Thursday, January 26, 2012
CAFÉ EUROPA
Café Europa
Mário Domingos
3,949 votos
7º lugar no ranking
Pá, topa-me a Car a rachar lenha, está práli há mais de meia hora e parece que cada vez dá mais força ao machado,
Era um espectáculo a partir lenha, a Carmelinda, Car por diminutivo carinhoso, rapariga dos seus 15 anos, baixinha e forte, vinda lá das serranias
Aquilo é só saúde, pá, mas é um bocadito p'ró gordo, não
Jorge, de gorda não tem ela nada, é mas é forte,
A Car tinha realmente uma força impressionante, quando as bolas ficavam presas nos matraquilhos chamávamos a Car e ela levantava a mesa em dois pés e aplicava-lhe um tal safanão que a traquitana cuspia as bolas como se tivesse sido atingida por um raio
E olha que andava lá perto, olha que andava lá perto,
E ficava depois a mirar-nos vitoriosa, consciente da proeza e da nossa admiração, como se dissesse quatro gajos, ou dois gajos e duas gajas, que elas também jogavam, e nem sempre à defesa como era costume, e não são capazes de fazer o que eu fiz,
E olha que não éramos,
Ali no pátio onde rachava lenha, onde jogávamos matraquilhos, por onde passávamos para chegar à sala das flippers
Lembras-te das horas que conseguíamos jogar à pala dos bónus
Se me lembro, pá, se me lembro, suma bónus, éramos verdadeiros profissionais das flippers,
Ali no Café Europa, que também tinha salão de bilhares e pensão no primeiro andar, que dava para veraneantes, caixeiros de passagem ou encontros de uma ou mais horas, que tinha sido casino nos tempos áureos, com mesas de póquer e jogadores da casa e tudo, que congregava ainda gente de diferentes naipes à volta das mesas com tampo marmoreado, bica e serração, que é como quem diz conversa pelo simples gosto da conversa, falar sobre tudo e nada e conhecermo-nos cada vez melhor, aquilo a que também se chamava rendimento, o pessoal ficava a render por dentro das noites e pronto
Olha, lá vem o Lobão com os Três Porquinhos,
O Lobão era na realidade o Corvo-Mor, rapaz para os seus vintes que vestia invariavelmente de preto, a condizer com o cabelo, autêntico precursor do estilo gótico de vestir, os porquinhos três irmãs de nariz assim para o arrebitado, ora o Corvo-Mor namorava uma das manas e andava sempre com as três, logo a promoção a Lobão passando no picadeiro provavelmente em direcção à praia
Vai um snooker?
Que era como chamávamos ao jogo do eight-ball, apesar dos cartazes afixados mesmo acima dos marcadores, Regulamento do Jogo de Bilhar Eight-Ball, e ia um snooker sim, ou um bilhar francês
O Xico é que joga disto, caraças
Pois o Xico,
Mas isto era já o bilhar às três tabelas, uma única mesa bem tratada, às vezes apareciam uns craques nacionais, só que o Xico era da casa e podíamos admirá-lo quando vinha a terra, andava nos barcos e era genro do Daniel, dono do Café Europa, que tinha um olho de vidro, e por isso dizia o Duarte
O Daniel tem olho para o negócio,
O Duarte encostado à ombreira da porta do Europa, a perna direita flectida e a sola do sapato clássico apoiada na parede
Então, Duarte, sempre preparado para qualquer eventualidade
Sempre preparado,
Podia imaginar quais fossem as eventualidades, mas nunca consegui perceber em que consistiria a preparação, não certamente o preparado de que anos mais tarde falaria o Teixeira, no terceiro andar do prédio do Imperial, e tinha mesmo olho para o negócio, o Daniel, conseguia manter o complexo café-restaurante-pensão-bilhares-matraquilhos & flippers com algum lucro, apesar da concorrência do vizinho Nicola, que não tinha pensão mas a finesse da Albergaria onde pernoitavam bailarinas e turistas de mais posses, não tantas que dessem para os grandes hotéis, o Café Europa onde ainda se jogava póquer, mas de dados
Fúlen outra vez, pá, que mijado
Mijado o caraças, é preciso saber atirá-los,
Os dados, nove pintas pretas, dez pintas vermelhas, valete J verde, dama Q azul, rei K vermelho e Ases iguais aos de espadas dos baralhos de cartas que já não se jogavam no Europa, onde entretanto
Chegou o Django, lá vem o gajo direito à nossa mesa,
Django por causa do chapéu preto e do poncho preto, Django e não Zorro, poncho e não capa, diferenças significativas, o Django sentava-se à mesa, avaliava os circunstantes, escolhia a vítima e
Pá, alinhas em me pagar um prego,
E alinhávamos a meias ou a três ou a quatro e, acabado o prego no prato, com o resto da imperial em curso o Django lançava-se numa espectacular tirada filosófica
Que é que o gajo 'tá práli a dizer,
E ele impávido e sereno, sem perder o fio à presumível meada, convicto e assertivo entre goles de cerveja e miradas de soslaio para controlo da audiência e, quando já poucos aguentavam a atenção, concluindo
E assim se prova, meus amigos, que uma vez não são vezes,
Os risos contidos e o homem de negro levantava-se, cumprimentava e saía até à próxima
Até à próxima,
Onde parará agora o Django, onde pararão o Viegas, o Teixeira, o Paulino e outros loucos dos cafés e afins desses tempos que não pudemos viver juntos, o Europa no Verão, a esplanada cheia, o Gabriel sem mãos a medir
Ó Esgrabiel, então nunca mais saem as imperiais,
