou que,
sequer, isso tenha afinal algum significado.
De qualquer modo,
também gostei de falar contigo.
Joaquim Pessoa
in O POUCO É PARA ONTEM (Litexa, 2008)

Friday, December 29, 2023

lembro-me do futuro

escrevi estes versos para os meus filhos
cujos nomes são desconhecidos
da maior parte
do tempo persiste na memória apenas o passado que se acumula sob as finas camadas do presente
mas sabe os seus nomes quem luta pelo futuro.
e nós, nós habitamos todo o tempo, e somos daquela porção da humanidade cuja memória guarda já o brilho da luz, o cheiro, e a história de amanhã. nós somos aqueles de quem as mãos, na verdade, são asas.
(in convocatória)

Wednesday, December 27, 2023

A Odete Santos não morreu

 

Na tombola que é a distribuição dos serviços diários na Fotografia do Público, fui contemplado com uma entrevista a Odete Santos no ano 2000. Telefonei-lhe e marcámos um encontro.
A grande Odete apareceu com a maior das simplicidades. Falámos de tanta coisa que acabámos por nos encontrar também no dia seguinte. Odete queria ser fotografada junto às mulheres que se iam manifestar no terreiro do paço. Percebi que era ali que se sentia bem. Mulher de combate.
A Odete era genuína. Não era comunista por acidente. Era comunista inteira. Como muito poucos. Era das mais brilhantes deputadas. Não era uma deputada de bancada. Não era mais uma no meio de tantos. Era uma deputada do terreno. Ligada às pessoas. Ligada à justiça social e à liberdade.
Não quis ser fotografada na AR. Quis ser fotografada no palco (não me lembro que sala) e junto ao rio Tejo.
Ali, a grande Odete, a brilhante deputada. A obreira da democracia. A mulher da luta. Todos os dias. Junto ao rio, com as gaivotas a voarem em liberdade.
A Odete Santos não morreu. 

Adriano Miranda

Sunday, December 24, 2023

Natal...

Elas andam a trabalhar numa fona há dois ou três dias, sem o descanso necessário. Primeiro as compras, depois a cozinha. Fazem sonhos rabanadas aletria arroz doce coscorões azevias e só não fazem o bolo rei porque lhes falta o tempo. São os homens a ir buscar o bolo rei que elas encomendaram. Levantaram-se cedo e começaram logo ainda não saíram da cozinha e os homens a perguntar quando é que se almoça. Fazem-lhe um bife (as que podem) rápido e nem se sentam à mesa, porque há que começar a levar para a sala de jantar o serviço de porcelana e os copos que se usam uma ou duas vezes por ano. Tudo do enxoval. Quantos sonhos ficaram pelo caminho. A esta hora já descascaram as batatas, arranjaram a couve, os tachos estão em cima do fogão que será ligado daqui a pouco para cozer o bacalhau. E eles sentados no sofá a verem televisão. Elas põem a mesa com a toalha que usam uma vez por ano, o serviço de porcelana e os copos. Têm de caber quinze. Os três filhos chegarão dentro de pouco tempo com os respectivos parceiros e dois filhos cada um. Vai ser uma festa pois vai mas ninguém pensa que elas estão de pé há mais de dez horas e ainda têm pela frente mais seis ou sete horas de trabalho até poderem ir descansar um pouco sim porque amanhã o almoço é igualmente lá em casa e elas têm de se levantar às sete ou oito para voltarem a por a mesa, repor os doces e acender o fogão onde se irá assar o perú, que elas têm temperado há dois dias. Eles levantam-se mais tarde, chegam à cozinha e pedem o pequeno almoço, depois fumam um cigarro e vão à vida deles. Voltam a aparecer quando são chamados para a mesa. Elas não veem mais nada a não ser os ponteiros do relógio avançarem e os filhos estão quase a chegar e o arroz de passas ainda está por fazer e ela tem ainda de tomar um duche. É tão lindo o Natal quando elas trabalham assim e eles dizem ponham os olhos na vossa mãe, que é uma mulher como deve ser. Felizmente à noite o jantar vai ser o que sobejou do almoço e do jantar da véspera. Despediram-se ao final do dia e elas mal aguentam pensar que amanhã é já daqui a meia dúzia de horas... e que o trabalho as espera.

