Wednesday, September 11, 2024

Requiem por Salvador Allende


Foi de súbito no outono juro solenemente que o foi
mas as árvores fora tinham de novo folhas recentes
primavera no chile primavera no mundo
Sinto-me vivo habito muito de pé numa casa
leio vagarosamente os jornais sei devagar que os leio
enfrento meu velho borges o muito meu destino sul-americano
Acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
sentia-me importante conquistara palavras negação do tempo
o mar era mais meu sob a minha voz ali solta na praia
talvez voz metafísica decerto voz de um privilegiado
ombro a ombro com gente analfabeta uma gente sensível e leal
mas que não pode ler e vive muito menos por o não saber
embora saiba olhar o mar sem o saber interpretar
acabara um poema enchia o peito de ar junto da água
quando o irmão miguei veio pequeninamente pela areia
e convulsivamente me falou da situação no chile
veio pela praia e punha nas palavras mãos de solidão
mãos conviventes com outras palavras mãos que palavra a palavra
erguem um poema no silêncio só circundante
Allende tinha uns óculos os óculos tinham-no
com eles via a vida com eles via os homens via homens
via problemas de homens e as coisas que via eram coisas de homens
hoje apenas uns óculos sem nenhum olhar por detrás
Nos finais de setembro nos princípios de novembro
tu meu amigo que não posso nomear sem te denunciar
dar-me-ás talvez notícias tuas notícias meramente pessoais
já que projectos sociais projectos cívicos profissionais
ficariam decerto nas policiais desertas mãos dos generais
mãos que mataram mãos que assaltaram a casa de neruda
mãos limpas já do sangue despojadas já das alianças
que caridosamente deram que assim conseguiram
solucionar os prementes problemas do país
Ouvi falar também desse cargueiro playa larga
praia comprida mas praia deserta e não só na palavra
pois quanta praia tinha hoje só tem o sangue dos milhares das pessoas fuziladas
A onze de setembro nesta praia portuguesa só uns passos pela areia
algum poema terminado alienado algum termo conquistado
tão inefável como por exemplo o de tancazo
atribuído ao golpe orientado por pablo rodriguez
homem que vai modelando palavras ao ritmo martelado pelo ódio
na tentativa vã de destruir frases hoje históricas
do grande cavalheiro que decerto foi allende
e já antes de o dizer com a vida dizia que por exemplo
mais vale morrer de pé do que viver ajoelhado ou então
se as direitas me ajudam a ganhar ganharão as direitas
País amável calorosa entrada em Santiago
e ver-me em frente desse homem sozinho relutante em recorrer às armas
e que depois de o ter visto e o ter ouvido
ao homem que for homem poderei chamar-lhe
seja qual for o nome salvador allende
Que nestas minhas minerais palavras de poeta
vibre um pouco o vigor da tua voz
bafejando de paz primeiro o bom povo do chile
depois o povo bom de todo o inundo
Que a ignomínia da história não demore em cobrir com o seu manto
os que têm a força mas não têm a razão
pois o nazi-fascismo não ganhou nem nunca ganhará
Mando-te uma ave preta rente à leve ondulação do mar
tu mandas-me no mar a ave branca do teu rosto
vento que vem do mar vento que vem do chile
Aqui neste dia de súbito cinzento
somente povoado pelo meu sofrimento
e pelo pensamento desse sofrimento
voo também vou também eu nesse lenço
que retiro do bolso aqui à beira-mar
e o meu lenço ao vento é uma ave avesíssima uma ave de paz
uma ave avezada a cada uma das derrotas existentes no mar
somente agora destruída trespassada pela bala que leva uma vida
ave que ao entoar seu canto profundíssimo afinal apenas diz
muito obrigada salvador allende
obrigada por essa tua vida de cabeça erguida
só agora tombada trespassada pela bala que leva uma vida
mas não pode levar de vencida a obra por allende começada
selada por essa promessa de lutar até ao fim até à hora de morrer
nesse importante posto onde te investiram a lei e o povo
Foi no ano de mil novecentos e setenta
ano em que eu fiquei a apodrecer no meu país
que uma coligação do tipo frente popular tomou
pela via legal conta do poder no chile
legalidade sempre respeitada por ti allende
mas por fim desrespeitada pelos militares pelas direitas pela
cristã democracia partido bem pouco cristão e pouco democrático
Falavas tu dizias a verdade
falavas com palavras de verdade
uma bala na boca nessa boca donde ainda pouco antes
saíam as palavras na verdade belas como balas
