Thursday, May 27, 2021

AINDA ONTEM TINHA VINTE ANOS

Ainda ontem tinha vinte anos e era o dono do tempo.
A minha mãe ainda me julgava o seu menino. E eu era já
um homem seguro de mim, carregado de certezas,
como acontece sempre que se tem vinte anos. Naquela altura
tudo era exacto, tudo podia ser medido e comparado,
nada tinha força para se confrontar
com a sabedoria de um jovem.
O menino que era eu, foi ensinado pelo tempo, esse velho
alfarrabista que guarda o segredo da eterna juventude.
Tudo se foi modificando, o nascimento de algumas coisas
significou a morte de outras,
dentro de mim e fora de mim o futuro
foi-se construindo com o passado,
e entre alegrias breves aninharam-se
inseguranças e fundas frustrações.

Trinta anos depois
restam poucas certezas, aprendi
que não é o galo que canta para que nasça o dia
mas é o dia que acorda o galo para que cante.
Aprendi que a vida tem milhões de perguntas e que
tinha de procurar nos outros respostas para mim,
para achar em mim respostas para os outros. Soube dar
um braço a torcer para que não houvesse força
que pudesse torcer-me o outro braço. E vi
que a vida tem todas as portas abertas.
Fechei algumas, atravessei por outras,
esperando encontrar um mundo diferente.
Mas as diferenças que achei
estavam em mim.

Quis alterar o mundo com um livro e escrevi-o.
Depois, alterei-o de acordo com o mundo.
A minha vida teve muitas vidas que procurei entrelaçar
como o cesteiro faz o cesto. Aprendi que a realidade sobre
o que ouvi falar, é que nunca soube se estava
a ouvir falar da realidade. E que um momento doce de ilusão
pode doer mais que a realidade mais amarga. E agora
sei que não é pior caminhar contra o vento se
o vento não estiver a meu favor. E que a grande árvore
da amizade não pode viver sem os seus ramos mas,
para que cresça mais e dê melhores frutos,
é preciso ir podando alguns deles.

Hoje existem vozes diferentes na minha voz
e eu utilizo-as para fortalecer as minhas opiniões
sem falar nunca em nome dos outros. E não me sinto
obrigado a dizer a alguém seja o que for.
Importante é dizer alguma coisa a quem quer que seja.
E aprendi que falar não é o contrário de estar calado.
E que a lâmpada não tem culpa de ter falhado a energia.
E que não é preciso estar acordado vinte e quatro horas por
dia para não perder nada daquilo que me é devido. Sei agora
que a sedução é um jogo para o qual todos os dias treino
e que todos os dias jogo. E que por vezes a verdade
é a mais verdadeira das mentiras possíveis.

“Que achas de mim?” é uma pergunta
que devo fazer mais vezes a mim do que aos outros.
E saber quantos milhões de estrelas tem uma galáxia
é menos importante que encontrar as poucas palavras para
terminar uma conversa. Sei que muito do que é humano
ajudou a construir o homem, e que em relação ao tempo
a única vitória é também a única derrota: gastá-lo.
Ah!, e sei que que é bom acordar duas vezes no mesmo dia.
E que a lógica das cores não é a lógica das imagens. E nem
as cores nem as imagens sabem que existe qualquer lógica.
Aprendi também que, se precisar de um cretino
o devo tratar por Dr. Cretino, e que quando
se perde uma pessoa que se ama custa tanto lembrá-la
como esquecê-la. Sei que a justiça me dispensa a coragem,
que posso tornar-me sábio pela sabedoria dos outros
mas se não possuir os meus próprios méritos
de nada vale exibir os méritos do meu pai. E também sei
que com excepção dos progressistas todos me falam
de progresso. E que quando o céu está nublado
a primeira impressão é de que as estrelas
não existem.