Reclamavam o Balhelha, o Catrapana, o Cachapim, o Chaga, o Baptista-Leninista ou Classe Operária, o Campos ou Campesinato, o Cenoura, o Chico-Bomba, a Formiga, a Pratinho de Arroz Doce, o LTS ou Luta dos Trabalhadores Socialistas, hipotético partido de um só militante, logo a verdadeira aproximação da cúpula às bases, o China, o Faca, os Corvos Gémeos, a Nita, o Luis “Corvalán”,
e o Gabriel,
que costumava dizer Sibéria, quílheche, nem as focas lá páram, esforçava-se,
mas nem assim,
o ar quente e a maresia e os espanhóis a fazerem piscinas no picadeiro
Têm mesmo cara de espanhóis, os sacanas
E levantava-se o grupo da mesa, inspirava-se e media-se o ar nocturno, acendia-se um cigarrito, e às primeiras passas
Está uma bela noite,
E sorríamos porque nesses tempos,
que podemos reviver juntos,
está uma bela noite significava tudo menos um convite a gozar a noite em passeios sem destino, às vezes andávamos e andávamos, calados, que falar não fazia falta apesar dos prazeres da serração, assomávamos à esplanada sobranceira ao mar, descíamos as escadas, atravessávamos a marginal, e não havia pares nem casais, havia elas e eles conforme a noite e a disposição, calados e pensativos, cigarro atrás de cigarro, invadíamos finalmente a praia, surgiam violas e vozes do nada ou do escuro da noite, acendia-se talvez uma fogueira e à volta dela canções e risos, mas nunca quando
Está uma bela noite,
Aí sentíamo-nos incrivelmente unidos, nesse instante de aspirar o fumo e a ligeira brisa, em uníssono, cúmplices supremamente serenos, guardávamos momentos mágicos e sabíamos perfeitamente que íamos jogar póquer ou às máquinas ou mais tarde petiscar a casa de alguém, e nunca apreciar a noite lá fora, porque estava uma bela noite e aparecia o Ruivo
Então, pessoal
Então, Ruivo
Aquela gaja está a olhar p'ra mim
E daí Ruivo
Daí que quer festa, quando uma gaja olha p'ra mim é porque quer festa,
O Ruivo tinha uma ideia um bocadito arcaica das relações entre pessoas de sexo diferente, isto para não falar nas do mesmo sexo, e tinha pouca sorte à lerpa
Porra, sou sempre o mesmo cristo,
Mas desistir nunca, o Ruivo nunca desistia, lerpava até às quinhentas, e não tinha fera, que é como quem diz namorada ou mulher, alguém se lembrou de chamar feras às que não alinhavam nas andanças da noite, as feras ficavam portanto em casa por opção, porque não tinham pedalada, e isso às que a tinham dava-lhes uma certa pena, mas que fazer nesses tempos que podemos viver agora juntos, de tomar a bica e render e tudo no Café Europa e acender fogueiras na praia e guitarras e cantos e jogar matraquilhos e flippers e dados e bilhar e snooker
O pessoal quer é jogar jogos,
Ou dar um salto em grupinho de pares comandado pelo filho da Dona Alice à sua casa grande e rica de quartos,
a Dona Alice, viúva trabalhadora, até era uma senhora progressista, mas uma tarde foi a casa inesperadamente e ouviu ruídos vindos do quarto da filha, ora a filha estava a estudar fora, não podia ser ela, e não era, descobriu a viúva quando abriu a porta e o Carlos saltou da cama em cuecas e, impávido e sereno, cumprimentou a dona da casa e informou
Estava aqui a ter uma conversa com uma amiga,
Apontando vagamente a Branca, paralizada na cama em trajes bastante menores
Ó Carlos, na cama da minha filha, na cama da minha filha,
E o Carlos com aquele sorriso simpático e sincero, sem se desfazer, e mais tarde no Europa
reafirmando convicto perante a Luísa, a Guida, a Ana, a Linda, a própria Branca
Pois, o pessoal quer é jogar jogos,
E ainda mais tarde em casa de alguém disponível, duas cartas na mão, cinco a caírem uma a uma na mesa, cerveja, uísque ou brandy e petiscos preparados por uma anfitriã espectacular, que até fazia uma perninha no póquer, tudo isto a atravessar a madrugada, as madrugadas
Corre os estores que já é quase dia, porra,
Porque era preciso prolongar a noite, a dimensão da noite, a espessura da noite, aproveitar o riso que já é amanhã mas
Quero lá saber, caraças, é noite, és tu a dar.
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7 comments:
Isabel said...
Obrigada, Maria, pela tua visita!!!! Há muito que não escrevo nada no meu bloco virtual; porém, no bloco de e com cheiro a papel, lá vou gatafunhando.
Breve, vou voltar...faz-me falta!
Beijinho e obrigada por "me chamares". :)
January 26, 2012 6:10 PM
trepadeira said...
Gostei.
Um abraço,
mário
January 26, 2012 7:27 PM
Tenho andado ausente mas agora deliciei-me com o Mário. Um abraço esteja ele onde estiver. Talvez nos encontremos todos em Maio.
Abreijo.
Saudades, já. Fica a sua escrita inteligente e humanista!
Não o cheguei a conhecer, mas tive conhecimento da sua partida, é tão triste ... fica a sua obra.
Um abraço Maria.
mariam
...tinha-me cruzado com ele, há dias. Falámos do livro...do autógrafo e de uma próxima tertúlia...com fotografia a preto e branco...
Hoje falo no silêncio da despedida e recordo o que me escreveu no livro...tão simples como o seu olhar.
Por vezes, somos assim acordados...com notícias que nos gelam a alma.
Beijo... amiga!
Maria:
Desconheço o Márío, gostei muito da sua escrita.
não tenho resposta para estas coisas, não tenho mesmo!
beijo
João
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