salvador allende guerrilheiro sem metralhadora e sem boina
de casaco e gravata para essas guerrilhas no parlamento
guerrilhas todas elas tão contrárias à guerra quão favoráveis à paz
essa palavra alada como ave ave não só de georges braque
mas de nós todos aves verticais aves a última estação
árvores desfolhadas num definitivo inverno
allende do cansaço dos problemas da preocupação constante em jogares limpo
com quem em vez de mãos utensílio de paz vinha com bombas em lugar das mãos
allende já há muito tempo sem uns olhos para olhares o mar
e sem poderes olhar as pedras preciosas de que fala
pablo neruda teu e meu poeta teu íntimo amigo
em las piedras dei cielo esse livro puríssimo
e são pedras do céu mas mais do que céu pedras da terra
Sol que te pões e nascerás no chile
leva-me a um país que em criança conhecíamos apenas
dos sacos de serapilheira com o nome impresso de um nitrato
e não por dar o nome a uma pequena mas confusa praça de lisboa
nem por sair nas páginas diárias dos jornais
Do chile chegou-me não há muito a amizade do hernán
que em madrid conheci e não responde há muito às minhas cartas
e a de mais chilenos de olhos vagamente tristes sérios quase portugueses
e desse país mais comprido do globo veio-me também
o lápis-lazúli pedra não já de esperança pedra de amizade
Os camiões há muito já que não sulcavam as estradas do país
estradas bafejadas pela aragem enviada pelo mar por esse
oceano pacífico de um país ainda há pouco bem pacífico
O washington post falava já do golpe dias antes do golpe
ninguém falava delas mas elas encontravam-se ali mesmo
as autoridades militares as autoridades militares as autoridades americanas
vestiam mesmo as fardas do exército chileno
esses americanos gente do dinheiro e do veneno
de um veneno talvez chamado dinheiro
que terá pago em parte as modificações dos foguetes do tipo poseidon
montados já a bordo dos divinos submarinos nucleares americanos
assunto de política estrangeira americana
Hernán urrutia meu amigo austral
que em barajas vi olhar voltar
para mim a cabeça pela última vez
marcelo coddo professor em concepción
com quem que bem me lembro conversei sobre o poeta cardenal
e sobre a jovem poesia nicaraguense
e tantos outros que nem mesmo me terão deixado o nome
mas me deixaram alguma palavra a música da fala um certo sorriso
um certo olhar visível por detrás de uns óculos
talvez hoje quebrados por quem não considera
talvez suficiente o quebrar da vida na haste da vida
embora porventura tenha visto aquela sequência de fellini
e desconhece que afinal a vida reproduz a arte
Escreve este poema no jornal com as notícias frescas
após ter evitado ver as caras de triunfo desses locutores luzidios da televisão
e mesmo ter ouvido até a voz desse pedro moutinho
a voz das afluências ao nosso principal estádio o da cova da iria
e dos cortejos presidenciais o dessas tão espontâneas manifestações
voz afinal da cia e da itt e dos demais tentáculos
do imperialismo norte-americano
maneira americana de se estar no mundo
de estar no mundo arrebatando o pão dos homens do terceiro mundo
terceiro mundo ou melhor último mundo
que pagarão agora o preço da cabeça dos trabalhadores chilenos
que marcham mas decerto em vão na direcção
do centro de santiago onde vingara
a rebelião dos marinheiros vindos de valparaiso
cabeça dos imensos deserdados deste mundo
Sabíamos decerto um pouco em que consistia
essa via chilena para o socialismo
e líamos talvez um livro acerca do programa da chamada unidade popular
e discursos de allende naquela cidade distante
embora houvesse muito mais notícias nos jornais
e a gente nos cafés falasse mais em futebol
livro por certo lido com a janela aberta sobre a noite do outono
sobre campos relvados de momento habitados pela escuridão
donde talvez se erguiam cantos pouco menos que religiosos
exaltadores de ideologias já e sem remédio ultrapassadas
Era uma vez um chileno chamado salvador allende que
fez um grande país de um país pequeno onde
talvez três anos nós houvéssemos depositado a esperança
quando fosse qual fosse a nossa nacionalidade
todos nós fomos um pouco chilenos
Mas que diabo importa em suma a qualquer de nós
que um homem se detenha quando a história caminha
em frente sempre altiva e serena
como mulher de muito tempo sabedora
Posso dizer por certo como há já muitos anos
acerca dos milicianos espanhóis dizia neruda
allende não morreste estás de pé no trigo
Ruy Belo

