Monday, January 30, 2012

O meu passo


Arranco os dias de um calendário
Um a um como se fosse o fim
Como quem (re)escreve um diário
Sabendo que a vida não é só assim

Dias e noites de ausências inteiras
Sem sol sem sorrisos sem respirar
Como quem ama de todas as maneiras
Sabendo que um dia tudo vai acabar

Difíceis são os tempos em que desperto
Para o teu olhar feito num abraço
Como quem caminha a passo certo
Sabendo que é no teu sorriso que renasço.

Thursday, January 26, 2012

CAFÉ EUROPA



Café Europa
Mário Domingos

3,949 votos
7º lugar no ranking

Pá, topa-me a Car a rachar lenha, está práli há mais de meia hora e parece que cada vez dá mais força ao machado,
Era um espectáculo a partir lenha, a Carmelinda, Car por diminutivo carinhoso, rapariga dos seus 15 anos, baixinha e forte, vinda lá das serranias
Aquilo é só saúde, pá, mas é um bocadito p'ró gordo, não
Jorge, de gorda não tem ela nada, é mas é forte,
A Car tinha realmente uma força impressionante, quando as bolas ficavam presas nos matraquilhos chamávamos a Car e ela levantava a mesa em dois pés e aplicava-lhe um tal safanão que a traquitana cuspia as bolas como se tivesse sido atingida por um raio
E olha que andava lá perto, olha que andava lá perto,
E ficava depois a mirar-nos vitoriosa, consciente da proeza e da nossa admiração, como se dissesse quatro gajos, ou dois gajos e duas gajas, que elas também jogavam, e nem sempre à defesa como era costume, e não são capazes de fazer o que eu fiz,
E olha que não éramos,
Ali no pátio onde rachava lenha, onde jogávamos matraquilhos, por onde passávamos para chegar à sala das flippers
Lembras-te das horas que conseguíamos jogar à pala dos bónus
Se me lembro, pá, se me lembro, suma bónus, éramos verdadeiros profissionais das flippers,
Ali no Café Europa, que também tinha salão de bilhares e pensão no primeiro andar, que dava para veraneantes, caixeiros de passagem ou encontros de uma ou mais horas, que tinha sido casino nos tempos áureos, com mesas de póquer e jogadores da casa e tudo, que congregava ainda gente de diferentes naipes à volta das mesas com tampo marmoreado, bica e serração, que é como quem diz conversa pelo simples gosto da conversa, falar sobre tudo e nada e conhecermo-nos cada vez melhor, aquilo a que também se chamava rendimento, o pessoal ficava a render por dentro das noites e pronto
Olha, lá vem o Lobão com os Três Porquinhos,
O Lobão era na realidade o Corvo-Mor, rapaz para os seus vintes que vestia invariavelmente de preto, a condizer com o cabelo, autêntico precursor do estilo gótico de vestir, os porquinhos três irmãs de nariz assim para o arrebitado, ora o Corvo-Mor namorava uma das manas e andava sempre com as três, logo a promoção a Lobão passando no picadeiro provavelmente em direcção à praia
Vai um snooker?
Que era como chamávamos ao jogo do eight-ball, apesar dos cartazes afixados mesmo acima dos marcadores, Regulamento do Jogo de Bilhar Eight-Ball, e ia um snooker sim, ou um bilhar francês
O Xico é que joga disto, caraças
Pois o Xico,
Mas isto era já o bilhar às três tabelas, uma única mesa bem tratada, às vezes apareciam uns craques nacionais, só que o Xico era da casa e podíamos admirá-lo quando vinha a terra, andava nos barcos e era genro do Daniel, dono do Café Europa, que tinha um olho de vidro, e por isso dizia o Duarte
O Daniel tem olho para o negócio,
O Duarte encostado à ombreira da porta do Europa, a perna direita flectida e a sola do sapato clássico apoiada na parede
Então, Duarte, sempre preparado para qualquer eventualidade
Sempre preparado,
Podia imaginar quais fossem as eventualidades, mas nunca consegui perceber em que consistiria a preparação, não certamente o preparado de que anos mais tarde falaria o Teixeira, no terceiro andar do prédio do Imperial, e tinha mesmo olho para o negócio, o Daniel, conseguia manter o complexo café-restaurante-pensão-bilhares-matraquilhos & flippers com algum lucro, apesar da concorrência do vizinho Nicola, que não tinha pensão mas a finesse da Albergaria onde pernoitavam bailarinas e turistas de mais posses, não tantas que dessem para os grandes hotéis, o Café Europa onde ainda se jogava póquer, mas de dados
Fúlen outra vez, pá, que mijado
Mijado o caraças, é preciso saber atirá-los,
Os dados, nove pintas pretas, dez pintas vermelhas, valete J verde, dama Q azul, rei K vermelho e Ases iguais aos de espadas dos baralhos de cartas que já não se jogavam no Europa, onde entretanto
Chegou o Django, lá vem o gajo direito à nossa mesa,
Django por causa do chapéu preto e do poncho preto, Django e não Zorro, poncho e não capa, diferenças significativas, o Django sentava-se à mesa, avaliava os circunstantes, escolhia a vítima e
Pá, alinhas em me pagar um prego,
E alinhávamos a meias ou a três ou a quatro e, acabado o prego no prato, com o resto da imperial em curso o Django lançava-se numa espectacular tirada filosófica
Que é que o gajo 'tá práli a dizer,
E ele impávido e sereno, sem perder o fio à presumível meada, convicto e assertivo entre goles de cerveja e miradas de soslaio para controlo da audiência e, quando já poucos aguentavam a atenção, concluindo
E assim se prova, meus amigos, que uma vez não são vezes,
Os risos contidos e o homem de negro levantava-se, cumprimentava e saía até à próxima
Até à próxima,
Onde parará agora o Django, onde pararão o Viegas, o Teixeira, o Paulino e outros loucos dos cafés e afins desses tempos que não pudemos viver juntos, o Europa no Verão, a esplanada cheia, o Gabriel sem mãos a medir
Ó Esgrabiel, então nunca mais saem as imperiais,
Reclamavam o Balhelha, o Catrapana, o Cachapim, o Chaga, o Baptista-Leninista ou Classe Operária, o Campos ou Campesinato, o Cenoura, o Chico-Bomba, a Formiga, a Pratinho de Arroz Doce, o LTS ou Luta dos Trabalhadores Socialistas, hipotético partido de um só militante, logo a verdadeira aproximação da cúpula às bases, o China, o Faca, os Corvos Gémeos, a Nita, o Luis “Corvalán”,
e o Gabriel,
que costumava dizer Sibéria, quílheche, nem as focas lá páram, esforçava-se,
mas nem assim,

