Thursday, December 24, 2020

Natal à beira-rio


É o braço do abeto a bater na vidraça!
É o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala-te, vento velho! É o Natal que passa,
a trazer-me da água a infância ressurrecta.

Da casa onde nasci via-se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
que ficava, no cais, à noite iluminado...

Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
mais da terra fazia o norte de quem erra.

Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir-me
à beira desse cais onde Jesus nascia...
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia!

David Mourão-Ferreira
Cancioneiro de Natal (1971)

Saturday, December 19, 2020

A José Dias Coelho


Seja minha a tua força, irmão
seja meu o teu braço, camarada
Sejam estes muros não um paredão
sejam uma ponte ou mesmo uma estrada.

Seja nela meu o teu anseio, irmão
seja minha a luta que na tua terra travas
seja ela o fruto das coisas que amavas.

Sejam essas coisas, as mesmas, irmão
sejam as que amo aqui nesta cela
seja para sempre a minha na tua mão
seja para todos uma vida bela
seja nela o trigo com a sua cor dourada
sejam as papoilas vermelhas de querer
seja sempre o dia que sucede à madrugada
seja outro o sentido da palavra morrer.

Sejam os mortos aqui ao nosso lado
sejam os seus também os nossos passos
seja em luta o ódio acumulado
sejam retesados nossos membros lassos.

Sejam as colinas de vontade erguidas
seja a sua força a que do amado vem
sejam nossas as tuas palavras queridas
seja minha a tua vontade também.

E não há muros, bombas ou insultos
que detenham as árvores ao nascer da terra
nem façam brotar flores de pensamentos estultos
nem parar o sol. E não será a guerra
com que os lobos sonham em noites de orgia
que impedirão que nasçam.

Das auroras por nascer
das estruturas por erguer
dos caminhos por andar
das flores por brotar
estendem-se as mãos do futuro
que envolvem teu corpo de bandeira.
 

Alda Nogueira, 

(Prisão de Caxias, 1963)


OS MENINOS NASCEM


Vós podeis, tiranos, forjar ainda mais sólidas algemas,
chapear de aço as paredes das nossas e vossas cadeias,
e fazê-lo-eis;

Vós podeis, tiranos, cravar mais fundo as vossas baionetas,
esmagar-nos nas ruas debaixo das patas dos vossos cavalos,
e fazê-lo-eis;

Vós podeis, tiranos, roubar, incendiar, fuzilar sem descanso,
vedar os caminhos ainda livres, envenenar as fontes ainda puras,
e fazê-lo-eis;

Vós podeis, tiranos, vir de novo descarregar a vossa cólera
sobre Oradour,
lançar vossa chuva de raios sobre nosso humano desejo de viver,
e fazê-lo-eis,

Vós podeis, tiranos, inventar ainda piores suplícios,
mordaças mais espessas, baixezas mil vezes mais desumanas
para Buchenwald,

inutilmente o fareis:

Esta simples criancinha dormindo em seu berço,
este menino ainda na barriga de sua mãe, olhai
como vos fitam
serenos e terríveis.

Papiniano Carlos

Monday, December 07, 2020

Auto-Retrato

 


Poeta é certo mas de cetineta
fulgurante de mais para alguns olhos
bom artesão na arte da proveta
narciso de lombardas e repolhos.

Cozido à portuguesa mais as carnes
suculentas da auto-importância
com toicinho e talento ambas partes
do meu caldo entornado na infância.

Nos olhos uma folha de hortelã
que é verde como a esperança que amanhã
amanheça de vez a desventura.

Poeta de combate disparate
palavrão de machão no escaparate
porém morrendo aos poucos de ternura.

Ary dos Santos