Saturday, September 07, 2024

Almoço com neto Branco



Almoço com o neto mais velho dos 3 mais novos. Chegados ao restaurante, 'ataca' as azeitonas, o queijo, o chouriço. Chega a lista. Lê tudo e diz-me 'quero costeletas de borrego'. Deito-lhe água no copo, continua a comer, desta vez melão e presunto. E pega no prato do paio. E no pão, onde põe manteiga. E mais azeitonas. E eu, deliciada a vê-lo comer com prazer. O pai diz-lhe que tem ainda as costeletas para comer, ao que ele responde 'eu sei'. E zás, pega na casca do melão e
'rapa' o que resta a dente. O dono do restaurante mete-se com ele e ri-se.
Chegam as costeletas, cinco, com arroz, batata frita e feijão verde. Serve-se de arroz e batatas para o prato, pega numa costela à unha e assim a come. Vai à segunda e à terceira, que come pegando no osso e rapando a carne toda. (Menino de Lisboa, adquiriu rapidamente hábitos de alentejano). Depois diz 'já não quero mais'...
Ainda comeu uma mousse de chocolate e, se eu tivesse insistido, talvez tivesse comido a segunda.
Adoro estas boquinhas abençoadas!
E não há poema melhor do que este neto. ❤

Friday, September 06, 2024

O monte e o rio


Na minha pátria tem um monte.
Na minha pátria tem um rio.
Vem comigo.
A noite sobe ao monte.
A fome desce ao rio.
Vem comigo.
E quem são os que sofrem?
Não sei, porém são meus.
Vem comigo.
Não sei, porém me chamam
e nem dizem: “Sofremos”
Vem comigo
E me dizem:
“Teu povo,
teu povo abandonado
entre o monte e o rio,
com dores e com fome,
não quer lutar sozinho,
te está esperando, amigo.”
Ó tu, a quem eu amo,
pequena, grão vermelho
de trigo,
a luta será dura,
a vida será dura,
mas tu virás comigo
Pablo Neruda

Saturday, August 31, 2024

Discurso de Aquilino Ribeiro

Uma imagem com Cara humana, retrato, esboço, quadro

Descrição gerada automaticamente

AQUILINO RIBEIRO

 

“Meus queridos camaradas, olhem sempre em frente, olhem para o sol, não tenham medo de errar sendo originais, iconoclastas, o mais anti que puderem, e verdadeiros, fugindo aos velhos caminhos trilhados de pé posto e a todas as conjuras dos velhos do restelo. Cultivem a inquietação como uma fonte de renovamento. E, enquanto vivermos, façamos de conta que trabalhamos para a eternidade e que tudo o que é produção do nosso espírito fica gravado em bronze para juízes implacáveis julgarem à sua hora”.

.  Uma imagem com escrita à mão, file, Tipo de letra, desenhos de criança

Descrição gerada automaticamente

— AQUILINO RIBEIRO (Sernancelhe, Viseu, 13 de Setembro de 1885 — Lisboa, 27 de Maio de 1963), escritor, no discurso que proferiu aquando da homenagem que lhe foi prestada pelos seus 50 anos de vida literária.