Aprendi que não adianta ser rápido antes do tempo
nem depois da oportunidade. E que o vento que derruba
as grandes árvores não consegue mais que inclinar
os pequenos arbustos. Hoje não considero generosidade
oferecer o que me pedem, porque generoso é aquele que dá
antes de lhe pedirem. Acredito que existe uma só sede
e muitas maneiras de a extinguir, e que se por erro cair num
precipício, poucas possibilidades tenho de me
arrepender. Ensinou-me a vida que se me humilhar
não posso esperar dos outros mais que humilhação. E que
poderei retirar ouro de uma rocha mas não posso exigir
que ela me dê água. Tenho percebido que o silêncio é de ouro
num mercado de palavras baratas. E que os olhos ricos
em lágrimas são pobres em sono. Que é mais difícil
reconhecer a qualidade que defini-la, e que para ser elogiado
basta que dê um pouco de mim ou até menos
do que um pouco. Sei ainda que, para o pássaro,
o céu e a árvore têm as mesmas raízes,
que o tempo que amadurece os frutos
amadurece também os homens e, por isso,
aquilo que perdi continua a ser meu
enquanto o procurar.

Joaquim Pessoa 

in Vou-me embora de mim, 2ª ed.
Litexa Editora.

Wednesday, May 19, 2021

Canção

Na fome verde das searas roxas
passeava sorrindo Catarina.
Na fome verde das searas roxas
ai a papoula cresce na campina!

Na fome roxa das searas negras
que levas, Catarina, em tua fronte?
Na fome roxa das searas negras
ai devoravam corvos o horizonte!

Na fome negra das searas rubras
ai a papoula, ai a Catarina!
Na fome negra das searas rubras
trinta balas gritaram na campina.

Trinta balas
te mataram a fome, Catarina.

Papiniano Carlos

Monday, May 17, 2021

Carta do Ricardo Almeida ao Pai, Dinis de Almeida

O meu pai partiu e está a ser difícil escrever. Não sei por onde começar. Há muita coisa que quero dizer, porque o meu pai levou uma vida cheia. Fez coisas bonitas. Basta ir à sua página para se perceber o legado que deixou. Recebi mensagens lindas, comoventes e que me enchem de orgulho. Mais do que falar do Capitão de Abril, queria falar-vos do Pai que foi. E foi um super pai. Presente, preocupado com a nossa educação, atento, mas extremamente carinhoso e afetivo. Era alegre e tinha imenso sentido de humor. Um contador de histórias fabuloso.
Geriu sempre de forma inteligente os conflitos habituais e naturais entre os filhos. Era justo. Eu e a minha irmã somos grandes amigos e isso dava-lhe imensa felicidade. Sempre falou de nós com imenso orgulho. Castigado pela vida dura que levou, dizia-nos muitas vezes: " Filhos, a vida é luta!". Queria preparar-nos, queria poupar-nos do sofrimento. Incentivou-me a ir para o Colégio Militar. Nunca me obrigou, mas eu fui. Agradeço-lhe por isso. É uma Escola de Valores. Ganhei amigos para a vida.
Fui colega do meu pai no curso de medicina dentária. Foi da minha turma e o meu parceiro nos anos clínicos. Estudamos juntos. Tinha uma memória incrível. Sempre teve uma excelente relação com colegas e professores. Nunca foi invasivo e dava-me espaço. Sabia quando se retirar. Acabou o curso de Medicina Dentária aos 56 anos, depois de um curso de Psicologia Clínica, mas era, como ele gostava de dizer: "Acima de tudo, Militar". Era um homem muito generoso, desapegado dos bens materiais. As injustiças sociais incomodavam-no. Tomava, invariavelmente, partido dos mais fracos. Era extremamente leal aos seus amigos, mas não perdoava a traição. Era um homem de esquerda. Sempre foi. Tinha uma coragem incrível. Era destemido e frontal. Fez parte de uma das mais belas páginas da História do século XX Português, que foi o 25 de Abril de 1974. No 11 de Março venceu e no 25 de Novembro saiu vencido. Caiu e levantou-se, sempre de cabeça erguida. A vida é luta, pai! Escreveu 3 livros, que são referências bibliográficas incontornáveis desse período da História de Portugal, e que o eternizam.
Hoje parte aos 76 anos, mas deixa um legado e uma memória que muito nos orgulha. Hoje perdi um amigo. O maior e o mais leal de todos.
Com todo o amor do teu filho,
Ricardo Dinis Almeida