o ar quente e a maresia e os espanhóis a fazerem piscinas no picadeiro

Têm mesmo cara de espanhóis, os sacanas
E levantava-se o grupo da mesa, inspirava-se e media-se o ar nocturno, acendia-se um cigarrito, e às primeiras passas
Está uma bela noite,
E sorríamos porque nesses tempos,
que podemos reviver juntos,
está uma bela noite significava tudo menos um convite a gozar a noite em passeios sem destino, às vezes andávamos e andávamos, calados, que falar não fazia falta apesar dos prazeres da serração, assomávamos à esplanada sobranceira ao mar, descíamos as escadas, atravessávamos a marginal, e não havia pares nem casais, havia elas e eles conforme a noite e a disposição, calados e pensativos, cigarro atrás de cigarro, invadíamos finalmente a praia, surgiam violas e vozes do nada ou do escuro da noite, acendia-se talvez uma fogueira e à volta dela canções e risos, mas nunca quando
Está uma bela noite,
Aí sentíamo-nos incrivelmente unidos, nesse instante de aspirar o fumo e a ligeira brisa, em uníssono, cúmplices supremamente serenos, guardávamos momentos mágicos e sabíamos perfeitamente que íamos jogar póquer ou às máquinas ou mais tarde petiscar a casa de alguém, e nunca apreciar a noite lá fora, porque estava uma bela noite e aparecia o Ruivo
Então, pessoal
Então, Ruivo
Aquela gaja está a olhar p'ra mim
E daí Ruivo
Daí que quer festa, quando uma gaja olha p'ra mim é porque quer festa,
O Ruivo tinha uma ideia um bocadito arcaica das relações entre pessoas de sexo diferente, isto para não falar nas do mesmo sexo, e tinha pouca sorte à lerpa
Porra, sou sempre o mesmo cristo,
Mas desistir nunca, o Ruivo nunca desistia, lerpava até às quinhentas, e não tinha fera, que é como quem diz namorada ou mulher, alguém se lembrou de chamar feras às que não alinhavam nas andanças da noite, as feras ficavam portanto em casa por opção, porque não tinham pedalada, e isso às que a tinham dava-lhes uma certa pena, mas que fazer nesses tempos que podemos viver agora juntos, de tomar a bica e render e tudo no Café Europa e acender fogueiras na praia e guitarras e cantos e jogar matraquilhos e flippers e dados e bilhar e snooker
O pessoal quer é jogar jogos,
Ou dar um salto em grupinho de pares comandado pelo filho da Dona Alice à sua casa grande e rica de quartos,
a Dona Alice, viúva trabalhadora, até era uma senhora progressista, mas uma tarde foi a casa inesperadamente e ouviu ruídos vindos do quarto da filha, ora a filha estava a estudar fora, não podia ser ela, e não era, descobriu a viúva quando abriu a porta e o Carlos saltou da cama em cuecas e, impávido e sereno, cumprimentou a dona da casa e informou
Estava aqui a ter uma conversa com uma amiga,
Apontando vagamente a Branca, paralizada na cama em trajes bastante menores
Ó Carlos, na cama da minha filha, na cama da minha filha,
E o Carlos com aquele sorriso simpático e sincero, sem se desfazer, e mais tarde no Europa
reafirmando convicto perante a Luísa, a Guida, a Ana, a Linda, a própria Branca
Pois, o pessoal quer é jogar jogos,
E ainda mais tarde em casa de alguém disponível, duas cartas na mão, cinco a caírem uma a uma na mesa, cerveja, uísque ou brandy e petiscos preparados por uma anfitriã espectacular, que até fazia uma perninha no póquer, tudo isto a atravessar a madrugada, as madrugadas
Corre os estores que já é quase dia, porra,
Porque era preciso prolongar a noite, a dimensão da noite, a espessura da noite, aproveitar o riso que já é amanhã mas
Quero lá saber, caraças, é noite, és tu a dar.

