Monday, March 03, 2014

Porque me apetece Eugénio de Andrade (e este poema é tão belo!)



(foto de algasp)

Poema à Mãe



No mais fundo de ti,
eu sei que te traí, mãe.

Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos.

Tudo porque tu ignoras
que há leitos onde o frio não se demora
e noites rumorosas de águas matinais.

Por isso, às vezes, as palavras que te digo
são duras, mãe,
e o nosso amor é infeliz.

Tudo porque perdi as rosas brancas
que apertava junto ao coração
no retrato da moldura.

Se soubesses como ainda amo as rosas,
talvez não enchesses as horas de pesadelos.

Mas tu esqueceste muita coisa;
esqueceste que as minhas pernas cresceram,
que todo o meu corpo cresceu,
e até o meu coração
ficou enorme, mãe!

Olha - queres ouvir-me? -
às vezes ainda sou o menino
que adormeceu nos teus olhos;

ainda aperto contra o coração
rosas tão brancas
como as que tens na moldura;

ainda oiço a tua voz:
Era uma vez uma princesa
no meio de um laranjal...

Mas - tu sabes - a noite é enorme,
e todo o meu corpo cresceu.
Eu saí da moldura,
dei às aves os meus olhos a beber.

Não me esqueci de nada, mãe.
Guardo a tua voz dentro de mim.
E deixo-te as rosas.

Boa noite. Eu vou com as aves.


Eugénio de Andrade

5 comments:

Justine said...

Ai Maria, como este poema me emociona! Posso lê-los centenas de vezes, mas será sempre a primeira vez!

Ainda bem que te apeteceu Eugénio...

Pérola said...

Um poema de cortar a respiração.

Sublime!

Beijo

Manuel Veiga said...

apetece-te muito bem...

excelente partilha.

beijo

Teresa Durães said...

A primeira vez que o ouvi foi na escola, tinha 12 anos (ou menos). Claro, não percebi nada. Hoje adoro-o assim como a restante poesia de EA.

Parapeito said...

É lindo sim...
Todos nós um dia vamos com as aves. abraço***