Friday, January 29, 2010

Porque me apetece Ary dos Santos... e não só...


Aos mortos vivos do Tarrafal


Ao cabo de Cabo Verde
dobrado o cabo da guerra
quando o mar sabia a sede
e o sangue sabia a terra
acabou por ser mais forte
a esperança perseguida
porque aconteceu a morte
sem que se acabasse a vida.
Ao cabo de Cabo Verde
no campo do Tarrafal
é que o futuro se ergue
verde-rubro Portugal
é que o passado se perde
na tumba colonial,
ao cabo de Cabo Verde
não morreu o ideal.
Entre o chicote e a malária
entre a fome e as bilioses
os mártires da classe operária
recuperam suas vozes.
E vêm dizer aqui
do cabo de Cabo Verde
que não morreram ali
porque a esperança não se perde.
Bento Gonçalves torneiro
ainda trabalhas o ferro
deste povo verdadeiro
sem a ferrugem do erro.
Caldeira de nome Alfredo
fervilham no teu caixão
contra o ódio e contra o medo
gérmens de trigo e de pão.
E tu também Araújo
e tu também Castelhano
e também cada marujo
que morreu a todo o pano.
Todos vivos! Todos nossos!
vinte trinta cem ou mil
nenhum de vós é só ossos
sois todos cravos de Abril!
No campo do Tarrafal
no sítio da frigideira
hasteava Portugal
a sua maior bandeira.
Bandeira feita em segredo
com as agulhas das dores
pois o tempo do degredo
mudava o sentido às cores:
o verde de Cabo Verde
o chão da reforma agrária
e o Sol vermelho esta sede
duma água proletária.
Do cabo de Cabo Verde
chegam tão vivos os mortos
que um monumento se ergue
para cama dos seus corpos.
Pois se o sono é como o vento
que motiva um golpe de asa
é a vida o monumento
dos que voltaram a casa.


José Carlos Ary dos Santos
(poema feito aquando da trasladação para Portugal dos restos mortais dos 32 resistentes assassinados no Tarrafal)


(poema lido na Homenagem a Militão Ribeiro, no dia 27 de Janeiro de 2010. ver mais informação aqui)

19 comments:

Anonymous said...

"Pois se o sono é como o vento
que motiva um golpe de asa
é a vida o monumento
dos que voltaram a casa".

Emocionante a força das palavras!
(Imagino ouvir durante a homenagem)

Obrigada, Maria!

Um beijo

salvoconduto said...

Seja através do poemas de Ary, de muitos outros poemas e testemunhos ou de justas homenegens, não esqueçam a memória, vejam o que aconteceu no chile nas úlimas eleições e que abordei no meo canto.

Vale a pena ler e ver os métodos...

Abreijos.

lolita said...

Simplesmente arrebatador e vivo! Tal como Ary, os intervenientes da nossa história estão vivos através das suas palavras e da memória de muitos.

Um beijo

Fernando Samuel said...

Belo poema.
Bela homenagem na Casa do Alentejo.
Bela homenagem n'O Cheiro da Ilha.

Um beijo grande.

Teresa Durães said...

ai... hoje não estou muito virada para este tipo de poemas. sorry

pico minha ilha said...

Maria, hoje fica um abraço com um obrigado do fundo do coração

zmsantos said...

Eu estive lá depois de Abril, e digo-te: - Aquilo ainda arrepia!!!

Beijos.

Pepe Luigi said...

Fico muito satisfeito por comungares o mesmo interesse por este grande poeta que foi e é José Carlos Ary dos Santos, e fazeres uma justa lembrança ao Militão Ribeiro.

Um grande beijinho para ti do
Pepe

Cristina Caetano said...

Bonita homenagem, Maria, através de um poema forte.
A luta valeu a pena, a democracia está aí.

Beijinhos

Akhen said...

Maria

Eu não conhecia o poema todo. O poema está na obra do Ary? Eu tenho a obra, julgo que toda, mas não encontro o poema.
Em que livro está?
SFF. coloca no meu blogue.

Paz e Luz no teu caminho

Little Monster said...

Ler-te às vezes comove-me.. e não falo apenas no poema do Ary, falo de outros posts que gosto de ler de enxurrada... Gosto de ti Maria :)

E os teus molhos, têm saído bem????

Little Monster said...

Ler-te às vezes comove-me.. e não falo apenas no poema do Ary, falo de outros posts que gosto de ler de enxurrada... Gosto de ti Maria :)

E os teus molhos, têm saído bem????

free_soul said...

Adriano sabe sempre a pouco...obrigada hoje também me apetecia Adriano!

Filoxera said...

Emocionante, eterno.
Um beijo, Maria.

Manuela Freitas said...

Olá Maria,
Tenho saudades do Ary, de ouvir a sua voz forte e vibrante a dizer as suas poesias, tenho saudades do Chico, do Adriano...esses vão estar sempre na minha memória de uma forma muito íntegra!...
Beijinhos e bom fim de semana,
Manuela

Maria said...

Muito obrigada por terem passado aqui.
Bom fim-de-semana.

Beijos.

Carlos Albuquerque said...

Há sempre que recordar e homenagear, como Ary o fez, quem se bateu e sofreu pela liberdade.
Eles são monumentos da nossa memória, que não deverão ser apagados.
Um abraço

Luis Eme said...

não conhecia.

extraordinário poema, de homenagem a um de muitos mártires dessa coisa que qualquer dia dissem que era uma polícia normal...

beijinho Maria

João Paulo Proença said...

Maria:

Nunca é de mais (mesmo) lembrar!

Gostei do poema. Desconhecia-o

Um destes dias roubo-o

beijo

João