(Isto é ficcionado. Mas conheço muita gente que se encaixa aqui.)
(Fui interrompida várias vezes enquanto escrevia este texto. Não o li nem vou ler. Sei que me perdi pelo meio, espero que não se note muito.) 😃

Saturday, December 23, 2023

Poema de natal


Para isso fomos feitos:
Para lembrar e ser lembrados
Para chorar e fazer chorar
Para enterrar os nossos mortos —
Por isso temos braços longos para os adeuses
Mãos para colher o que foi dado
Dedos para cavar a terra.
Assim será nossa vida:
Uma tarde sempre a esquecer
Uma estrela a se apagar na treva
Um caminho entre dois túmulos —
Por isso precisamos velar
Falar baixo, pisar leve, ver
A noite dormir em silêncio.
Não há muito o que dizer:
Uma canção sobre um berço
Um verso, talvez de amor
Uma prece por quem se vai —
Mas que essa hora não esqueça
E por ela os nossos corações
Se deixem, graves e simples.
Pois para isso fomos feitos:
Para a esperança no milagre
Para a participação da poesia
Para ver a face da morte —
De repente nunca mais esperaremos...
Hoje a noite é jovem; da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
Vinicius de Moraes

Tuesday, December 19, 2023

Refaz-me

Penetras-me todos os dias, sempre que te apetece. Deixas que eu me encha de ti, naturalmente. Namoras-me e saboreias-me da mesma forma e ao mesmo tempo que te namoro e te saboreio. As crianças a brincarem com a nossa espuma.
A corrente leva-me sempre para ti, e traz-te de volta. Mas é de noite que nos amamos melhor. Com as estrelas como manto. Às vezes a lua, cúmplice dos nossos beijos e abraços. Enquanto as crianças sonham com castelos de areia e sorriem.
Nas minhas margens costumam chapinhar os mais pequenos e deixo que os barquinhos se passeiem imaginando viagens que não fazem. Mas estes dias foram de tempestades e amores proibidos, e as margens que em mim deixaste são enormes. Cavaste um fosso entre mim e o que resta da praia, que continuas a lamber. As minhas margens são agora enormes. Como podem as crianças voltar a brincar no meu regaço?
Refaz-me, uma e outra vez, com a doçura com que sempre o fizeste. Preciso do teu abraço, forte. E das gargalhadas das crianças...

Monday, December 18, 2023

Amor

Mulher, teria sido teu filho, para beber-te
o leite dos seios como de um manancial,
para olhar-te e sentir-te a meu lado e ter-te
no riso de ouro e na voz de cristal.
Para sentir-te nas veias como Deus num rio
e adorar-te nos ossos tristes de pó e cal,
para que sem esforço teu ser pelo meu passasse
e saísse na estrofe - limpo de todo o mal -.
Como saberia amar-te, mulher, como saberia
amar-te, amar-te como nunca soube ninguém!
Morrer e todavia
amar-te mais.
E todavia
amar-te mais
e mais.
Pablo Neruda

