Wednesday, October 14, 2009

Deixo-vos com José Gomes Ferreira

Homens: na noite do desânimo
levanto a minha voz
para pregar o ódio.

Um ódio total e violento
a todos os narcóticos
que adormecem a realidade
com neblinas de música.

Ódio às lágrimas mal choradas diante dos poentes,
à alegria das crianças mortas que teimam em rir nos olhos dos velhos,
às noites de insónia por causa de uma mulher,
às flores que iluminam os mortos de alma,
ao álcool da arte-pura-para-esquecer,
aos versos por dentro das palavras,
aos versos com túneis acesos por dentro das palavras,
aos pássaros a cantarem os perfumes das árvores secas,
às valsas com voos de tule
- e até ao sol
que diminui o mundo
em indiferença de continuar.

Ódio ao mar a modelar deuses
nos nossos corpos feios de tanto se julgarem belos.

Ódio à primavera
- essa mulher voadora
que entra pelas janelas
com asas azuis
para que a nossa dor
pareça preguiça de existir.

Ódio às serenatas que o luar faz do céu à terra,
às pétalas nos cabelos dos fantasmas ao vento,
às mãos-dadas nas sendas brancas dos idílios,
à pele de frio doce dos amantes,
aos colos das mães a embalarem futuro,
às crianças com céus do tamanho dos olhos,
às cartas de paixão a prometerem suicídios (para beijos mais fundos),
às insinuações de paraíso nas vozes de pedir esmola,
às escadas de corda nos olhos das noivas das trapeiras,
às danças a perfumarem de sexo a derrota,
às ninfas disfarçadas em canteiros de jardins,
e aos recantos foscos
onde escondemos a Verdade
em galerias de evasão
- só para que os nossos olhos continuem límpidos
a ignorarem todos os negrumes
com escadas até ao centro da terra.

Ódio ao disfarce, às máscaras, ao «falemos noutra coisa»,
aos desvios, às fontes dos claustros, ao «vamos logo ao cinema»,
aos problemas de xadrez, aos dramas de ciúme, às infantas do fogo das lareiras,
e aos que não têm a coragem
de estacar, pálidos,
com unhas na carne
a olhar de frente,
sem arrancar os olhos,
os caminhos dos mortos sagrados
até aos horizontes onde os homens se ofuscam das manhãs virgens.

Ódio a todas as fugas, a todos os véus,
a todas as aceitações, a todas as morfinas,
a todas as mãos ocas das prostitutas,
a todas as mulheres nuas em coxins de afagos,
para nos obrigarem a esquecer...

Mas eu não quero esquecer, ouviram?
Não quero esquecer!

Quero lembrar-me sempre, sempre e sempre
deste minuto de abismo,
para transmiti-lo de alma em alma,
de treva em treva,
de corvo em corvo,
de escarpa em escarpa,
de esqueleto em esqueleto,
de forca em forca,
até ao Ranger do Grande Dia
para a Salvação do Mundo
sem anjos
nem demónios
- mas só homens e Terra.


José Gomes Ferreira

(vou ali. depois volto.)

14 comments:

Carlos Albuquerque said...

Tenho andado pelo teu blog (ele é mesmo viciante,sabes!?)lendo sem comentar.
Hoje, ao deparar-me com José Gomes Ferreira, não resisti, entrei.
É sempre bom reler Gomes Ferreira.
--
PS - Tenho notado a tua ausência. Algo terás lido que não gostaste, talvez o post sobre o Nobel do Obama...
Mas, podes crer, é muito mais o que nos une do que o que, eventualmente, nos separa!
Um beijo e um abraço de saudade.

Maria said...

Carlos Albuquerque

Se reparares bem andei em campanha eleitoral, com pouco tempo para a net. Mesmo agora ando com pouco tempo.
O que se escreve sobre o nobel da paz deste ano não me impede de comentar os posts, ou os blogs, é mesmo falta de tempo. Um dia destes tudo voltará ao normal.

Um abraço

clic said...

:)))

Meg said...

Maria,

Imagino-te nestes últimos dias. Direi mesmo que sei... e tu sabes que eu sei...
Esperamos por ti... com o Ódio do JGF.

Um beijo daqui, deste lado

Fernando Samuel said...

E deixastes-nos em muito boa companhia...

Um beijo grande.

Elvira Carvalho said...

Excelente poema que faz todo o sentido reler.
Um abraço e descanse.

João Paulo Proença said...

Maria:

Agradeço-te a partilha do José Gomes Ferreira.

Os seus/teus poemas dizem-me cada vez mais numa altura em que este P.M. e esta política me dizem cada vez menos.

Felizmente que as etiquetas nos permitem lê-lo todo de um só folego.

Voltarei

Beijo

João

Rosa dos Ventos said...

Terrivelmente belo este poema!

Abraço

Agulheta said...

Maria.Sei que tens trabalhado em companha,e nunca será demais,e nos deixas com belas palavras de José Gomes Ferreira.
Beijinho bfs Lisa

Manuel Veiga said...

beijo e beijo. saudades.

bom fim de semana.

Valsa Lenta said...

Alucinante viagem ao desejo da verdade.

Felicidades

Maria P. said...

Boas escolhas, claro.

Estou por cá, espero-te:)

Beijinho, minha Maria*

andorinha said...

Poema - Força! As tuas escolhas dizem de ti!
Um beijo, Maria.

Baila sem peso said...

Tem pouco tempo, reli este poema
E deixei a frase que apanhei no tema
Por aí no espaço do caminho
Decerto te lembrarás do cantinho...
:)
Beijinho