Thursday, April 25, 2019

A Hora das Gaivotas



Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra

É noite
É a espada líquida da noite
- Chicharro com pão dormido, camarada... 
pão dormido...

As gaivotas ensaiam o voo tresloucado
dos papagaios de papel
Parecem ter medo de poisar,
de dar descanso ao seu coração suspenso:
O medo de calar por dentro

- ... e rabanadas com três dias 
Tudo nos serve para medir o tempo 
Eles não sonham...

É a mais líquida de todas as noites
Nada se conforma no seu próprio destino:
As casas,
O mar,
As gaivotas,
Os homens...
Tudo parece convergir para o ninho inevitável
onde todas as coisas regressam à sua razão de ser:
A Liberdade

(A Patética de Tchaikovsky escorre de um velho gira-discos para as paredes do refeitório)

- É tão louco este mundo, camarada 
1893, 1893. O ano da Patética, o ano do Grito de Edvard Munch 
O maior grito da humanidade 
O inexplicável grito de todos nós

Em todas as casas há um coração suspenso
e uma janela sobre o mar
As crianças recolheram a casa
e, protegidas pelos pais,
adivinham por detrás das cortinas
um sinal que dê sentido a tudo
Ninguém sabe o que espera mas toda a gente espera em silêncio

É como se a terra soubesse
que há dias em que o mundo tem de ser redondo

3 de Janeiro de 1960
Às sete em ponto da tarde

Adagio–Allegro non troppo

- Nada me passa na garganta, só um grito mudo... 
- A estrada ainda está deserta, nem uma luz... Mas ele há-de vir! 
- Somos 10, estamos contados
- Contemo-nos de novo: 
Álvaro, 
Jaime, 
Joaquim,
Carlos, 
Francisco, 
José, 
Guilherme, 
Pedro, 
Rogério, 
Francisco.

E eu, e tu, e quem atrás de nós vier
E todos os que hão-de nascer
Com uma côdea no céu-da-boca

É por isso que o mar espalha a sua toalha bordada
na praia, aos nossos pés
para, da sua eterna sabedoria, nos prendar com a nossa igualdade

Allegro com grazia

- Pai, olha aquele carro, olha aquele carro 
- Apaga a luz, apaga a luz... 
Vem com a mala aberta, devagarinho, devagarinho... - 
Vem do lado das docas... 
- Pai, repara, as gaivotas pousaram todas... 
-... e parou em frente ao forte 
É a hora das gaivotas É a hora das gaivotas 
O homem está a sair do carro, pai... 
- Sim. Vai fechar a mala, certamente... 
- Olha, as gaivotas, com o som da mala a fechar, levantaram voo novamente 
- São misteriosas as campainhas do destino

Allegro molto vivace

Em todas as casas há um coração suspenso
pelo medo e pela saudade
e uma boca amarrada às paredes cegas

- Francisco, rasga esses lençóis 
que nos fizeram para sudários.

Todas as palavras são medidas
como as sardinhas
e quase nunca é domingo

- Vá, tu sabes dar os nós de pescador 
Une as tiras e dá-lhes um nó no meio 
para que as mãos encontrem mais firmeza

A terrina ocupa o centro da mesa
as crianças são servidas primeiro
Apenas o tilintar das colheres
abre feridas no silêncio das casas
E as côdeas de pão dormido
quando estalam no céu-da-boca

- Somos 10, estamos contados 
A corda tem de servir 10 vezes, camarada

O jantar é em silêncio
Mas quando o cavalo azul galopa pelas muralhas
ouve-se a sua pulsação
a estalar o coração das gentes

- Pai, posso ir à janela?
- O carro já se foi embora. Não há nada para ver. Acaba a sopa
- Há, pai! As gaivotas não se calam
E as ondas batem sem conta certa
- Deixa-me apagar a luz...
- Pai, passaram dois carros grandes mesmo agora. Um seguiu em frente e o outro está parado à porta da vizinha com as luzes apagadas
- Esperam alguém. É gente de bem

Finale — Adagio lamentoso

- Não olhes para baixo, camarada
E o mar, sempre o mar, estende as longas crinas
de cavalo azul nas paredes de pedra
- Pai, há uma corda a baloiçar na parede do forte... 
Em todas as casas há um coração suspenso
e um lugar vazio à mesa
- Isso, conta os nós... tu sabes a conta certa 
Não olhes para baixo 
- Pai, o homem pôs o carro a trabalhar... 
Os gritos das gaivotas cobrem com um véu de tule
os ruídos dos ossos contra as pedras
É a natureza do lado certo
- Pai, outro homem... e outro... e outro... 
É o medo contaminado pela esperança
e a espada líquida da noite virada de feição
- Pai, ajuda-me... não entendo, não entendo... 
- É a hora das gaivotas, meu amor!

João Monge

Wednesday, April 24, 2019

45 anos de Abril





"De novo vieste em flor
Te desfolhei
E depois do amor
E depois de nós
O adeus
O ficarmos sós"