Wednesday, January 25, 2012

Adeus, Mário!



MAIO


Um dia mereceremos Maio.
Traremos flores dentro da pele
E o olhar luminoso de quem ama.

Um dia acordarei e será Maio,
Sem palavras, sem gritos, sem fronteiras,
Sem medo de ser Maio, sem medo
De ser.

Um dia mereceremos os maios,
As giestas, o verde das águas
As gotas de orvalho e o cristal dos nervos.

Um dia acordarei e será Maio,
Cheiro de terra, pétala de carne,
Rumor de um horizonte a descobrir
Em mim.

Um dia acordaremos e seremos Maio.


(Mário Domingos)

Tuesday, January 24, 2012

Faina

(foto de António Rodrigues)

Acolho-te no meu colo, barco
vens cansado da faina e tens frio
lança a âncora aqui ao largo
e descansa teu corpo vazio
A gaivota que te acompanha, grita
quer comida para dar aos filhos
volteia e revolteia, só e aflita
sem saber se os cabazes estão vazios
Descansa com a noite, barco
que o sol já se pôs em fogo ardente
amanhã terás de te fazer ao mar
porque é assim a vida da nossa gente.


Sunday, January 22, 2012

Um fim de tarde especial...


Mineiros de Aljustrel - nas barrenas da memória
Trabalho e resistência sob o Fascismo
de António Lains Galamba, com ilustrações de Roberto Chichorro
(lançamento na Casa do Alentejo, com o Coro dos Mineiros de Aljustrel)



Hino dos Mineiros de Aljustrel

Nas minas de Aljustrel
Morreram muitos mineiros, vê lá
Vê lá companheiro, vê lá
Vê lá como venho eu...

Trago a cabeça aberta
Que me abriu uma barrena, vê lá
Vê lá companheiro, vê lá
Vê lá como venho eu...

Trago a camisa rota
E sangue de um camarada, vê lá
Vê lá companheiro, vê lá
Vê lá como venho eu...

Santa Bárbara bendita
Padroeira dos mineiros, vê lá
Vê lá companheiro
Vê lá como venho eu...


- imaginam como venho eu!

Friday, January 20, 2012

Memória de Amílcar Cabral








(Bafatá, Guiné-Bissau, 12 de Setembro de 1924
Conacri, 20 de janeiro de 1973)

Thursday, January 19, 2012

Explicação da Eternidade


devagar, o tempo transforma tudo em tempo.
o ódio transforma-se em tempo, o amor
transforma-se em tempo, a dor transforma-se
em tempo.

os assuntos que julgámos mais profundos,
mais impossíveis, mais permanentes e imutáveis,
transformam-se devagar em tempo.

por si só, o tempo não é nada.
a idade de nada é nada.
a eternidade não existe.
no entanto, a eternidade existe.

os instantes dos teus olhos parados sobre mim eram eternos.
os instantes do teu sorriso eram eternos.
os instantes do teu corpo de luz eram eternos.

foste eterna até ao fim.

José Luís Peixoto

Wednesday, January 18, 2012

Memória de Ary dos Santos

Soneto escrito na morte de todos os antifascistas assassinados pela PIDE


Vararam-te no corpo e não na força
e não importa o nome de quem eras
naquela tarde foste apenas corça
indefesa morrendo às mãos das feras.

Mas feras é demais. Apenas hienas
tão pútridas tão fétidas tão cães
que na sombra farejam as algemas
do nome agora morto que tu tens.