Sunday, August 25, 2024

Wednesday, August 21, 2024

Amiga

Quando já nada resta
nem o cavalinho de pau
em que guardámos
os sonhos das crianças
Quando o fumo da cidade
nos dói de pólvora e estilhaços
porque das chaminés não sobra
nem sequer o preconceito
Ergue-se ainda, confusa e serena,
uma esperança, uma amiga,
a glória e a raiva
vermelha e doce
que nos incendeia a vida.
CG
28.11.1977

Sunday, August 18, 2024

Alma ausente


No te conoce el toro ni la higuera,
ni caballos ni hormigas de tu casa.
No te conoce el niño ni la tarde
porque te has muerto para siempre.
No te conoce el lomo de la piedra,
ni el raso negro donde te destrozas.
No te conoce tu recuerdo mudo
porque te has muerto para siempre.
El otoño vendrá con caracolas,
uva de niebla y montes agrupados,
pero nadie querrá mirar tus ojos
porque te has muerto para siempre.
Porque te has muerto para siempre,
como todos los muertos de la Tierra,
como todos los muertos que se olvidan
en un montón de perros apagados.
No te conoce nadie. No. Pero yo te canto.
Yo canto para luego tu perfil y tu gracia.
La madurez insigne de tu conocimiento.
Tu apetencia de muerte y el gusto de su boca.
La tristeza que tuvo tu valiente alegría.
Tardará mucho tiempo en nacer, si es que nace,
un andaluz tan claro, tan rico de aventura.
Yo canto su elegancia con palabras que gimen
y recuerdo una brisa triste por los olivos.
Federico Garcia Lorca

Saturday, August 17, 2024

Amar

Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer, amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?

Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal,
senão rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?

Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o cru,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e
uma ave de rapina.

Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.

Amar a nossa falta mesma de amor,
e na secura nossa amar a água implícita,
e o beijo tácito, e a sede infinita.