Thursday, December 14, 2023

TERRA


- O que fazes, Luís?
O que fazes com a terra do quintal?
- Uma casa, pai. Uma casinha de barro.
- Para quem a fazes, meu filho?
- Para o primo António.
Ao lado será a nossa
E depois a de Josefa
E a de Elias depois
E outra para quem vier
Que queira poiso e guarida
Uma cama, uma sanefa
Pois esta rua tem vida
Quanto mais vida tiver
Outra do filho de alguém
Que ainda está por nascer
Para que a rua não pare
Nunca pare de crescer
Será a Rua Direita
Do barro que a terra der
Nem muito larga nem estreita
A palmo, mas bem medida
Com entrada, com saída
Feita de homem e mulher
Em cada porta um ditado
Pintado num azulejo
Cada casa o seu telhado
Cada casa o seu desejo
Para que rua engravide
Antes de chegar ao rio
Num largo onde tudo cabe
A que vou chamar rossio
Com quatro cantos virados
Para os pontos cardeais
Um para poetas vidrados
E para loucos que tais
Quero um canto para pintores
Desses que inventam as cores
Das papoilas e do sonho
No terceiro canto eu ponho
Uma cantiga de festa
Que é o que a voz empresta
À lua quando se esconde
Debaixo do nosso chão
E nós não temos por onde
Dar mais voz ao coração
O quarto canto é vazio
Não lhe ponho nada a jeito
Não é bem do meu feitio
Fazer tudo tão perfeito
Nem tudo deve ter forma
Deixo vazio um lugar
Para quem só sabe andar
Com o olhar fora da norma
É aqui que desagua
A nossa Rua Direita
Que não é larga nem estreita
É como um colo de mãe
Tem esse jeito também
Um jeito de nos abraçar
Que eu sem querer nem saber
Faça as ruas que fizer
Todas a ela vão dar
Primeiro a Rua da Escola
Onde me levaste, então
Para um dia ser alguém
Onde eu um dia também
Hei-de levar pela mão
Alguém à minha carteira
Para manter a linha inteira
Que sustenta o coração
Depois a Rua do Posto
Rua dos nossos avós
Para que as rugas do rosto
Corram no sentido certo
Corram para dentro de nós
Até ao dia em que a última
Maçã deixar de bater
Por cada fruto caído
Sabemos que a vida vai
Como a rua ter sentido
Quero a Rua da Fábrica
Ninho de azeite e de pão
Onde aqueles que lá estão
Têm um lugar à mesa
Conquistando a natureza
Que a Natureza aos demais
Sejam flores ou animais
Rios, montanhas, desertos
Fez diferentes e estão certos
Por ela ter a ciência
Que no fundo, na essência
Nós somos todos iguais
Por fim a Rua da Esperança
A mais bonita, sem fim
Onde quem quer acredita
Ver numa pedra um jardim
Plantar os versos de um hino
Regar com água do rosto
Ver nascer um violino
Das cinzas de um fogo-posto
E que toda a nossa terra
Com a esperança que inventei
Caiba onde não cabe a guerra
Caiba num verso da Lei
E se o mau tempo vier
Estragar a casa que fiz
Junto-me com quem estiver
E volto a fazer de raiz.
João Monge

Tuesday, December 05, 2023

POEMA DA CURVA


Não é o ângulo reto que me atrai,
Nem a linha reta, dura, inflexível criada pelo o homem.
O que me atrai é a curva livre e sensual.
A curva que encontro no curso sinuoso dos nossos rios,
nas nuvens do céu,
no corpo da mulher preferida.
De curvas é feito todo o universo,
O universo curvo de Einstein.

Oscar Niemeyer
(15 de Dezembro de 1907 – 5 de Dezembro de 2012),
mais conhecido como arquitecto.