Morreste às mãos da tarde mas foi cedo.
Morreste porque não às mãos do medo
que a todos pôs calados e cativos.

Por essa tarde havemos de vingar-te
por essa morte havemos de cantar-te:
Para nós não há mortos. Só há vivos.


José Carlos Ary dos Santos
(7 de Dezembro de 1937 - 18 de Janeiro de 1984)

Monday, January 16, 2012

Faço-me ao mar


Faço-me ao mar em dias de acalmia porque os dias de tempestade são para ficar a olhar-te, mar. Como és belo! Que força tens aí dentro que te faz lançar rugidos que afastam os pescadores da faina. Faço-me ao mar sempre que me deixas porque o meu respeito por ti é enorme, mar. Como és belo! Que sofrimento tens no teu ventre para berrares assim na hora do parto em que a onda se desfaz. Faço-me ao mar enfim todos os dias. Às vezes fico-me pela areia onde enterro os pés e me sorves. Outras atrevo-me a enfrentar-te porque preciso de te respirar. Dentro de ti. Beber-te. Lamber-te. Amar-te. A ti, sim. Como se fosses o meu mar...
Por isso me faço ao mar, em ti.

Wednesday, January 11, 2012

A casa


Deixaste-me num dia de outono quase inverno. Sem avisares e sem que pudesse prever. A casa fortaleza ficou igual um tempo. Igual por fora e gelada por dentro.

Os dias passaram e tudo mudou. Da casa restam as paredes, ainda altivas, mas no chão só existem pedras. Entre as pedras o teu coração.

Mais tarde percebi que a casa eras tu. E apressei-me a ir buscar, entre as pedras, o teu coração, que voltei a colocar no meu peito. Para te aquecer.

Foi então que saíste de mim e voaste...



Monday, January 09, 2012

Arranco-te de mim


Arranco de mim memórias que me fazem perder as palavras. Porque o que quero mesmo é continuar a respirá-las e a bebê-las. Todas as noites ou todas as madrugadas.
Arranco de mim momentos que pensei serem os nossos. Porque foi apenas na minha imaginação que eles existiram e tu não estavas. Em cada curva do meu caminho que era nosso.
Arranco-te de mim, por fim. E nem sabes como me sinto bem, assim...


Wednesday, January 04, 2012

Existe


Existe uma maré à tua espera.
Como existe um sorriso que te abraça.
Dos que aquecem.
E não esquecem.
Existe um barco à tua espera.
Como existem umas mãos que te querem.
Das que acariciam.
E te deliciam...
Existe uma linha ténue entre o ir e o vir.
O falar e o calar.
O estar e o ficar.
E eu fico.
Contigo.

Monday, January 02, 2012

Dia primeiro


Deixaste uma lágrima na onda do mar.
Fizeste do tempo um canteiro sem flores
E depois, nunca mais te ouvi cantar
A liberdade e as suas tantas cores...

Perdeste na memória os versos do caminho.
Ventos, tempestades, silêncios e os ecos dos sonhos teus
E depois, nunca mais chegaste de mansinho
Sem medo de um dia me dizeres adeus...

Calaste no toque do leito os gritos da aflição.
Correntes de um rio que teima em se perder
E depois, quem sabe, nas margens da tua eterna solidão
Consigas encontrar o verdadeiro tom do teu parecer...

Largaste no monte a voz, a pele... toda a tua essência.
Como quem pega num filho na hora do primeiro abraço
E depois, choras cada minuto da tua própria ausência
Nos partos que te pintam os sabores no teu cansaço...

Quiseste a vida, numa morte rouca tão presente.
Pedra a pedra, erguendo os soluços da tua morada
E depois, na embriaguez de tudo o que ainda se sente
Explodem fogos pela noite e ternuras pela madrugada...

Corre, vagabundo, pelas ruas desertas que inventas!
Sangra-te outra chaga para de novo conseguires:
A paz e o amor, que procuras e sempre tentas
Mesmo quando sofres assim sem nunca te ires...

Pedro Branco

Sunday, January 01, 2012

Recebendo 2012, acordada!



Acordai
acordai
homens que dormis
a embalar a dor
dos silêncios vis
vinde no clamor
das almas viris
arrancar a flor
que dorme na raíz

Acordai

acordai
raios e tufões
que dormis no ar
e nas multidões
vinde incendiar
de astros e canções
as pedras do mar
o mundo e os corações

Acordai

acendei
de almas e de sóis
este mar sem cais
nem luz de faróis
e acordai depois
das lutas finais
os nossos heróis
que dormem nos covais
Acordai!

(José Gomes Ferreira)