Carlos Drummond de Andrade
31.10.1902 - 17.8.1987

Wednesday, August 07, 2024

Memória da Mísia

Da página do Diogo Varela Silva

Hoje despedimo-nos da Mísia. Foi abraçada pelo xaile da sua avó, o mesmo xaile que a abraçava neste vídeo.
Foi com uma lágrima no olho e um sorriso maroto (tão típico nela) que nos despedimos, numa linda cerimónia, onde, entre outras coisas, a Isabel Ruth nos leu a Carta a Deus, de Mísia:
Mísia
July 26, 2017 ·
CARTA A DEUS ( Mísia)
Querido Deus
Não sei se te lembras de mim e de um episódio passado há muito tempo, no Colégio Liverpool no Porto. Com treze anos e depois de ler "Porque não sou Cristão" (tu sabes qual o autor), com a frontalidade que ainda hoje conservo, fui direita bater à porta do gabinete da Madre Directora comunicar-lhe pessoalmente que já não acreditava em Ti.
A seguir deitei fora a minha coleção de santinhos de que tanto gostava , suas nuvens trespassadas por feixes de luz celestial.
Interna desde os seis anos, fiquei mais só a partir desse dia. Uma solidão cósmica, sem nenhuma luz ao fundo do corredor. Viisualizava-me como uma astronauta pendurada pelo cordão da cápsula espacial, com o negro infinito do espaço como edredon eterno.
Três anos mais tarde li "O Mito de Sísifo" e então aí é que ficou tudo estragado entre nós.
Hoje percebo que a função da ideia de Ti teria sido uma útil consolação para o vazio afectivo daqueles anos e dos seguintes. Mas nesse tempo eu ainda não possuia a sabedoria necessária para aceitar que a verdade não é o que mais interessa, e que a ideia de Ti não tem um valor fixo.
Não sabia que a tua morte pode ser um enorme vazio, sobretudo para uma agnóstica como eu.
Sou hoje uma agnóstica não praticante. Pago promessas na ilha japonesa de Enoshima, a BentenSan - ciumenta deusa das gueishas, dos artistas e jogadores - e trago sempre comigo um minusculo Stº António (versão homeopática )que faz tudo o que lhe peço: só milagres muito pequeninos e sempre possíveis.
De facto, nunca me refiz do luto de Ti .
Por isso a voz desta carta é ainda a daquela aluna que não quis mentir por omissão. Por isso, esta é uma carta íntima só entre tu e eu , um textinho sem grandeza ou sombra literária , sem pretensões deontológicas. Nada de Heidegger , Levinas , Nietzsche ou Coleridge e a sua suspensão da incredulidade.
Querido Deus, tenho tantas perguntas a fazer-te! Algumas desde os treze anos, outras desde ontem.
É verdade que depois de crear o mundo, te foste embora não vendo assim o que fizeste?
Nunca viste os tsunamis que nos engolem, os fogos que nos abrasam, os ventos que nos estrelam contra coisas duras, e os raios que nos partem?
Nem as crianças em fase terminal nos hospitais morrendo devagar , com olhos febris como lagos cintilantes?
Porquê tiveste tanta imaginação para células doentes e virus mutantes?
Não sabes nada da falta de compaixão da humanidade, da tortura , das violações, da crueldade entre nós ? Do nosso sofrimento físico e moral ? "Heavy furniture", querido Deus....
Talvez as minhas perguntas te pareçam impertinentemente ingénuas, mas - qual Lilith- fiquei para sempre cristalizada no estádio de estarrecimento primário que me provocou e provoca o tipo de lugar em que nos puseste.
Dirás que só te falo de grandes catástrofes e da barbárie mais extrema. Que as flores são lindas ,que as joaninhas têm design dos sixties, que os passarinhos cantam e que as crianças sorriem sem motivo. Sim, são excelentes argumentos aos quais sou sensível, mas não chegam para acalmar mil dúvidas (algumas bastante quotidianas), acumuladas desde o Colégio Liverpool.
És capaz de assitir a um documentário da National Geographic sem tapar os olhos quando o bebé antilope mais frágil, de pernas a tremelicar imenso, vai ser mesmo comido ?
E a calçada portuguesa, não podias fazer de maneira que continuasse a ser "tãaao linda! " mas menos letal de modo a não enviar para a traumatologia os idosos com osteoporose ? E já agora, que também se pudesse andar com sapatos de tacão sem o risco de partirmos a moleirinha?
Não achas que evitar a segunda parte de Bambi teria sido uma boa operação de marketing para a tua imagem?
Por favor Deus, diz que sim!Não podias inventar um nome mais poético para Ranholas?
Temos também o caso da estátua do Pessoa no Chiado - ele tão pouco sociável- numa exposição sem defesa, entregue aos turistas de Badajoz. Achas que ele merecia uma coisa assim?
E pela Tua Santa Saúde, nao podias aconselhar o João Braga a decidir de uma vez por todas em que tom quer cantar?
Desculpa a irrelevância e a provocação de algumas questões mas como muito bem sabes, fizeste-me irresistivelmente imperfeita. Poderia continuar a importunar-te com a minha curiosidade, mas com que sentido perguntar ad aeternum?
Não sei se algum dia e de que maneira me responderás. ...Nem sei se ainda quero as Tuas respostas. Era de facto mais fácil até aos treze anos quando estavas dentro de mim e não precisava de te escrever.
Lenta genuflexão,
Mísia
Ps: Ah, já me esquecia!
Obrigada pelos pinguins, cães salsichas, peixinhos da horta e tremoços .
Pela maravilhosa Celeste Rodrigues, Yoshitomo Nara e Mahler.
Obrigada pelas palavras" cogumelo e borboleta ".(Delete "fronha" please)
Obrigada pelo milagre das cerejeiras em flor e pelos barquinhos de papel.
Ten points por Veneza! Yess!
Sincera e eternamente agradecida pelo meu fantástico gato Virgula!