Monday, December 04, 2023

O BAR

Andei com Maiakovsky a servir
sumos de ananás num Bar de putas.
Por essas noites, a noite cheirava a mijo
e a ódio. Sim, a mijo e a ódio.
Um homem costumava entrar
e perguntar pelo seu irmão.
Nunca estava. O seu irmão
nunca estava e, então, o homem
desaparecia
sem mais interrogações.
Um dia houve uma guerra num vaso de flores
e na noite desse dia o Bar fechou.
Reabrimos na noite seguinte
muito orgulhosos da nossa guerrazinha
que continuava, mas agora
de certo modo longe do nosso local de trabalho.
Voltámos a servir sumos de ananás
regularmente. Maiakovsky
não usava meias desde a guerra
e as putas quase sempre comentavam isso.
Constou nessa altura
que tinha morrido como um valente
o homem que costumava entrar
e perguntar pelo seu irmão.
Confirmámos isso quando o irmão dele passou a frequentar o Bar
sem fazer uma única pergunta.
De vez em quando tínhamos de pôr fora
os clientes que se embebedavam.
Alguns, no auge da noite,
pretendiam ser Deus,
outros,
faziam discursos que irritavam os chulos
diziam coisas tremendas
e um deles era um general de cavalaria
que ao terceiro copo já queria vender as esporas.
No último verão houve a crise do ananás
e passámos a servir batidos de morango.
As putas adoravam.
Maiakovsky olhava de soslaio umas vezes,
outras, pelo cantinho do olho
e fazia-me sinais.
Eu levantava geralmente os cinzeiros e as gorjetas
Enquanto ele passava um pano húmido
Pelo tampo das mesas.
Dividíamos desta maneira o nosso trabalho
porque ele era alérgico ao cheiro das notas
e a mim dava-me prazer
ajudá-lo no que pudesse.
Uma tarde veio num jornal que ele tinha morrido.
Nem ele próprio acreditou.
Ficou desiludido, muito desiludido mesmo
e confessou-mo.
Não chegou a haver entrevistas, fotógrafos, nada.
Ele fez as malas calmamente
(e, no entanto, esqueceu-se de uma gravata),
abraçou-me e partiu com
lágrimas nos olhos.
Então, sozinho, abri o Bar apenas
uma ou outra noite em que senti saudades.
Por vezes entravam turistas americanos
que me ofereciam somas terríveis
pela cadeira onde ele costumava sentar-se
nos nossos dias de folga.
Quase nunca chegava a responder.
Eles percebiam o meu olhar e não diziam nada,
não insistiam mais.
O mesmo acontecia com as putas,
que deixaram de fazer-me perguntas.
Creio que agora estou desempregado.
Fechei o Bar definitivamente.
Muita coisa mudou embora as noites
continuem hoje a cheirar
a mijo e a ódio.
Faleceu o general
que negociava as esporas ao terceiro copo,
Deus caiu abaixo da sua bebedeira,
e eu acabei por vender a cadeira do meu camarada
que está agora algures no Colorado atrás de uma secretária
num Boss Office de uma fabriqueta de pastilha elástica.
Estou mais novo
e vou sobrevivendo a todas estas recordações.
Mas quando agora saio por aí, de noite, roído de saudades,
já nem mesmo as putas,
as mesmas putas,
me reconhecem.
Joaquim Pessoa

Saturday, December 02, 2023

***

Adoro-te minha gata de Janeiro meu amor minha gazela meu miosótis minha estrela minha amante minha Via Láctea minha filha minha mãe minha esposa minha margarida meu gerânio minha princesa aristocrática minha preta minha branca minha chinezinha minha Paulina Bonaparte minha história de fadas minha Ariana minha heroína de Racine minha ternura meu gosto de luar meu Paris minha fita de cor meu vício secreto minha torre de andorinhas três horas da manhã minha melancolia minha polpa de fruto meu diamante meu sol meu copo de água minhas Escadinhas da Saudade minha morfina ópio cocaína minha ferida aberta minha extensão polar minha floresta meu fogo minha única alegria minha América e meu Brasil minha vela acesa minha candeia minha casa meu lugar habitável minha mesa posta minha toalha de linho minha cobra minha figura de andor meu anjo de Boticelli meu mar meu feriado meu domingo de Ramos meu Setembro de vindimas meu moinho no monte meu vento norte meu sábado à noite meu diário minha história de quadradinhos meu recife de Manuel Bandeira minha Passargada meu templo grego minha colina meu verso de Holderlin meu gerânio meus olhos grandes de noite minha linda boca macia dupla como uma concha fechada meus seios suaves e carnudos meu enxuto ventre liso minhas pernas nervosas minhas unhas polidas meu longo pescoço vivo e ágil minhas palavras segredadas meu vaso etrusco minha sala de castelo espelhada meu jardim minha excitação de risos minha doce forquilha de coxas minha eterna adolescente minha pedra brunida meu pássaro no mais alto ramo da tarde meu voo de asas minha ânfora meu pão de ló minha estrada minha praia de Agosto minha luz caiada meu muro meu soluço de fonte meu lago minha Penélope meu jovem rio selvagem meu crepúsculo minha aurora entre minas minha Grécia minha maré cheia minha muralha contra as ondas meu véu de noiva minha cintura meu pequenino queixo zangado minha transparência de tules minha taça de oiro minha Ofélia meu lírio meu perfume de terra meu corpo gémeo meu navio de partir minha cidade meus dentes ferozmente brancos minhas mãos sombrias minha torre de Belém meu Nilo meu Ganges meu templo hindu minha areia entre os dedos minha aurora minha harpa meu arbusto de sons meu país minha ilha minha porta para o mar meu mangerico meu cravo de papel minha Madragoa minha morte de amor minha Ana Karénine minha lâmpada de aladino minha mulher

António Lobo Antunes - Cartas da Guerra (1971)