Monday, November 10, 2025

A LÂMPADA MARINHA

 
Porto cor de céu
I
Quando de­sem­barcas
em Lisboa,
céu ce­leste e rosa rosa,
es­tuque branco e ouro,
pé­talas de la­drilho,
as casas,
as portas,
os tectos,
as ja­nelas
sal­pi­cadas do ouro verde dos li­mões,
do azul ul­tra­ma­rino dos na­vios,
quando de­sem­barcas,
não co­nheces,
não sabes que por de­trás das ja­nelas
es­cura,
ronda,
a po­lícia negra,
os car­ce­reiros de luto
de Sa­lazar, per­feitos
fi­lhos de sa­cristia a ca­la­bouço,
des­pa­chando presos para as ilhas,
con­de­nando ao si­lêncio
pu­lu­lando
como es­qua­drões de sombra
sobre ja­nelas verdes,
entre montes azuis,
a po­lícia,
sob ou­to­nais cor­nu­có­pias,
a po­lícia,
pro­cu­rando por­tu­gueses,
es­car­vando o solo,
des­ti­nando os ho­mens à sombra.
A cí­tara es­que­cida
II
Ó Por­tugal for­moso,
cesta de frutas e flores ?
emerges na pra­teada margem do oceano,
na es­puma da Eu­ropa,
com a cí­tara de ouro
que te deixou Ca­mões,
can­tando com do­çura,
es­par­zindo nas bocas do Atlân­tico
teu tem­pes­tuoso odor de vi­nharia,
de flores ci­dreiras e ma­ri­nhas,
tua lu­mi­nosa lua en­tre­cor­tada
de nu­vens e tor­mentas.
Os pre­sí­dios
III
Mas,
por­tu­guês da rua, entre nós,
nin­guém
nos es­cuta,
sabes
onde
está Álvaro Cu­nhal?
Sabes, ou al­guém o sabe,
como morreu,
o va­lente,
Mi­litão?
E sua mu­lher sabes tu
que en­lou­queceu sob tor­turas?
Moça por­tu­guesa,
passas como que bai­lando
pelas ruas
ro­sadas de Lisboa,
mas
sabes,
sabes onde morreu Bento Gon­çalves,
o por­tu­guês mais puro,
honra de teu mar, de tua areia,
sabes
que nin­guém volta ja­mais
da Ilha
da Ilha do Sal,
que Tar­rafal se chama
o campo da morte?
Sim, tu sabes, moça,
rapaz, sim to sabes,
em si­lêncio
a pa­lavra anda com len­tidão mas per­corre
não só Por­tugal senão a Terra.
Sim, sa­bemos,
em re­motos países,
que há trinta anos
uma lá­pide
es­pessa como tú­mulo ou como tú­nica,
de cle­rical mor­cego,
afoga Por­tugal, teu triste trino,
sal­pica tua do­çura,
com gotas de mar­tírio
e mantém suas cú­pulas de sombra.
O mar e os jas­mins
IV
Da tua pe­quena mão ou­trora
saíram cri­a­turas
dis­se­mi­nadas
no as­sombro da ge­o­grafia.
Assim, a ti volveu Ca­mões
para deixar-te o ramo de jas­mins
sem­pi­terno a flo­rescer.
A in­te­li­gência ardeu qual vinho
de trans­pa­rentes uvas
em tua raça,
Guerra Jun­queiro
entre as ondas
deixou cair o trovão
de li­ber­dade bravia
trans­por­tando o Oceano a seu cantar,
e ou­tros mul­ti­pli­caram
teu es­plendor de ro­sais e ra­cimos
como se de teu es­treito ter­ri­tório
saíssem grandes mãos
der­ra­mando se­mentes
pela terra toda.
Não obs­tante,
o tempo te so­terrou,
o pó cle­rical
acu­mu­lado em Coimbra
caiu sobre teu rosto
de la­ranja oceâ­nica
e co­briu o es­plendor de tua cin­tura.
A lâm­pada ma­rinha
V
Por­tugal,
volta ao mar, a teus na­vios
Por­tugal volta ao homem, ao ma­ri­nheiro,
volve à terra tua, à tua fra­grância,
à tua razão livre no vento,
de novo
à luz ma­tu­tina
do cravo e da es­puma.
Mostra-nos teu te­souro,
teus ho­mens, tuas mu­lheres,
não es­condas mais teu rosto
de em­bar­cação va­lente
posta nas avan­çadas do Oceano.
Por­tugal, na­ve­gante,
des­co­bridor de Ilhas,
in­ventor de pi­mentas,
des­cobre o novo homem,
as ilhas as­som­bradas,
des­cobre o ar­qui­pé­lago no tempo.
A sú­bita
Apa­rição
do pão
sobre a mesa,
a au­rora,
tu, des­cobre-a,
des­co­bridor de au­roras.
Como é isso?
Como podes negar-te
ao ciclo da luz tu que mos­tras-te
ca­mi­nhos aos cegos?
Tu, doce e férreo e velho,
es­treito e amplo Pai
do ho­ri­zonte, como
podes fe­char a porta
aos novos ra­cimos,
ao vento com es­trelas do Ori­ente?
Proa da Eu­ropa, pro­cura
na cor­ren­teza
as ondas an­ces­trais,
a ma­rí­tima barba
de Ca­mões.
Rompe
as teias de aranha que co­brem
tua fra­grante copa de ver­dura
e então
a nós ou­tros, fi­lhos dos teus fi­lhos,
aqueles para quem des­co­briste a areia
até então es­cura
da ge­o­grafia des­lum­brante,
mostra-nos que tu podes
atra­vessar de novo
o novo mar es­curo
e des­co­brir o homem que nasceu
nas mai­ores ilhas da terra.
Na­vega, Por­tugal, a hora
chegou, le­vanta
tua es­ta­tura de proa
e entre as ilhas e os ho­mens volve
a ser ca­minho.
A esta idade agrega
tua luz, volta a ser lâm­pada
apren­derás de novo a ser es­trela.
(PABLO NERUDA)
* Poema de Pablo Neruda inserido na campanha internacional para a libertação de Álvaro Cunhal, 1954.
Nesta campanha internacional participaram muitos outros intelectuais progressistas da época, entre os quais o escritor brasileiro Jorge Amado.