Saturday, August 03, 2024

Princípio do fim de Salazar

Princípio do fim de Salazar começou a 3 de Agosto de 1968
Hilário emprestou-lhe o «Diário de Notícias». O ditador de Santa Comba Dão, que governava o país com punho de ferro e era «muito cabeça no ar», como recordava o seu barbeiro Manuel Marques, deixou-se cair para uma cadeira de lona.
Com o peso, António Oliveira Salazar tomba para trás. Com violência, cai no chão e a cabeça dá uma pancada nas lajes do terraço do forte onde anualmente passava as férias, acompanhado pela governanta, Maria de Jesus, a famosa D. Maria.
D. Maria, e Hilário, que estava a lavar as mãos numa bacia, precipitam-se para Salazar. Ele levanta-se, atordoado. Queixa-se de dores no corpo, mas pede segredo sobre a queda nem quer que chamem os médicos - é o que conta Franco Nogueira, no livro «Salazar, Volume VI - O Último Combate (1964-70)».
Outra testemunha, o barbeiro Manuel Marques, contou Fernando Dacosta, na revista Visão, em 1998, contraria esta tese. Afinal, Salazar não caiu na cadeira de lona, já desaparecida, mas tombou no chão desamparado.
Diz o barbeiro que Salazar «não se apercebeu, nessa manhã que a cadeira, onde se deveria instalar, se encontrava fora do sítio». «O dr. Salazar era muito educado, mas muito cabeça no ar», lembra.
A vida de António Oliveira Salazar prossegue normal. Hilário trata as unhas do ditador e só três dias depois é que o médico do presidente do conselho com o que se passou ao seu médico, Eduardo Coelho.
A 19 de Agosto, embora mal disposto, o chefe do executivo vai ao Palácio de Belém para assistir à posse daquele que viria a ser o seu último governo.
Só 16 dias depois, a 04 de Setembro, Salazar admite que se sente doente - «não sei o que tenho». A 06 de Setembro, à noite, sai um carro de São Bento. Com o médico, Salazar e, no lugar da frente, o director da PIDE, Silva Pais.
Envolto na noite e em segredo, a Censura encarregava-se de evitar qualquer notícia, Salazar é internado no Hospital de São José e os médicos não se entendem quanto ao diagnóstico - hematoma intracraniano ou trombose cerebral - mas concordam que é preciso operar, o que acontece a 07 de Setembro.
Só nesse dia sai o primeiro boletim clínico e se resume a uma frase: «O sr. Presidente de Conselho foi operado esta noite de um hematoma, sob anestesia local, encontrando-se bem».
A 16 de Setembro, o ditador desmaia, no Centro de Saúde de Benfica, onde ficou internado, e a situação agrava-se com uma hemorragia no cérebro. A médicos e até ao Cardeal Cerejeira é exigido segredo.
Nove dias depois, o presidente Américo Tomás é informado pelos médicos de que «a vida política de Salazar está terminada» e começam os contactos para formar um novo governo.
A 26 de Setembro, Tomás anuncia a substituição de Salazar e no dia seguinte Marcelo Caetano toma posse. O ditador tinha governado Portugal 40 anos, quatro meses e 28 dias.
O país é informado da substituição de Salazar por Marcelo, que dá início a uma tentativa de abertura do regime, mas o professor de finanças públicas foi o único a pensar que ainda estava na cadeira do poder.
A encenação à volta do ex-presidente do conselho deposto durou ainda dois anos.
«Há uma ficção de tragédia posta em teatro: Salazar vivendo na residência oficial do chefe de Governo. Salazar recebendo ministros, embaixadores, jornalistas estrangeiros. Salazar discutindo política, concedendo entrevistas. E Salazar sendo somente um grande inválido despojado de todo o poder terreno, cidadão como os outros, sem dúvida carregado de passado, de história, de simbologia nos seus princípios, e do poder próprio de uma autoridade moral», escreve Franco Nogueira.
A 15 de Julho de 1970, é acometido por uma grave «doença infecciosa» e 11 dias depois Salazar agoniza com perturbações cardiovasculares, funções renais, edema pulmonar. Gomes Duarte, pároco da Estrela, dá-lhe a extrema-unção.
Os médicos declararam a morte de António Oliveira Salazar às 09:15 de 27 de Julho de 1970. Morreu aos 81 anos.

Diário Digital / Lusa

Sunday, July 28, 2024

o caminho


talvez tenhamos escolhido o mais acidentado dos trilhos
porque os suaves não tinham sequer início
talvez a lonjura do possível
voe nas asas desse pássaro quase negro
no ardor sob o peito que prende ao diafragma o pulmão
e faz temer o colapso do amor-abismo
de onde todos queremos precipitar-nos
em salto de fé
o mapa não está revelado
mas sabemos que há demasiadas fortificações pelo caminho
assaltá-las-emos de exércitos unidos
derrubando os monarcas de todo o continente um-por-um
e espalhando cactos que, mesmo sem água séculos,
florescerão em jardim.

Miguel Tiago

Sunday, July 14, 2024

Plateia

Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!
Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.
E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.

Miguel Torga
in “Câmara Ardente” - 1962

Monday, July 01, 2024

Fausto Bordalo Dias


O PCP manifesta o seu pesar pelo falecimento de Fausto Bordalo Dias, um dos nomes marcantes da música portuguesa.

O PCP salienta o papel de Fausto Bordalo Dias, o compositor e cantor, criador de muitas das mais belas canções portuguesas ao longo de toda a sua carreira artística.

O PCP jamais esquecerá o facto de Fausto Bordalo Dias ter aceite o convite, em 1985, para fazer o arranjo musical da Carvalhesa, música popular portuguesa, originária de Trás-os-Montes que acompanha a actividade política do PCP em sucessivas campanhas eleitorais e na Festa do Avante!, que desperta de forma viva e entusiástica a alegria e confiança no futuro.

Neste momento difícil, o PCP endereça à família as mais sentidas condolências.

Sunday, June 23, 2024

Canção da minha tristeza

Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
Nada acontece. Nada. Nem, ao menos, tu
virás despentear os meus cabelos.
Nem, ao menos, tu, neste tempo de angústia
vens dizer o meu nome ou cobrir-me de beijos.
Ah, meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
A cidade enlouquece os meus olhos de pássaro.
Eu recuso as palavras. Sei o nome da chuva.
Quero amar-te, sim. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.
Nada acontece. Nada. E eu procuro-te
por dentro da noite, com mãos de surpresa.
Meu coração não está nas largas avenidas
nem repousa à tarde, para lá do rio.
E tu, longe, longe. Onde estás meu amor,
que não vens despentear os meus cabelos?
Eu quero amar-te. Mas tu hoje não voltas.
Tu não virás, nunca mais, ó minha amiga.

Joaquim Pessoa

Wednesday, June 19, 2024

Nos 80 anos de Chico



Hoje o amigo Chico Buarque completa 80 anos de vida.
Muitos parabéns ao artista brasileiro!

Lanzarote, 19 de março de 1997
Meu caro Chico,
Acabámos de ouvir a belíssima música e as belíssimas palavras de Levantados do Chão. Ouvimo-las emocionados, como se as estivessem cantando todos os homens e mulheres sem terra desse dorido Brasil. Graças ao teu talento e ao teu coração generoso, a gente sofredora do campo tem agora o seu hino. Oxalá ele venha a ser cantado e ouvido em todas as partes do mundo onde falta a justiça e o direito é negado. Quanto a mim, ficar-te-ei para sempre agradecido por teres dado à tua canção o título de um livro meu. Podes imaginar a alegria que isso me dá. E também o orgulho.
Recebe o nosso fraterno abraço,

José Saramago
In "Saramago, os seus nomes" (Porto Editora e Companhia das Letras, 2022) 

LEVANTADOS DO CHÃO
Milton "Bituca" Nascimento e Chico Buarque
Como então? Desgarrados da terra?
Como assim? Levantados do chão?
Como embaixo dos pés uma terra
Como água escorrendo da mão?
Como em sonho correr numa estrada?
Deslizando no mesmo lugar?
Como em sonho perder a passada
E no oco da Terra tombar?
Como então? Desgarrados da terra?
Como assim? Levantados do chão?
Ou na planta dos pés uma terra
Como água na palma da mão?
Habitar uma lama sem fundo?
Como em cama de pó se deitar?
Num balanço de rede sem rede
Ver o mundo de pernas pro ar?
Como assim? Levitante colono?
Pasto aéreo? Celeste curral?
Um rebanho nas nuvens? Mas como?
Boi alado? Alazão sideral?
Que esquisita lavoura! Mas como?
Um arado no espaço? Será?
Choverá que laranja? Que pomo?
Gomo? Sumo? Granizo? Maná?